Pacientes aguardam atendimento em corredor do Hospital das Clínicas, em São Paulo |
Cida de Oliveira e Sarah Fernandes, da RBA
Uma nova luz amarela se acendeu na saúde pública de São Paulo, marcada por diversas tentativas de privatização dos serviços básicos ao longo de duas décadas de administração do PSDB. Depois de quase 20 anos sem entrar em greve, médicos e funcionários do Hospital Universitário (HU) da USP paralisaram suas atividades em 18 de junho contra problemas na estrutura física, ambulatórios inadequados e superlotação. O movimento se juntou ao de trabalhadores, professores e estudantes da universidade, parados desde 27 de maio devido à proposta de reajuste zero do reitor Marco Antonio Zago, que argumenta não ter dinheiro para reajustar os salários.
Criado para formar médicos na graduação e na residência, o HU absorveu o atendimento relativo ao ensino das áreas básicas do curso de medicina da USP, antes mantido pelo Hospital das Clínicas, que ficou com a especialização médica. De hospital-escola, foi transformado em mais um hospital sobrecarregado.
Além de toda a comunidade universitária, atende à população do subdistrito do Butantã, estimada em 500 mil habitantes. Hospital de referência da região oeste da capital paulista, só em 2013 prestou 282 mil atendimentos de emergência e 13 mil internações. A cada mês foram feitas ali 12 mil consultas ambulatoriais, 400 cirurgias, 3.543 partos, 140 mil exames de imagem e 965 mil exames laboratoriais. Para tudo isso, recebe 8% da verba destinada à USP, embora em 2013 tenha recebido 7,9%.
Em meio à chamada crise orçamentária, em agosto, o Conselho Universitário da USP (CO) aprovou, na surdina, a desvinculação do HU, transferindo-o para a Secretaria Estadual de Saúde. A proposta desagradou toda a comunidade.
Conforme posicionamento oficial, a Associação dos Médicos Residentes da USP (Amerusp) entende que a ideia impõe o risco de sucateamento já observado em outros hospitais universitários, além de excluí-lo do contexto acadêmico. Por isso, pediu que o Conselho Universitário refletisse mais antes de qualquer decisão. Para a Associação dos Docentes (Adusp), a história precisa ser melhor contada.
O que pesa entre a comunidade é a desconfiança – e o temor – de um intuito privatizante na proposta, com a incorporação da gestão por fundações de apoio ou OSs, como tem sido comum nos hospitais estaduais. A forte pressão levou o Conselho Universitário a adiar a decisão.
Insistência
Traço marcante do governo tucano de São Paulo, encabeçado por Geraldo Alckmin (PSDB), a gestão de hospitais e serviços de saúde pelas Organizações Sociais (OSs) é criticada porque não tem melhorado a qualidade da saúde oferecida à população e está envolva em suspeitas e escândalos.No começo de julho, a Justiça paulista suspendeu o contrato de administração do hospital para dependentes químicos, na região da cracolândia, na capital, que seria gerido pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), uma das mais envolvidas em suspeitas, que é comandada pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira. A entidade já teria recebido R$ 7 milhões do estado.
O juiz Valentino Aparecido de Andrade entendeu que o governo feriu o "princípio da impessoalidade" na administração pública, uma vez que Laranjeira coordena o programa estadual Recomeço, voltado a dependentes de crack, e presidiria o conselho administrativo do hospital.
TJ negou decreto assinado por Alckmin que destinava 25% dos leitos de hospitais públicos para planos de saúde |
Em 2012, as unidades de saúde administradas diretamente pelo próprio estado receberam recursos da ordem de R$ 5,1 bilhões, e as OSs, de R$ 4,6 bilhões. O que chama a atenção é que entre 2008 e 2012 os recursos repassados a essas entidades aumentaram 268%, conforme aponta o deputado Gerson Bittencourt (PT), que analisou relatórios dessas entidades, a maioria deles com informações incompletas e sem comprovantes. Foi detectado rombo financeiro em 12 dos 23 hospitais geridos por essas entidades no estado.
Outra parceria em andamento é para instalar centros de assistência farmacêutica, infraestrutura para distribuição, além de gerenciar, transportar e rastrear medicamentos – a chamada PPP da logística de medicamentos. O valor estimado é de R$ 188 milhões.
Venda de leitos
A intimidade entre o público e o privado, tão enraizada em São Paulo, poderia ter trazido prejuízos ainda maiores à saúde pública. Em maio de 2012, por unanimidade, o Tribunal de Justiça paulista negou, em caráter liminar, a destinação de 25% dos leitos de hospitais públicos para atendimento de pacientes particulares ou para beneficiários de planos de saúde.Sem paralelo no Brasil, a lei cria um problema gravíssimo no estado ao tirar 25% dos leitos dos grandes hospitais públicos estaduais, aumentando a fila do Sistema Único de Saúde (SUS) em 25%, e entregá-los aos planos privados, que não entraram com um tostão para melhorar ou equipar esses hospitais, declarou na época o promotor de Justiça Arthur Pinto Filho, de Direitos Humanos da Área de Saúde Pública.
