Origens e atenuantes da violência
Por Sótero Araújo Medrado
Estamos experienciando atônitos tempos de barbárie, de flagrante negação da alteridade. O homem civilizado – homo sapiens - e cibernetizado – homo cyber - estereotipou-se, paradoxalmente, num outro eu estranho de si mesmo. Povoam as consciências profundas incertezas quanto à capacidade humana de encontrar a razoabilidade da vida, buscar a atitude sensata, sondar o recôndito valor de sua existencialidade. O que nos deixa em letargia e desolação é a incerteza inexorável de uma eventual restauração da estrutura ontológica do indivíduo. Creio que a perda da dimensão do outro, tenha afastado o homem de sim mesmo. Uma existência, digo, humana, só se reconhece na presença de outra existência, fora disso o homem não saberia de si, de sua facticidade, historicidade.
Atrocidades
"Nada mais se fala senão em horrendas atrocidades do humano contra o humano. A vida tornou-se impossível. Há insuficientes ecos de defesa em favor da vida. Mas há muito mais eficiência na acusação contra ela" |
A escalada da violência perpetrada pelo homem em todo mundo tem pautado diuturnamente os noticiários nacional e internacional. Nada mais se fala senão em horrendas atrocidades do humano contra o humano. A vida tornou-se impossível. Há insuficientes ecos de defesa em favor da vida. Mas há muito mais eficiência na acusação contra ela. A vida vem se despotencializando, nadificando-se. A existência do outro, assim como a do algoz, que a natureza levou bilhões de anos para engendrar, é abruptamente ceifada por atos tresloucados de bestialidade, que espalha dor e cega qualquer tentativa de compreensão desses desmandos. Assistimos, assim, o desequilíbrio de uma ordem (Razão) implícita a toda natureza, que governa o universo segundo o signo de uma justa medida. A falta de discernimento por parte do homem em face da existência de uma consciência cósmica, que os gregos chamavam de LOGOS e os latinos de ratio, vem nos empurrando ao caos inicial, onde não havia ordem (bom senso), mas a desorientação de corpos cegos a vagar no espaço.
Natureza x razão
Invocar o estatuto natural do homem, a sua animalidade, a sua função instintiva de alimentação, reprodução e conservação, como fundante de suas ações de topor e estupenda agressão contra o seu igual, não me parece razoável. Que a violência assenta algumas de suas raízes na base natural, não há dúvida. Mas a animalidade por si só não é determinante da desordem do homem. A necessidade do ser-da-razão e a resposta dada a esta vai determinar o seu aspecto de negatividade ou positividade, evidenciando o seu componente de violência. A busca desmedida para satisfazer desejos produz uma potencialidade negativa, que está na ordem da sua aquisição ou não. A satisfação e a insatisfação são a dualidade, no interior da qual se efetiva o problema da violência.
Mais do que a natureza, o dado da razão dotou o homem de autoconhecimento e valores, como virtude, moral e sabedoria, o que pode ser confirmado em Sócrates e Platão. Assim, conferiu ao homem a capacidade volitiva e a liberdade de escolha. O homem é o único animal que sabe que sabe. Sabe o que quer e mais que isso, o que não quer. Sabendo o que não quer, ele escolhe, decide e se projeta para o que poderá querer, seguro de que pode sempre mais. A crença no possível é tarefa que o homem não deve postergar. É precisamente nesse movimento, que o homem faz a passagem da necessidade à escolha, donde se operacionam os sentimentos de contentamento e descontentamento, "cheio ou vazio”, "falta ou completude", que a depender do saciar-se ou não, produz a violência.
Cartesianismo
Na época, século XVI, a res-cogitans, pensada por Descartes, foi apresentada como solução para o conhecimento e os problemas humanos, a extensão era só a verificabilidade do pensado (res-extensa= a matéria extendida no espaço, inclusive o meu corpo). O cartesianismo reduziu o homem a um dualismo psicofísico, protagonizado por um racionalismo que se estabeleceu enquanto critério de verdade. O Cogito, Ego Sum cartesiano aprisionou o homem no pensamento, assim como Sigmund Freud o encarcerou no inconsciente. No primeiro, temos um homem cuja ações são dirigidas por um racionalismo exacerbado e uma mentalidade mecânica da vida. Aqui o mundo já está dado, não cabendo mais lugar para imprevisibilidade, o novo. No segundo, as ações do homem são explicadas pela força residual do passado, enquanto conteúdo do inconsciente, que determina as suas atitudes. Já para Karl Marx, a causa do sofrimento do homem estava nas relações de trabalho. Mudando a lógica trabalho x capital, o homem estaria salvo. Onde está de fato o problema do homem? Será que a razão sozinha pode nos apontar uma saída? E o inconsciente, o que tem a contribuir? Ou mudando o modelo de produção econômica com ênfase no capital, para um outro com acento no social, redimiria o homem?
