Um dos problemas do argumento culturalista é que ele é burramente preguiçoso e muitas vezes é apenas uma outra face do naturalismo. Muitos neoconservadores tentando fazer do limão uma limonada, argumentam que o reconhecimento jurídico do casamento gay nos EUA ocorreu por causa da moldura libertária inscrita na cultura cristã ocidental. É o velho raciocínio culturalista (ideológico) batido do “gene” de origem.
Ignora e menospreza (ideologicamente), o papel da história de lutas dos movimentos civis por reconhecimento, em particular, do movimento LGBTI. Os movimentos sociais, de modo geral, contribuem para direta ou indiretamente para importantes mudanças sociais, uma vez que visibilizam e inserem na esfera pública demandas de reconhecimento até então desconhecidas, possibilitando processos coletivos de aprendizado e atualização do conteúdo semântico de noções de justiça. Se dependêssemos exclusivamente do “gene” cultural cristão de origem, estaríamos ainda jogando pedras em mulheres e gays nas praças públicas (lembrando que muitos cristãos obscurantistas ainda fazem ou desejam essa prática). Evidentemente, o cristianismo, precisamente, o humanismo cristão participou ativamente em diferentes lutas por reconhecimento, não enquanto bloco coletivo coeso, mas enquanto segmentos ou frações internas da tradição cristã que flertam mais com o secularismo e com ideais de emancipação (exemplo de teólogos batistas que lutaram por direitos civis nos EUA e de lideres católicos vinculados a Teologia da Libertação que lutam contra a pobreza e desigualdade social). Mas mesmo esses não se inspiram unicamente no cristianismo e em alguns casos reinterpretam seletivamente a teodiceia de justificação da ação coletiva.
Desmente também o raciocínio culturalista dos neconservadores o fato de importantes lutas sociais terem sido travadas no interior do próprio cristianismo e este, como é sabido, já sofreu mudanças valorativas internas desde sua origem (a Reforma Protestante não foi um acordo de cavalheiros cristãos, basta lembrar a sangrenta Noite de São Bartolomeu). Além disso, o problema no argumento neoconservador é que ele ignora (movido por má fé) dois fatos empíricos, exaustivamente abordados e investigados por estudiosos da religião e da cultura (mitólogos, sociólogos, historiadores, etnólogos e teólogos).
Em primeiro lugar, não faltam declarações no cristianismo ocidental de exclusivismo moral, isto é, que princípios valorativos não devem ser aplicados a coletividades exteriores da comunidade religiosa ou política cristã. Algumas vertentes conservadoras do neopetencostalismo e o catolicismo conservador norte-americano são casos exemplares de negação do reconhecimento social de formas de arranjos familiares fora da matriz cristã. Defendem um sentido estreito exclusivista de dignidade humana, deixando de fora formas de vida que não fazem parte da confissão religiosa cristã.
Em segundo lugar, em todas as tradições religiosas mundiais (hinduísmo, judaísmo, budismo, confucionismo, cristianismo e islamismo) encontramos “potenciais universalistas” e “cerceamentos particularistas”. Nesse caso, Mahatma Gandhi e Dalai Lama são os melhores exemplos. Outro caso exemplar é a atual encíclica papal que incorpora no conteúdo do humanismo cristão uma compreensão ecológica que já existe em outras tradições religiosas, a exemplo do budismo.
Considerando os dois fatos acima mencionados, o que vai ser decisivo para qual direção vai se inclinar determinada confissão religiosa na relação pendular entre potenciais universalistas e cerceamentos particularistas é o estado de luta entre os grupos sociais que disputam poder e hegemonia no interior de cada tradição religiosa. No interior do catolicismo, por exemplo, o grupo do qual faz parte o atual Papa Francisco se inspira nas ideias reformistas e ecológicas de São Francisco de Assis (lembrando que se trata de uma doutrina que não é uma unanimidade no interior das diversas correntes ideológicas internas do catolicismo).
Enfim, a história do cristianismo é uma história de avanços e recuos civilizatórios, de acréscimos e supressão de ideias, de interpretações e reinterpretações de sua teodicéia. Essa história processual precisa ser considerada para não se idealizar ingenuamente uma tradição cultural que não é e nunca foi estática.
