segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Reflexões sobre o Haiti

Algumas Reflexões sobre a História do Haiti e Suas Durações

por Maria Clara Carneiro Sampaio

O historiador norte-americano Eric Foner escreveu sobre a independência do Haiti (no início do século XIX): “A espiral econômica descendente que deixou o Haiti como uma das nações mais pobres do hemisfério pareceu também demonstrar a muitos observadores do século XIX que uma nação camponesa de ex-escravos leva necessariamente ao desastre econômico”.

A lição que Foner depreendeu da experiência dos haitianos, entretanto, não foi o que observadores do séculos XIX, XX e XXI ainda parecem ver na miséria da ilha. O que Foner quis demonstrar não é o que inconscientemente ficou cristalizado no pensamento racista dos oitocentos (e dos novecentos e dos anos 2000), que é, a grosso modo, que a experiência de uma nação de negros ex-escravos jamais poderia alcançar contornos políticos, sociais e econômicos desenvolvidos. Nessa linha, conclui o autor: “Nascida da revolução escrava, a república negra representava uma ameaça permanente para as sociedades escravocratas no Novo Mundo e para os impérios do Velho. Por esse motivo o Haiti era tratado como um pária pela comunidade internacional”.

Se depois do terrível terremoto e do caos humanitário já se sabe bem mais sobre ilha; se já a reconhecemos mais facilmente dentre o emaranhado de ilhas do Mar do Caribe, muitos de nós ainda desconhece esse outro lado interessante da história do país, talvez porque ainda concebemos o Haiti como “pária internacional”. O irmão negro e mais pobre na América. Se desde a independência até hoje mais de 200 anos se passaram, algumas das circunstâncias dela ainda ecoam na forma como o país conduziu sua vida política e econômica até aqui.

O Haiti, que ocupa a parcela ocidental de uma das maiores ilhas da região, já foi a jóia das Antilhas no século XVIII, sob domínio colonial da França. Seguindo o padrão econômico mais ou menos uniforme das Américas, o Haiti foi um dos maiores exportadores de açúcar, dentre outros gêneros como o algodão e o café, da época. Esse padrão, a grosso modo, envolveu o privilégio do cultivo de itens valorizados no mercado internacional, cultivo esse feito em sua maioria em propriedades rurais de grande porte e com grande incidência do emprego de trabalho escravo de origem africana em larguíssima escala.

Se no início do século XVIII a realidade do Haiti – chamada então de Saint-Domingue – parecia-se muito com as realidades das ilhas vizinhas, e mesmo de colônias continentais, as últimas décadas dos anos setecentos fizeram dela uma das primeiras nações a se separar da metrópole nas Américas. Embora os conflitos entre escravos e senhores - colônia e metrópole - tenham começado antes do início do século XIX, tendo a notável e complexa figura de Toussaint L’Overture como o grande articulador da abolição da escravidão na ilha, o ano simbólico da independência do país é 1804 – quando L’Overture já havia sido preso e morrido - devido a declaração de independência de Jean Jacques Dessalines.

Embora tenhamos o exemplo dos Estados Unidos, cuja declaração de independência da Inglaterra é de 1776, o caso do Haiti é especial porque sua conturbada independência envolveu justamente a abolição geral e irrestrita da escravidão, abalando os dogmas do trabalho cativo como base produtiva de grandes porções do território das três Américas. Até mesmo a porção sul dos recém-independentes Estados Unidos ainda utilizavam o trabalho escravo de origem africana como um de seus pilares de produção. Era a primeira colônia, ex-colônia, que abolia a escravidão negra em todo seu território.

A abolição da escravidão no Haiti e sua independência, entretanto, preencheram processos sociais longos e violentos, cujas conseqüências podem ainda se perceber. No final do século XVIII, a realidade social das colônias francesas no Caribe, mas especialmente no atual Haiti, era a de uma maioria esmagadora de escravos mantidos majoritariamente nas fazendas, de uma pequena elite – branca - proprietária dessas fazendas e dos escravos, e uma incipiente massa de libertos, mestiços e livres.

Com a simbólica queda da Bastilha em Paris, em 1789, a França mergulhou em sua Revolução, se vendo obrigada a afrouxar o controle militar das colônias na América, por estar ela mesmo afundada em terrível guerra civil. Se por um lado, a situação política e fática da metrópole contribuiu para que os escravos antilhanos de diversas ilhas acirrassem sua resistência à escravidão e lutassem pela liberdade, é preciso pensar que o fim da escravidão nas Américas, no atual Haiti, foi uma luta não só cotidiana e pessoal ao longo dos séculos, mas também foi uma revolução de idéias de liberdade que tomavam o pensamento e as armas na França revolucionária, mas que também se expressava nas pequenas e grandes ações por todo o Novo Mundo.