"A violência reside na tensão entre a necessidade e a busca da satisfação. Ela não está somente na carência, mas também na abundância" |
Mutatis mutandi, problema da violência não deve passar ao largo do âmbito da razão. Não se postula aqui forjar o homem ideal, mas garantir a sua possível razoabilidade. Por outro lado, abandoná-lo nos braços de Gaia, como desejou Nietzsche, seria imergi-lo na combustão da imanência sem transcendência.
Necessidade x desejo
Desta forma, a violência reside na tensão entre a necessidade e a busca da satisfação. Ela não está somente na carência, mas também na abundância. Aprendemos com o estudo do desenvolvimento dos povos que as nações quando atingem altos índices de desenvolvimento e bem-estar, ressentem da sensação de inércia diante da falta de expectativa e prospectiva de vida, quando não se sabe mais o que buscar. O que está cheio já não recebe mais, carecendo da falta do receber. Este sintoma da vazão ao tédio, o egoísmo e a solidão. Aqui, o homem cercado de tudo, vivência o seu mais completo niilismo, o nada, a impotência de não ter mais nada a necessitar, senão a necessidade de esvaziar o corpo cheio, para sentir-se novamente desejoso de enchê-lo.
Não somos imparciais quando dizemos que a violência só vem dos morros, das ruas, das drogas, ou seja, de onde mais sentimos a ausência do Estado?! Mas o que dizer daquela violência oriunda de pessoas mais instruídas e abastadas? Jovens de classe alta, embriagados, drogados ou não, socialmente saciados dos seus apetites mais refinados, não tendo mais o que possuir, apóiam-se em seus carrões para dar evasão a seus desejos fúteis e desmedidos, fazendo da velocidade a morte dos seus semelhantes. Ainda, o que dizer de jovens ricos que ateiam fogo em mendicantes, índios e trabalhadores? O que dizer da escalada dos homicídios que assolam o Brasil? Pais que vitimam filhos indefesos e filhos que tiram as vidas dos seus genitores, etc.
Insanidades
É sabido que a violência se camufla em múltiplas formas e graus. A violência física é o ápice da insanidade do homem em se afirmar pela força e o poder de dominar e/ou eliminar o outro. As outras manifestações de violência às vezes podem ser potencialmente mais devastadoras do que a física, como por exemplo, a humilhação pelo destrato, a discriminação de qualquer natureza, a indiferença, o abandono, as desigualdades, os assédios, a exploração sexual e do trabalho infantil, a violência doméstica, enfim as nossas intolerâncias políticas e religiosas.
É sabido que a violência se camufla em múltiplas formas e graus. A violência física é o ápice da insanidade do homem em se afirmar pela força e o poder de dominar e/ou eliminar o outro. As outras manifestações de violência às vezes podem ser potencialmente mais devastadoras do que a física, como por exemplo, a humilhação pelo destrato, a discriminação de qualquer natureza, a indiferença, o abandono, as desigualdades, os assédios, a exploração sexual e do trabalho infantil, a violência doméstica, enfim as nossas intolerâncias políticas e religiosas.
"O papel da Educação é uma das vias fundamentais na potencialização do homem em discernir sensatamente o objeto de suas necessidades e aí poder fazer as suas escolhas com bom juízo" |
Em síntese, banir a violência não é uma tarefa possível, mas só ponderável - remediável pelo restabelecimento da sensatez. Aqui o papel da Educação é uma das vias fundamentais na potencialização do homem em discernir sensatamente o objeto de suas necessidades e aí poder fazer as suas escolhas com bom juízo. Saber julgar ou julgar com parcimônia é a condição para vida em harmonia e respeito aos semelhantes, o que quer dizer fazer-se outro enquanto outro - se colocar no lugar do outro. Quem se põe no lugar do outro se faz o MESMO, antevendo a sensação que poderia causá-lo.
Leitura
Na esteira da discussão sobre a violência, quero sublinhar aqui, o inadiável incentivo à leitura nas escolas de ensino fundamental e médio. A leitura é um vetor de desenvolvimento cognitivo e de universalização do homem. Pela leitura, o homem descortina os meandros do conhecimento, de um mundo fantástico de infinitas possibilidades. Por esta, o homem se redimensiona e liberta-se da condição limite e limitante de sua capacidade intelectual e social.
Uma nova têmpera de homem, forjado pelo ‘fogo’ da leitura e a alegria de viver e fazer viver, é tudo que perseguimos, no escopo da humanização do homem, que deve ultrapassar-se a si mesmo, em razão da ressignificação de sua existência
Sótero Araújo Medrado é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e coordenador do Café Phylo
Fonte: Caros Amigos
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