Eram felizes à sua maneira. Andavam nus e nunca tinham ouvido falar do pecado original. No paraíso onde viviam, eram centenas, milhares, milhões de Adãos e Evas. Entre eles e a natureza havia um amor recíproco. Amor feito de respeito e solidariedade.
Suas crianças gozavam de todos os privilégios. Seus velhos eram os depositários da sabedoria e da tradição. Menores abandonados, nem pensar. Idosos descartáveis, uma heresia. Ninguém explorava ninguém. A palavra lucro não tinha significado. Viviam em comunidade e suas necessidades eram supridas coletivamente.
Tinham vários deuses, porque não eram egoístas. Eram deuses com letra minúscula, é verdade, que habitavam as águas, as árvores, as montanhas e os campos. Mas não eram deuses mercantilistas. Ignoravam o dando é que se recebe. E não obrigavam ninguém a se ajoelhar. Mas sempre que solicitados, davam ares de sua graça. Para apagar incêndios ou para regar os campos de milho, mandioca ou batata. Não eram vingativos. Não diziam " não matarás!" e mais adiante " vá a Canaã e passe todos pelo fio da espada!".
Mas eram deuses com letra minúscula.
Um dia, suas terras foram alcançadas por homens vestidos dos pés à cabeça. Desembarcaram de suas naus ostentando estandartes e dois pedaços de madeira em forma de cruz. Explicaram que aos estandartes davam o nome de bandeira, com bê maiúsculo, símbolo de sua nação. E a cruz, com cê maiúsculo, era o símbolo de seu deus, com dê maiúsculo.
E por tais símbolos matariam ou morreriam se preciso fosse.
Os nativos, penalizados, lamentavam a pobreza dos visitantes. Apenas um deus... Onde já se viu? Não conseguiam imaginar um deus único, vivendo eternamente só, sem uma companheira, ou alguém com quem pudesse compartilhar toda a imensidão do universo. E o que dizer, então, matar ou morrer por um pedaço de pano? Quantos já não haviam matado para conseguir todos aqueles tecidos para cobrir o corpo? Mas os receberam bem, por entender que convivendo juntos, pudessem melhorá-los.
Encheram-nos de presentes.
Os visitantes julgaram a recepção pacífica e os presentes como sinal de fraqueza. E antes de desembainhar as espadas, ajoelharam-se diante da Cruz para dar graças ao seu Deus.
Todos sabem o que aconteceu depois.
A Cruz e a Bandeira promoveram festividades para relembrar os 500 anos do "descobrimento" e convidaram os nativos.
Pergunta-se, o que os naturais da terra têm a comemorar, além do sarampo, varíola, malária, tuberculose, alcoolismo, prostituição e sua quase extinção...
Mas Justiça seja feita.
Eles ganharam o privilégio de ter apenas um deus, com D maiúsculo, além de aprender a vestir camisetas, calções, sandálias havaianas e de serem batizados com nomes cristãos.
Peri virou Galdino e Galdino virou tocha humana em Brasília.
Moral da história. Cada um tire a sua.
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