Nossa sociedade convive com naturalidade com extremos de desigualdade e abismos intransponíveis entre cidadãos |
Marcos Coimbra, CartaCapital
Desde que nos entendemos por gente, nossa sociedade convive com naturalidade com extremos de desigualdade e abismos intransponíveis entre os cidadãos. Um sintoma, para recordar um fato que todos conhecem, é termos sido o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão.
O sentimento antipopular das elites e das velhas camadas médias é tão antigo quanto o Brasil. Elas pensam dessa forma desde a colônia e assim chegaram ao século XXI. Entre nós, a solidariedade com o próximo e a disposição a participar do debate em busca de soluções para dilemas coletivos sempre foram baixas. E pioram diante do avanço do individualismo, que alimenta uma cultura onde a indiferença é regra e ninguém se sente verdadeiramente responsável por nada. Onde os indivíduos transferem aos outros a solução de seus problemas e esperam que o governo aja como se fosse sua babá.
Os marchadeiros e paneleiros da atualidade apenas fingem o desejo de assumir as rédeas da sociedade. Querem, no fundo, recapturar o Estado para recolocá-lo a seu serviço e deleitar-se em berço esplêndido com a recompensa.
Mesmo depois de proclamada a República, o Brasil continuou a ter um sistema político minúsculo. Até a Revolução de 1930, tão graves eram as restrições à participação eleitoral que somente comparecia às eleições entre 2% e 5% da população. Após a restauração da democracia em 1945, a proporção subiu, mas permaneceu perto de 15%. Mais de dois terços da população adulta não tinham representação política quando veio o golpe de 1964, há apenas cinco décadas.
Ao longo do século XX, a normalidade democrática foi exceção. Fomos submetidos a duas longas ditaduras e sofremos mais de uma dezena de golpes de Estado, entre os bem e os malsucedidos. Militares das Três Armas saíram dos quartéis para derrubar governos eleitos ou impedir a posse do vencedor, sempre em resposta aos apelos de civis inconformados com a democracia. O golpismo parece inscrito nos genes da cultura política brasileira. Nenhuma surpresa que as oposições atuais o revigorem.
Nossa cultura é antidemocrática não apenas por ter aversão à presença do povo no centro da vida política. Um de seus traços mais característicos é o culto à excepcionalidade, que só admite líderes “notáveis” e considera que o cidadão comum é inapto para ocupar “cargos elevados”, em especial a Presidência da República.
Nas representações ideológicas mais típicas do período que vivemos desde os anos 1990, Fernando Henrique Cardoso foi o “intelectual brilhante”, que, a golpes de genialidade, teria racionalizado e modernizado o capitalismo brasileiro. Lula, a “ expressão verdadeira do povo”, que, com sensibilidade e compromisso social, promoveu a democracia substantiva e a civilização de nossa sociedade.
E Dilma Rousseff, que lugar teria entre “gigantes” como esses? Que trajetória épica poderia justificá-la?
Nossa cultura política, constitutivamente autoritária e elitista, exige de quem exerce a função de presidente uma predisposição a ocupar um lugar solar. Ela não consegue livrar-se do mito do presidente como centro do sistema político, em torno de quem orbitam as instituições e seus integrantes.
Este segundo mandato de Dilma pode ser decisivo para a modernização da política brasileira. Dele podemos sair com uma cultura mais democrática, menos suscetível ao golpismo e mais contemporânea, emancipada de mitologias que sempre nos limitaram."
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