O mesmo pode ser dito em relação ao liberalismo norte-americano. Seu conteúdo semântico mudou bastante desde sua articulação teórica mais explicita nos escritos políticos de John Locke, no século XVII. Ao contrário das mentes equinas que tomam o liberalismo como homogêneo, o reduzindo ao liberalismo econômico ( que também não é homogêneo), existem várias vertentes em conflito no interior do espectro do liberalismo – principalmente no liberalismo político. Conflitos dinamizados sobre o próprio sentido de liberdade, jamais entendido de modo único e muito menos como apenas “liberdade individual” ( um hiperbem moral compartilhado por filósofos libertarianos, mas que não é o único sentido de justiça do liberalismo e, em muitas de suas variantes nem é o mais discutido). Além de divergências internas entre as vertentes utilitaristas, libertarianas e comunitaristas, ainda existem os conflitos ideológicos entre diferentes sentidos de “libertação”: a distinção entre “libertação como emancipação” e “libertação como autonomia contra as formas de alienação” pode parecer sútil, mas não para os seus articuladores e interpretes (1). Isso explica por exemplo o conflito político intenso e ideológico entre os dois mais importantes partidos liberais dos EUA: o partido republicano e o partido democrata. E explica também as diferenças de preferência partidário-ideológica entre os mais diversos grupos sociais e minorias (mulheres, negros, latinos etc.). Ou seja, há uma heterogeneidade (sincrônica e diacrônica) de ideias, atores e influências (internas e externas) tanto no cristianismo quanto no liberalismo que não permite determinar um único nexo causal, nem muito menos decisivo.
Assim, os ideólogos são artífices da má-fé porque ocultam a diversidade de ideias e sentidos de justiça (2). São ideólogos justamente porque em meio a uma derrota ideológica, tentam converter em sucesso hoje a experiência do fracasso de ontem. A exemplo disso, neoconservadores brasileiros que flertam diariamente com os autoritarismos de políticos obscurantistas como Bolsonaro e Marco Feliciano resolveram agora violentar a inteligência pública e defender que o reconhecimento legal do casamento gay nos EUA é mais um exemplo que confirma as “virtudes” do capitalismo liberal-cristão-ocidental.
Os neoconservadores provam que a razão cínica não tem fronteiras e que pode nadar de braçadas no oceano da escatologia. O reconhecimento jurídico do casamento gay foi o resultado-síntese de uma constelação de fatos sociais, dentre os quais, merece ser destacado as lutas históricas por reconhecimento do movimento gay, o liberalismo (mas não apenas ele), o forte engajamento político do partido democrata e, em particular, a atuação pessoal do presidente Barak Obama (um político do partido democrata, mas também um protestante secularista) e claro, para desgosto amargo dos neoconservadores, da força e legitimidade do Estado Constitucional de Direito – a Suprema Corte (um aparelho estatal) bateu o martelo final.
Como não podem admitir a derrota histórica nos EUA, a versão canarinho e canalhinha do Tea Partynorte-americano resolve reinterpretar os fatos históricos e sociais ao seu gosto escatológico de uma sociodicéia libertariana (o DNA liberal-cristão-capitalista-ocidental-norte-americano é o ponto de partida e de chegada da história evolutiva). Os jovens crentes e bobos da corte libertariana que sonham com o Brasil um dia se tornar Brazil comem o discurso como gado em pasto. Uma das facetas do raciocínio ideológico dos neoconservadores é ocultar a história dos conflitos e contradições, e narrar um conto de fadas para adultos. Confundem condição necessária com condição suficiente. Assim fica mais fácil iludir o outro e se auto-iludir. Assim opera a fábrica ideológica de rebanhos domesticados.
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1) Para quem deseja os diferentes sentidos de “libertação” e como são agenciados seletivamente por diferentes grupos sociais em conflito, destaco a leitura obrigatória de “O novo espírito do capitalismo” (Luc Boltanski e Ève Chiapello).
2) Para saber mais sobre os diferentes sentidos de justiça em disputa no interior do liberalismo político, vale a pena a leitura de ” Justiça: o que é fazer a coisa certa” (Michael Sandel) e “Esferas da Justiça” (Michael Walzer) e “Contextos da Justiça” (Rainer Forst).
vi no : http://www.cartapotiguar.com.br/2015/06/30/a-miseria-da-ideologia-libertariana-do-tea-party-brazileiro/
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