terça-feira, 10 de março de 2015

Os 10 mandamentos da Reforma Política que o Brasil não fará


Gilberto Bercovici e Walfrido Jorge Warde Jr, Carta Maior

'A grita pelo sangue da classe política repete o ciclo deplorável de unção, delinquência e repúdio, a que se submeteram todos os governos da nova República. Esse padrão, renitente, marca a paralisia de tudo o que importa para o Brasil. Um país que assiste, bovinamente, os voos de galinha do gigante que, outrora adormecido, acordou, mas que teima em rolar, eternamente deprimido, em berço esplêndido.

A breve vida dos governos e de seus heróis tem-nos impedido de construir um país melhor, de fazer reformas essenciais para aplacar as desigualdades sociais, para prover-nos a competitividade capaz de alçar o Brasil à sua verdadeira estatura. Todas essas reformas dependem, contudo, de uma reforma essencial, que as antecede: a reforma política.


A nossa absoluta carência de um adequado regramento da política responde por todas as crises de corrupção, pela descrença na política e nos políticos, pelo cinismo e pelo banditismo político desavergonhado no Brasil.

Mas se basta fazer uma reforma política para colocar o Brasil nos trilhos que nos levarão à glória, por que, então, não a fazemos? Por que não a fizemos antes?!

Implementar uma reforma política significa cassar privilégios, estabelecer democraticamente as funções do Estado, estabelecer os limites do Estado nas relações com o cidadão, desmantelar organizações político-criminosas, enfrentar com coragem e patriotismo as mazelas do país.

Os autores deste artigo, mesmo descrentes, ousam expressar aqueles que seriam (e que podem ser, se o povo realmente quiser) os 10 mandamentos da Reforma Política que o Brasil não fará:



1º O financiamento público de campanha ou o financiamento privado associativo.
É a única maneira de impedir que os interesses egoísticos de poucas empresas se sobreponham, em razão do poder econômico, aos do cidadão comum, das coletividades e dos legítimos grupos de pressão. A adequada disciplina do financiamento de campanha também refreará o manejo prostituído das relações público-privadas, sobretudo a malversação de recursos de empresas públicas e o superfaturamento dos preços de obras e de serviços prestados ao Estado, com fins de financiar sub-repticiamente o acesso ao poder político.

2º A regulamentação do lobby pré e pós eleitoral.
Não podemos simplesmente fingir que o lobby não existe. A conduta das pessoas e das organizações que medeiam as relações entre a sociedade civil e a classe política precisa ser fiscalizada e submetida a uma absoluta transparência. Um enquadramento legal das frentes parlamentares é, nesse particular, elemento essencial. Não é aceitável que se organizem bancadas multipartidárias, financiadas por poucas empresas privadas, sem qualquer controle do Estado e do cidadão.

3º O financiamento meritocrático da empresa privada pelo Estado.
É indispensável uma revisão dos critérios ao financiamento estatal das empresas privadas, com mais recursos às micro, às pequenas e às médias empresas. As linhas de crédito providas por bancos públicos, e a aquisição de títulos de dívida ou de participação societária devem atender critérios de utilidade pública e de mercado. Não é possível que aos amigos sejam entregues todos os recursos. Ao mesmo tempo, o Estado não pode opor uma competição devastadora aos meios privados de financiamento. Essa competição responde, de um lado, pelo pálido resultado do nosso mercado de capitais, e, de outro, pelas taxas de juros escorchantes, a que se submete a esmagadora maioria dos brasileiros.


4º A racionalização da ingerência estatal sobre os fundos de pensão, em especial as Entidades Fechadas de Previdência Complementar organizadas por empresas públicas e os Regimes Particulares de Previdência Social.
Não se pode perder de vista que, aqui, o interesse em jogo é o do trabalhador brasileiro, na preservação e capitalização de sua poupança, para que seja capaz de zelar por sua subsistência no período de inatividade que segue à aposentadoria. Qualquer ingerência estatal deve se submeter evidentemente ao interesse nacional e às finalidades próprias das entidades de previdência complementar. Essas organizações não podem se sujeitar à pequena política, financiar campanhas eleitorais à sorrelfa ou entreter relações promíscuas com o particular. Nesse caso, o melhor é que a estratégia pontual de investimento das chamadas “fundações” seja entregue exclusivamente a profissionais de mercado, sujeitos à observância, no geral, do interesse nacional e, no particular, do interesse do trabalhador beneficiário.