Considerada inconstitucional pelo MP, a lei cria a chamada dupla porta, na qual os usuários de planos particulares têm privilégios na fila em relação aos pacientes do SUS. Alckmin até recorreu da decisão, mas o TJ negou.
A proposta chegou a ser criticada pelo Conselho Nacional de Saúde, que pediu à Justiça de São Paulo que a considerasse ilegal. O conselho entende que a lei favorece a prática de dupla porta de entrada, “selecionando beneficiários de planos e saúde privados para atendimento nos hospitais públicos, promovendo, assim, a institucionalização da atenção diferenciada com preferência na marcação e no agendamento de consultas, exames e internação e melhor conforto de hotelaria”.
Santas Casas
Outro golpe da gestão da saúde paulista contra a população veio no dia 22 de julho, quando a Santa Casa de São Paulo suspendeu o atendimento de emergências e urgências e, no dia seguinte, exames e cirurgias eletivas.A direção da entidade alegou que a dívida total do hospital superava R$ 300 milhões. Só os débitos com fornecedores, que levaram ao fechamento do pronto-socorro, eram de R$ 50 milhões. O atendimento só foi retomado dois dias depois, após o secretário estadual da Saúde, David Uip, anunciar a liberação imediata de R$ 3 milhões e uma auditoria nas contas da entidade.
Na ocasião, o Ministério da Saúde solicitou informações à Secretaria Estadual de Saúde. Verificou que, em 2013, não chegaram ao hospital os R$ 54,1 milhões de recursos federais. Em 2014, o montante que deveria ter sido repassado chega a R$ 20,6 milhões.
"São R$ 291.390.567,11 transferidos pelo Ministério da Saúde e R$ 237.265.012 recebidos pela Santa Casa de recursos federais, em 2013. Em 2014, os valores são R$ 126.375.127 e R$ 105.761.932, respectivamente", aponta o ministério em nota. Assim, o governo Alckmin deixou de transferir para o hospital R$ 74,7 milhões desde o ano passado.
Governo Alckmin deixou de transferir R$ 74,7 milhões para a Santa Casa da capital desde 2013 |
A Santa Casa é um hospital filantrópico privado que atende a 8 mil pessoas por dia. Os recursos vêm de doações e do poder público, que paga por atendimento feito pelo SUS. A entidade é um dos 762 hospitais filantrópicos do país que tiveram os valores da tabela do Sistema Único de Saúde dobrados, segundo o ministério. Isso porque foi criada uma política de incentivo pela qualidade que paga a mais pelos procedimentos realizados com menos tempo de espera e de forma mais humanizada.
A Santa Casa de São Paulo não se pronunciou sobre a crise. Segundo a última nota divulgada pela instituição, em 25 julho, a Secretaria de Estado da Saúde montou uma comissão para analisar as contas da instituição e até a divulgação dos resultados não irá se pronunciar publicamente.
Em 2012, o governo federal repassou às Santas Casas dos municípios paulistas R$ 3,07 bilhões. O governo estadual repassou R$ 540 milhões.
Em dezembro de 2013, o Ministério da Saúde liberou R$ 1,6 bilhão para 762 Santas Casas e entidades filantrópicas de 604 cidades em 23 estados. Do total, R$ 400,6 milhões foram liberados em três parcelas de R$ 133,5 milhões. Com a medida, o Ministério da Saúde elevou o valor mínimo do incentivo pago aos estabelecimentos filantrópicos, que passou de 26% do valor dos procedimentos de média complexidade para 50%.
Na última semana, a federação entregou uma carta ao ministro da Saúde, Arthur Chioro, solicitando reajuste da tabela de procedimentos. “O governo federal repassa incentivos para 800 hospitais, mas temos 2.100”, diz. “Em São Paulo, a situação é um pouco melhor porque o governo estadual faz um aporte de recursos financeiros para cumprir a tabela SUS. Em 2014, ele vai colocar R$ 568 milhões. Porém, o benefício atende apenas a 128 instituições e temos 400 no estado.”
No final do ano passado, com toda pompa, o Estado Alckmin anunciou um programa de auxílio às santas casas e hospitais filantrópicos, com investimentos da ordem de R$ 535 milhões em 117 entidades. Na época, Alckmin anunciou que o valor era duas vezes maior que o valor previsto originalmente. Só a Santa Casa de São Paulo receberias R$ 4,33 milhões.O andamento do programa, porém, não foi informado pelo estado à reportagem.
