Texto de Marcos Coimbra, publicado no sítio da CartaCapital.
Entre as várias coisas que não constam do anteprojeto de reforma política elaborado pela Comissão Especial do Senado, uma das mais interessantes é o voto de desconfiança do eleitor. Se fosse proposto, em um gesto improvável de ousadia de seus ilustres membros, seria recebido com palmas pelo público.
Não por acaso, sequer há, em português, expressão equivalente ao que em inglês é chamado recall vote. Ela não existe em nosso vocabulário político, tão estranha a nossos costumes é a ideia. Mas é uma instituição simples, que a população brasileira aprenderia rapidamente a usar. Ela é, enfim, coerente com práticas cada vez mais comuns nas relações de mercado. Quem não ouviu falar no recall de algum produto? São automóveis, aparelhos eletrônicos, utilidades domésticas, que a toda hora têm de voltar para as fábricas, para reparo ou troca de peças. Até remédios já foram objeto derecall......
Em todos os casos, são produtos suspeitos, cujo uso poderia prejudicar alguém ou colocar o consumidor em risco. Já pensou o que aconteceria se um carro defeituoso perdesse os freios e saísse por aí matando pessoas? Melhor chamar os proprietários à oficina para corrigir o problema.
Por que não ter algo parecido para nos proteger dos maus políticos? Governantes incompetentes, deputados corruptos, senadores venais, causam muito mais mal ao País do que liquidificadores barulhentos. Por que não devolvê-los e pedir a restituição do mandato?
É preciso não confundir o voto popular de desconfiança (ou recall eleitoral) com algo que a população brasileira conhece bem, pois aconteceu há pouco tempo. Impeachment é diferente.
A Constituição estabelece essa possibilidade nos casos em que os mandatários infringem a lei. Para que um presidente, por exemplo, seja removido por impeachment, é necessário que se prove que cometeu um crime de responsabilidade. No recall, não é preciso crime algum. Basta que um determinado número de pessoas o proponha, entendendo que o eleito não faz o que se esperava dele ou que contraria o que prometera em campanha. Se a maioria do eleitorado estiver de acordo, tudo fica resolvido: sai um, entra outro.
Não são muitos os países que adotam esse tipo de referendo. E neles os casos de maus políticos removidos dessa forma são raros. O que sugere que talvez nossas elites não precisem ter muito medo de adotá-lo, pois é possível controlar seu uso indiscriminado e desestabilizador.
Os Estados Unidos são o país onde a instituição é mais tradicional e mais integrada à cultura política. Volta e meia, moções para o recall de alguém são apresentadas, na maior parte das vezes contra ocupantes de cargos no Executivo, quase sempre prefeitos. Mas, nos últimos 30 anos, apenas em 15 oportunidades o processo terminou com a perda de um mandato.
O caso mais famoso aconteceu na Califórnia, em 2003. O governador do maior estado americano, Gray Davis, teve de se submeter a um voto popular de desconfiança, perdeu e foi obrigado a sair. Aliás, foi nessa eleição de recall que um ex-exterminador do futuro resolveu se lançar candidato (aproveitando-se do desgaste dos “políticos tradicionais”). Arnold Schwarzenegger venceu e começou sua carreira.
Lembremos as circunstâncias daquela eleição: Davis havia sido reeleito no ano anterior, mas enfrentava com enorme incompetência a crise de energia que, desde 2001, paralisava a economia regional e enfurecia as pessoas. Pelas leis estaduais, a moção para realizá-la precisava do apoio de 12% dos eleitores, conseguido em até 160 dias. Quase 50% a mais das assinaturas necessárias foram coletadas. A eleição foi feita e a perda do mandato aprovada por 55% dos votos.
Quantos políticos brasileiros teriam sido mandados para casa se tivéssemos algo semelhante? Não estava em questão se Davis havia cometido algum crime. Ele era, apenas, um governador que administrava o estado de forma equivocada, revelando-se incapaz de responder a um apagão (será que ele se parece com algum político brasileiro?). Temendo o prejuízo de aguentá-lo por mais três anos, a maioria preferiu acabar logo com o sofrimento.
Em casos parecidos (e em outros, nos quais as pessoas suspeitam que um político é mais do que incompetente), o voto popular de desconfiança poderia ter efeitos salutares no Brasil. Talvez fosse usado de maneira tão parcimoniosa quanto nos Estados Unidos. Mas traria dois benefícios: diminuiria a sensação de onipotência tão comum no meio político e aumentaria a percepção da importância do cidadão na política. Duas coisas que ajudam a consolidar a democracia.
Esse é apenas um exemplo de instituição que não temos e poderíamos ter. Existem várias outras, testadas e aprovadas em diversos países. Pena é que a reforma política que estamos fazendo seja tão acanhada e conservadora. Era hora de inovar.
Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi. Também é colunista do Correio Braziliense.
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