domingo, 17 de janeiro de 2010

Os fuzís mudos, os sabres inúteis


A tragédia que se abateu sobre o Haiti na visão de Mauro Santayana do JB.


Ainda não sabemos quantos brasileiros morreram no Haiti. Há milhares de pessoas desaparecidas, e é difícil saber exatamente quantos de nossos compatriotas – incluídos turistas e voluntários das organizações humanitárias – se encontravam em Porto Príncipe no entardecer de terça-feira. A crônica de desastres semelhantes é nisso tenebrosa: o número de vítimas cresce ao serem removidos os escombros.

À maioria deles – os soldados e os voluntários sociais – não devemos somente as lágrimas do luto, mas a homenagem que se destina aos heróis. Eles não pereceram em guerra de conquista, nem em expedição punitiva. Estavam ali em nome da paz. Procuravam minorar a situação de crueldade que se iniciou há 500 anos, quando, depois da viagem de Colombo, que mudou a História, os espanhóis começaram a colonizar a ilha a que aportara o navegador. Foi a Santo Domingo que chegaram os primeiros negros no hemisfério ocidental. Eles vieram para substituir os índios que o governador espanhol, Nicolas de Ovando, tentara, sem êxito, escravizar: os nativos, acostumados à liberdade, não aceitaram o jugo – e foram praticamente extintos em todas as ilhas do Caribe. Como costuma ocorrer, as boas intenções levam ao inferno: o padre Bartolomeo de Las Casas, que assessorava o governador, foi quem lhe sugeriu importar negros da África, a fim de substituir os índios.

Como todas as forças armadas do mundo, as nossas atuam de acordo com seu tempo e a natureza do Estado a que servem. Poucas foram as expedições externas dos soldados brasileiros. Da Guerra do Paraguai – não obstante as nossas razões legítimas, a de defesa do território nacional que havia sido violado – não temos só a notícia do heroísmo, mas também a do excesso nos combates e na repressão. Ressalve-se que os comandantes militares de ofício – Osório e Caxias – agiram dentro das regras militares. Caxias, depois da vitória de Humaitá, e da entrada vitoriosa em Assunção, considerou a guerra terminada, mas o imperador decidiu enviar para o Paraguai o seu genro, o francês Gastão de Orleães, Conde d’Eu, a fim de perseguir o fugitivo Lopez. Ele, de espada virgem, quis fazer-se herói sobre um povo já vencido e destruído, e, de acordo com historiadores paraguaios, chegou a incendiar hospital onde se encontravam feridos. Sua atuação inadequada contribuiu para que muitos militares aderissem à ideia republicana, logo depois do retorno à pátria.

A nossa presença na Itália, apesar das dificuldades, foi gloriosa. Com a força expedicionária preparada rapidamente e corpo de aviadores recrutado entre jovens sem nenhuma experiência, marcamos os anais da guerra com atos de extraordinária bravura, ainda que a grandeza dos combatentes sempre se deva mais à causa pela qual lutam do que a seu resultado. E nunca é demais relembrar que os exércitos existem para defender a nação como um todo; não para servir a uma ou outra facção política interna, a uma ou a outra classe social.

Os soldados que morreram no terremoto do Haiti são tão heróis quanto os que tombaram em Monte Castelo e em Lomas Valentinas. Eles deixaram suas famílias, seus amigos, suas noivas, e partiram para uma guerra pela paz, contra a miséria e todas as suas consequências. De repente, as imprevistas forças da natureza irromperam, como em uma emboscada. Contra elas de nada poderia sua coragem. Assim caíram indefesos, os fuzis mudos, os sabres inúteis.

Os outros mortos foram também soldados da mesma causa, como é o caso da doutora Arns. A médica, que salvou milhares e milhares de crianças brasileiras da morte prematura, sentira a necessidade de desdobrar-se, de salvar também as crianças haitianas. São momentos assim que nos mostram a possibilidade de um mundo único e novo, no qual as fronteiras políticas não signifiquem trincheiras, mas apenas marcos de jurisdição política.

Sarkozy (a França deve ter mauvaise conscience com relação ao Haiti) está propondo esforço internacional para a reconstrução do país. Espera-se que não se trate apenas de reconstrução física dos edifícios, mas de verdadeira construção humana, com escolas, hospitais, moradias, trabalho, justiça e esperança.

Fonte: Blog do Urias

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