O STF lida com a questão mais relevante de qualquer economia e sociedade contemporâneas: a estruturação ou desestruturação do seu mercado de trabalho.
Por Marcus Barberino.*
O título deste texto é, como já perceberam os distintos leitores, uma paráfrase a um dos textos mais relevantes de um dos mais geniais, e genioso, economista do século XX. Com argúcia e sentido histórico e político incomuns nos analistas da época, Keynes antecipou em quase 20 anos o ressurgimento da competição entre os estados europeus e a ampliação do ressentimento, que associado a uma liderança louca e carismática, desaguou na tragédia do nazismo.
Nos próximos meses o STF irá lidar com a questão mais relevante** de qualquer economia e sociedade contemporâneas. Estruturação ou a desestruturação do seu mercado de trabalho. Embora o direito constitucional e o direito penal sejam as jóias da coroa das faculdades de direito, é o direito do trabalho o elo entre direito, civilização e economia. Não. Não estou dizendo que rabo abana cachorro. As instituições de uma economia de mercado seguem e servem as decisões estratégicas dos detentores de capital (grandes corporações e estados modernos).
Mas o cotidiano e a vida dos não proprietários dependem das condições de acesso e permanência no mercado de trabalho, que a despeito de ser mercado é, nas democracias representativas, ditaduras e teocracias contemporâneas, um bem público. E nesse texto não pretendo avançar na análise dessa aparente contradição. Basta fixarmos que os não proprietários dos meios de produção (mais de 90% da população do mundo) precisam trabalhar com alguma regularidade. Todos os demais direitos de um não proprietário depende do acesso ao direito e ao dever de trabalhar, que é outra contradição aparente.
No Plenário da Corte
O STF, por método ainda não completamente assimilado pela população jurídica, resolveu dar repercussão geral a recursos extraordinários e levar ao Plenário da Corte a sensível matéria da terceirização. O Ministro encarregado de relatar a matéria terá sobre sua mesa a questão mais relevante da sua trajetória profissional.
E Luiz Fux talvez não saiba disso em toda a sua profundidade. Em duas oportunidades anteriores o Ministro, professor e escritor prolífico que possui o direito processual como sua especialidade (leiam se puderem Tutela de Evidência e Tutela de Segurança. Ótimo livro de direito e “avis rara” num mercado editorial de qualidade tão duvidosa quanto escrituras de domínio sobre vastas extensões do paraíso celeste), demonstrou não ter pleno controle sobre as consequências de suas decisões e, após conceder tutelas cautelares ou definitivas em ações que envolviam a federação e o sistema tributário nacional, foi obrigado a modular os efeitos da sua decisão para não destruir a frágil estrutura que construímos desde 1988. Augura-se que tenha aprendido. E abandonado os últimos traços de religiosidade e fé perigosas que se ensina nas péssimas faculdades de direito do Brasil. Coisas como “fiat justitia, perreat mundus”(fazer justiça ainda que pereça o mundo). Como se fosse possível existir decisão judicial a ser contemplada e admirada após o término da espécie humana.
Terceirização é uma palavra tão polissêmica como amor, mas é necessário distinguir ao menos dois fenômenos que equivocamente são tratados por especialistas (imperdoável) e pela imprensa (previsível) como se fossem a mesma coisa. As economias industriais (centrais ou periféricas) tendem a adensar sua estrutura produtiva e a contínua inovação institucional de gestão e tecnológica, juntamente com a forte mudança cultural nessas sociedades, tende a produzir um setor terciário (de serviços) altamente especializado.
Um exemplo simples: para que homens e mulheres estejam no mercado de trabalho há que se ter toda uma cultura de refeições “fora” da economia doméstica. Até porque as mulheres, histórica e culturalmente “condottieres” dessas células econômicas muito pouco valorizadas, já não estão lá. Toda uma logística foi criada no entorno das empresas e centros comerciais das cidades para alimentar o exército de trabalhadores com fome. Desde a prosaica marmita até restaurantes sofisticados e customizados de acordo com a renda e o “status” ocupado no mercado de trabalho são ofertados nas cidades do século XXI. Isso é terciarização. Repito ”TERCIARIZAÇÃO”. Fenômeno inerente ao capitalismo e impossível de ser detido ou domesticável nessa quadra da história.
Vender gente
Outra coisa é a terceirização à brasileira, fenômeno que aprendemos com portugueses, holandeses, franceses e ingleses. E sinistramente aperfeiçoamos. E que consiste fundamentalmente em vender gente. No passado a Igreja auxiliava na justificação dessa forma cruel de acumular capital. E juntamente com os estados monárquicos e mercantilistas criavam os instrumentos ideológicos, jurídicos e a logística para comprar e vender gente, um capítulo da globalização econômica que ajudou a formar as primeira casas bancarias de Salvador e Rio de Janeiro ainda nos tempos coloniais.
