por Luiz Carlos Azenha
Vi o documentário Cidadão Boilesen. Muito bom. Excelente. Avança em uma área onde não existia filmografia no Brasil. Abre caminho para outros documentaristas.
Mas faço reparos.
Em primeiro lugar, o documentário passa a impressão de que os militares e seus associados civis apenas reagiram ao risco de comunização do Brasil. Acho que esse debate ficou frouxo no filme. Havia mesmo esse risco?
O segundo reparo é que o documentário diz, sim, que os industriais brasileiros tinham muito a perder em um regime "revolucionário" ou "comunista", partindo do pressuposto de que havia mesmo esse risco. Perderiam o investimento feito, os bons negócios. Mas -- e o arrocho salarial?
Assim como aconteceu no Chile, com Pinochet, no Brasil o princípio foi o mesmo: os militares assumiram o poder para fazer a "modernização" brasileira na marra, dentro de um modelo econômico satisfatório para Washington, com a supressão da organização popular e sindical. Um dos objetivos centrais era promover o arrocho salarial.
Ora, porque é que a FIESP fechou com os militares? Porque é que o então ministro Delfim passeava com o Boilesen? Porque é que os empresários estrangeiros, como o próprio Boilesen, apoiavam os militares e a tortura? A Operação Bandeirantes? Não era apenas porque os empresários "tinham medo do comunismo": os empresários tinham medo é dos movimentos sociais, dos sindicatos e das organizações populares que lutavam pelo aumento do salário mínimo, por melhores condições de vida, contra a "carestia" (a inflação que transferia renda dos pobres para os mais ricos) e em defesa de direitos adquiridos anteriormente, inclusive sob João Goulart.
Ao se fixar na personalidade de Boilesen, tentando inclusive estabelecer uma relação bizarra entre um episódio da infância do empresário na Dinamarca e a presença dele nas salas de tortura da OBAN -- ao tentar "psicologizar" Boilesen, o documentário passa a impressão de que ele era uma "maçã podre" em um cesto de maçãs, os empresários brasileiros. Em minha opinião, isso desvia o foco da questão essencial: aos empresários o regime servia por promover o arrocho salarial, a cartelização do mercado brasileiro e os "favores" que fizeram muitos grupos empresariais florescer.
O golpe, assim, não foi apenas "anticomunista", mas, no plano não ideológico, também foi "anticapitalista": promovia o interesse de alguns capitalistas em detrimento de outros. Basta ver o que aconteceu com os empresários identificados com o governo de João Goulart, como Mário Wallace Simonsen.
Sim, sim, sei que o foco do documentário era Boilesen. Mas se as informações acima não ficam claras para os espectadores, fica a impressão de que Boilesen, um homem mau, foi "justiçado" por "terroristas" por ir além do papel que se esperava dele, de mero financiador da OBAN.
Está tudo lá, no livro 1964: A Conquista do Estado, de Rene Armand Dreifuss. O golpe marcou a conquista do Estado por um grupo de empresários nacionais e estrangeiros, aliados aos militares e a Washington, cujo principal resultado foi a supressão de direitos políticos e econômicos já conquistados, a supressão das ferramentas que poderiam ser utilizadas para novas conquistas e o arrocho salarial.
Ao definir a tortura como reação apenas a "terroristas" ou a um suposto "perigo vermelho", o documentário -- em minha opinião -- erra o foco. A tortura foi um instrumento extremo de um regime que suprimiu os direitos e a liberdade de todos os brasileiros, não só dos militantes de esquerda armados; quem não apanhou foi violentado cotidianamente em seus direitos, das reivindicações salariais à liberdade de expressão.
Havia, sim, dois grupos: de um lado os militares, seus aliados civis e estrangeiros e os torturadores. De outro, o Brasil quase inteiro. Os "terroristas" eram uma ínfima parte das vítimas: eles não aceitavam apanhar calados.
Minha principal crítica ao documentário é essa: cadê o povo brasileiro?
Aos empresários que cresceram durante o regime militar, tirando proveito do arrocho salarial e de outras benesses, interessa agora promover um certo revisionismo histórico -- contam para isso com muitos porta-vozes na mídia. Feito as "armas de destruição" do Iraque, eles logo vão descobrir que o MRT tinha um petardo atômico pronto para promover a comunização do Brasil. Assim como aos militares, naquela época, interessava "bombar" o poder de organizações minúsculas e inexpressivas, agora o discurso está de volta: vão tentar convencer você que a ALN (Aliança Libertadora Nacional) foi pior que a Al Qaeda.
Mas, repito: o documentário é importante, tem muitas informações e depoimentos relevantes e serve para fomentar o debate que nunca tivemos sobre o regime militar.
PS: Como escreveu recentemente Alípio Freire em uma carta endereçada ao ministro Paulo Vannuchi, em breve chega aos cinemas outro documentário, Reparação, que parece ser um esforço explícito de provocar um debate nos termos que interessam ao mesmo grupo que lucrou com o golpe e que quer, a qualquer custo, reconquistar o estado.
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