A emancipação e independência no Haiti conseguiram resistir às tentativas dos exércitos de Napoleão – e de outras metrópoles, como a Inglaterra - de restabelecer a escravidão em suas colônias (e que obtiveram sucesso na Martinica, por exemplo). A luta dos haitianos para construir sua identidade nacional e reconstruir seu país depois de tantas sangrentas batalhas ainda estava por encontrar as maiores dificuldades nos anos por vir.

Se a base econômica do país sempre fora a agricultura de exportação, uma vez aniquilado ou exilado o grupo social dos proprietários de terras e escravos, manter o mesmo nível de exploração dos então recém-libertos para manter a produção haitiana competitiva no mercado internacional não condizia mais com as aspirações dos milhares negros que experimentavam a liberdade pela primeira vez. Os haitianos em sua maioria tendiam a fugir das fazendas nas quais haviam trabalhado como escravos e procuravam encontrar novas localidades para se restabelecer, através da agricultura de subsistência ou da produção para o crescente mercado interno.

As terras passaram a ser controladas pelo estado e políticas sucessivas de trabalho forçado foram impostas nas décadas seguintes na tentativa de manter a agricultura de exportação como estrutura da economia. A despeito da violência e das iniciativas de manter o país como grande exportador de produtos primários a realidade econômica haitiana obedeceu uma lógica decrescente por todo o século XIX, marcada pela evasão da população das grandes propriedades estatais e pela emergência de um campesinato. Campesinato esse que se afastava cada vez mais dos desejos do Estado em manter as grandes propriedades exportadoras.

A experiência da independência parecia, portanto, a prova real de que os negros, camponeses, jamais conseguiriam construir um país com instituições políticas complexas. O que muitos deixaram de fora de suas reflexões foram os empecilhos que as grandes potências metropolitanas da época impuseram ao recém-independente estado. O reconhecimento diplomático do Haiti foi um processo demorado e custoso. Com poucos anos de liberdade o país já sofria um encargo econômico irrazoável de indenizar os fazendeiros franceses expulsos. E para além da dívida externa o Haiti ainda foi submetido à quarentena de seus parceiros comerciais de longa data, circunstâncias que criavam um abismo cada vez maior entre o Estado haitiano e a população.

Uma nação independente de negros nas Américas colocava em perigo o delicado equilíbrio entre senhores e escravos de todas as localidades, bem como, colocava em cheque a estrutura de economia exportadora de bens primários. Tão perigosa parecia a revolução de idéias abolicionistas no Haiti, quanto haviam sido as sangrentas batalhas contra os exércitos de Paris. A idéia de um país de ex-escravos em um mundo mergulhado na escravidão era assustadora não só para a Europa, mas para as elites escravocratas de toda América.

Um dos resultados da revolução haitiana foi a falta de interesse da comunidade internacional em restabelecer laços comerciais e culturais. E se não bastasse todo o medo internacional que mais revoluções escravas pipocassem no mundo atlântico, já no século XX os interesses imperialistas apenas se renovaram na ocupação militar dos Estados Unidos entre os anos 1915 e 1934, em mais uma tentativa relativamente frustrada de refazer a estrutura de imensas propriedades voltadas para a exportação. Ainda assim a experiência de séculos de exploração intensa da população nessas grandes propriedades parece ter pairado como uma sombra nefasta empurrando os haitianos a resistir em suas pequenas propriedades por todos os confins do território, a despeito dos projetos de sucessivos governos mais ou menos estáveis de reinstalar o regime econômico da grande propriedade exportadora.

Assim como o século XIX, o século XX tem seus próprios processos históricos, mas é impossível negar o vácuo criado entre a experiência de luta pela liberdade dos haitianos e a construção de seu Estado, por vezes preocupado em re-inserir a nação nos mesmos moldes de nação exportadora de bens primários da sua pré-revolução.

O descompasso entre um projeto social de liberdade e um projeto estatal de sobreviver através de um comércio internacional enforcado pelos antigos e novos parceiros comerciais, abrem brechas para se refletir sobre a continuidade desses conflitos do século XIX. O Haiti do século XX viu ditaduras violentas após o fim da ocupação norte-americana, talvez confirmando essa separação entre um projeto social camponês, duramente reprimido, e um Estado instável, incapaz de construir instituições políticas sólidas e um projeto nacional conciliador.


Maria Clara Carneiro Sampaio é bacharel em Direito pela PUC-SP, bacharel e mestre em História pela USP. O seu mestrado foi sobre projetos de colonização (expatriação) de ex-escravos norte-americanos na Amazônia Brasileira, proposto no Governo Lincoln. Atualmente, faz doutorado no Programa de História Social da USP. A sua pesquisa amplia o estudo do mestrado, para propostas semelhantes feitas simultaneamente para diversos países da América Latina,inclusive Haiti.

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