Hoje e aqui no Brasil, os parâmetros jurisprudenciais que tentam dar algum nível de certeza jurídica aos participantes do mercado de trabalho não obstam a terciarização. Mas vedam a venda de gente. Compra-se trabalho, mas não se pode admitir a venda de trabalhadores. A fraseologia comum dos discursos interessados costuma afirmar que não há óbice constitucional ou legal a terceirização. E as vezes juristas enclausurados nos últimos mosteiros medievais que são as faculdades de direito – local onde juristas fazem bico, para usar o jargão que o mercado de trabalho designa o trabalho precário e a tempo parcial, se prestam a ecoar esse cântico religioso e perigoso.
Pois bem. O Congresso precisa se debruçar sobre o mercado de trabalho brasileiro e dotar o sistema jurídico nacional de um marco regulatório que dê conta da efetividade dos direitos constitucionais dos trabalhadores num contexto de economia aberta; numa sociedade complexa e urbana; que distribua responsabilidades jurídicas a todos os agentes que interferem na oferta de trabalho aos brasileiros, mercosulinos e estrangeiros que aqui aportem. É um desafio para o século XX e para a democracia brasileira e seu projeto de desenvolvimento pacífico fazer uma atualização regulatória num mundo de capital global e trabalho confinado ao nacional.
Ovos de serpente
Mas aqui voltemos a Keynes e a única coisa relevante que sobrou de Versalhes: o tratado internacional que criou a Organização Internacional do Trabalho veda, proíbe, hostiliza a venda de gente. O substrato dessa regra positivada e que condiciona a estruturação de todo o direito constitucional dos países signatários é simples: submeter seres humanos a mercantilização dos seus corpos para extrair trabalho produz ovos de serpente. E ovos de serpente das guerras econômicas do final do século XIX, produziram duas guerras de escala global e o totalitarismo que vicejou nos anos 20 a 50 do século XX.
É nessa cesta de ovos que o Plenário do STF irá por as mãos. Embora formalmente possam pensar que vão revisar a constitucionalidade do cânone jurisprudencial contido na súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, os senhores Ministros irão manipular aquilo que um antigo constitucionalista francês alcunhava de “constituição material”.
Suspeito que na matriz desse fenômeno esteja o problema de boa parte dos serviços públicos brasileiros. São hospitais estatais e privados que não possuem médicos, mas cooperativados ou “sócios”de empresas individuais de medicina. Nesses hospitais não é crucial que se forme bancos de dados com prontuários ou registros relevantes da clientela que os frequenta. Afinal, há serviços médicos prestados. Por quem? Por qualquer um que naquele dia se disponha a emitir uma nota fiscal de serviços. E por aí vai.
A terceirização à brasileira é, numa metáfora de mau gosto, estipulações de cláusulas de reparação em que os trabalhadores pouco escolarizados e submetidos a jornadas extensas, devem “reparar” a sua baixa produtividade com muito trabalho, em troca de qualquer emprego de baixa remuneração e sem direitos elementares. São empregadores que não possuem qualquer especialização nos serviços que prestam. Sua função estipulada na hierarquia interna do capital é captar gente e inserir no processo produtivo inteiramente desenhado e coordenado por outros agentes econômicos mais parrudos.
Segurança jurídica a todos
É possível ordenar isso. É possível viabilizar o exercício de direitos fundamentais no mercado de trabalho brasileiro (aliás só com ele é possível a tarefa civilizatória). É possível distribuir responsabilidades jurídicas que estabeleça correspondência entre o risco de quem empreende com a segurança jurídica e econômica dos que trabalham. Mas o marco regulatório para isso deve sair do parlamento. Juízes não são conservadores por natureza. Mas o sistema de justiça deve fundamentalmente distribuir segurança jurídica a todos. A tese da absoluta liberdade de contratar só fica ajustada no discurso de um adolescente lutando para superar os arquétipos do pai e da mãe. Ou na pena dos vencedores das guerras, usualmente redatores das cláusulas dos armistícios e reparações. Que o digam os alemães, nosso padrão de referencia cultural deste 2014.
Caberá ao parlamento cuidar da “tutela de evidência” sobre a estruturação do mercado de trabalho brasileiro no século XXI. Espera-se que o STF e especialmente o Ministro Fux prospecte da cesta de ovos uma boa “tutela de segurança” para todos os brasileiros, especialmente os não proprietários dos meios de produção. Não convém quebrar ovos de serpente em cerimônias em que se entoam cânticos religiosos sobre a absoluta liberdade de contratar.
* Marcus Barberino é professor de direito e juiz do Trabalho da 15ª Região.
** O autor refere-se ao Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 713211, no qual a empresa Celulose Nipo Brasileira S/A (Cenibra) questiona sentença da Justiça do Trabalho que, em Ação Civil Pública foi impedida de contratar terceiros para sua atividade-fim. Clique aqui para acompanhar a ação direto no site do STF.
Fotos: Fellipe Sampaio / Nelson Jr. / SCO/STF
Fonte: Reporter Brasil
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