Escassez de recursos
Os repasses estaduais, quando chegam, muitas vezes são escassos em muitas prefeituras. No último dia 5, em audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal de São Paulo para debater o financiamento da saúde no país, prefeitos fizeram fila para reclamar que, como recebem poucos recursos estaduais, chegam a comprometer 30% da receita própria, quando a lei manda colocar 15%, no mínimo.Em 2013, Santos, na Baixada Santista, recebeu R$ 127.853.551,07 do governo federal. Do estado veio um valor 58 vezes menor: R$ 2.226.345,03. Segundo demonstrativo financeiro, o Fundo Municipal de Saúde contou ainda com R$ 243.883.230,65 de recursos próprios e R$ 4.107.998,87 vindos de outras fontes.
O saldo explica, em grande parte, a situação de saúde do município, em desvantagem em relação a muitos outros. De acordo com a Comissão Permanente de Saúde e Higiene da Câmara Municipal de Santos, presidida pelo médico e vereador Evaldo Stanislau (PT), há anos a população santista é a mais vulnerável à aids em todo o estado. Em 2009, a incidência da doença, por 100 mil habitantes, era de 58 casos, enquanto a média estadual era 15, e a nacional, de 14. Em 2011, a taxa até que caiu, mas continuou alta na comparação: 32 na cidade, contra 13 no estado e 12 em todo o Brasil.
Santos tem ainda taxa de mortalidade infantil um pouco acima da média estadual: 12 óbitos para cada mil nascidos vivos, quando a média paulista é de 11,48. A Baixada Santista concentra desde 2000 os maiores índices no estado conforme um levantamento da Fundação Seade. Em 2012, o índice regional era de 15,65 por mil nascidos vivos.
Em seguida, vem a região de Sorocaba, com 12,70. Já os melhores índices são da região de Franca, com 8,17, e São José do Rio Preto, com 9,29 – semelhantes aos da Europa, com apenas um dígito, conforme a Secretaria Estadual de Saúde. A média nacional no mesmo período é de 13.
Entre as principais causas estão problemas durante a gravidez, no parto ou no primeiro mês de vida – as chamadas causas perinatais – e as malformações congênitas. Ambas correspondem a praticamente 80% dos óbitos. Em menor proporção aparecem as doenças respiratórias, infecciosas e parasitárias.
Promessas
A situação da saúde em São Paulo tende a continuar no mesmo estado. Ou quem sabe até se complicar. De acordo com programa de governo de Geraldo Alckmin, o estado está crescendo e vai crescer de forma acelerada. "Mas para isso vamos ter de fazer melhor o que já fazemos bem. Temos as melhores universidades, os melhores institutos de pesquisa, a mais ampla rede de ensino técnico e tecnológico do país, as empresas mais inovadoras do país."Ainda segundo o documento registrado na Justiça Eleitoral, os institutos de tecnologia, a começar pelo IPT, pelo Butantan e pelo Agronômico, "também irão complementar a tarefa dos parques tecnológicos, com laboratórios e serviços que estimulem a pesquisa e o desenvolvimento do setor privado, que sejam um instrumento de maior competitividade e uma garantia de empresas mais inovadoras".
O Instituto Butantan, em franco processo de sucateamento, é orgulho da gestão tucana. No campo da saúde, segundo o programa de governo, os últimos anos foram balizados por grandes conquistas: "Redução da taxa de mortalidade infantil, aumento da esperança de vida ao nascer, aumento da sobrevida de pacientes com aids e hepatite C, consolidação do Instituto Butantan como um dos maiores centros de pesquisas biomédicas do mundo, ampliação da Furp, criação de uma rede inédita de telemedicina, entre outras importantes marcas".
O candidato Paulo Skaf (PMDB) pretende implementar o sistema integrado de controle da oferta de serviços de saúde, o prontuário eletrônico do paciente (PEP), instalar a central de agendamento de consultas, instalar sistema de aviso de consulta e exames por telefone e/ou SMS, construir novos hospitais e ambulatórios médicos de especialidades (AMEs), para aumentar a oferta de serviços nas regiões menos atendidas, podendo ser concretizados por meio de parcerias público-privadas.
Pretende ainda criar mecanismos de articulação dos serviços municipais e estadual, buscando eficiência e efetividade na prestação dos serviços de saúde, incrementar o alcance do Programa Saúde da Família, valorizar a carreira do profissional da área, ampliar a distribuição de medicamentos e melhorar os programas existentes voltados para públicos específicos, como jovens, adolescentes e idosos.
Terceiro lugar nas pesquisas, Alexandre Padilha (PT) pretende fomentar a produção de medicamentos e concentrar a inovação por meio de articulação dos setores público, privado e acadêmico. Ele afirma que a pujança econômica de São Paulo precisa ser acompanhada da transformação do estado no melhor lugar para se viver. Isso passa pela diminuição da desigualdade de renda, pela erradicação da miséria e pela redução da pobreza, temas nos quais o fortalecimento do SUS aparece diluído."
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