5º A transformação do Supremo Tribunal Federal em uma verdadeira Corte Constitucional.
Deve haver mandato fixo para seus membros e escolha dos mesmos pelo Presidente da República e Congresso Nacional. Importante dar voz, nessa indicação, aos grupos menos representados, a exemplo do modelo alemão, em que a maioria parlamentar e também a minoria podem indicar um juiz da Corte Constitucional. Além disto, o Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, deve dedicar-se às questões de cunho efetivamente constitucional, deixando de ser a última instância recursal do país.

6º A racionalização do ativismo judicial.
O ativismo judicial, disseminado em todas as instâncias do judiciário nacional, consuma um verdadeiro esvaziamento da política e dos políticos pelo Poder Judiciário. Surpreende – no Brasil e mesmo nas democracias europeias ou dos Estados Unidos – que pouco enfrentamento tenha tal cenário desencadeado da parte da sociedade e de outros poderes políticos. Ao promulgar-se a Emenda Constitucional 45/2004 reafirmou-se não somente a súmula vinculante como a pretensão do Supremo Tribunal Federal de revestir-se na condição de soberano, como se fosse o único corpo político a deter a última palavra sobre quase tudo. Há mais: como único ator institucional a ter o poder de decisão para reforma de suas próprias súmulas vinculantes, o Supremo Tribunal Federal desvincula-se de si próprio, procurando ratificar sua soberania sobre o poder constituinte. Nesse sentido, é indispensável à retomada do debate iniciado com a Proposta de Emenda à Constituição nº 33, de 2011, a qual “altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição”.

7º A manutenção do sistema proporcional.
No Brasil, a representação gira tradicionalmente em torno de duas ideias fundamentais. A primeira é a do mandato livre e independente, isto é, de que os representantes, ao serem eleitos, não se submetem às reivindicações e aos interesses de seus eleitores. É o representante quem possui a capacidade de discernimento para deliberar sobre os verdadeiros interesses dos seus constituintes. A segunda ideia fundamental é o princípio de que o sistema democrático representativo deve se basear no governo da maioria. Praticamente todas as leis eleitorais que vigoraram no Brasil buscaram a formação de maiorias compactas capazes de governar. Essas grandes ideias nos levaram ao abandono do sistema majoritário (que vinha desde o Império) para a instituição, em 1932, do sistema proporcional. Os sistemas de representação proporcional são reconhecidos como os mais representativos, reproduzindo melhor a vontade do eleitorado ao permitir a representação das minorias. Eles também conduzem ao multipartidarismo, à fracionalização eleitoral e partidária e à instabilidade política. Por sua vez, o sistema majoritário ou distrital nada mais é que o reforço das questões paroquiais e locais em detrimento das nacionais, elegendo representantes vinculados apenas ao seu distrito ou região e reduzindo a pluralidade de ideias e opiniões passíveis de serem representadas no Poder Legislativo. É impossível um sistema proporcional perfeito, mas ainda assim, por permitir a representação de todas as correntes, com o reforço do papel dos partidos políticos como entes capazes de organizar a atuação política dos representantes eleitos, é mais democrático e é preferível ao sistema majoritário.

8º A ampliação dos instrumentos de participação popular.
Devem ser criadas organizações e canais institucionais capazes de pavimentar a comunicação entre a sociedade civil e o Estado e desintermediar a democracia e o exercício da cidadania. A participação popular, por meio de plebiscitos, referendos, projetos de iniciativa popular, participação em conselhos, audiências públicas, etc., é o que dá vida e estabilidade a um regime efetivamente democrático. É prática corrente em todos os países democráticos, como os Estados Unidos, a Suíça, a Itália, etc. Apelidar os instrumentos de participação popular, previstos na Constituição e nas leis que regem o país, como “populistas”, “demagógicos” ou “bolivarianos” nada mais é do que expressar a demofobia que toma conta de boa parte de nossa elite política e econômica.

9º A participação popular na elaboração orçamentária.
A alocação dos recursos arrecadados pelo Estado deve decorrer de políticas de Estado, jamais do compadrio e do atendimento a interesses escusos. A elaboração dessas políticas pressupõe uma intensa vigilância e participação dos diversos segmentos da sociedade civil. A transparência na alocação, distribuição e emprego dos recursos públicos deve ser ampliada e o controle popular estimulado, reforçando a cultura de defesa da res publica e do interesse público em detrimento do patrimonialismo.

10º A consolidação de uma cultura de controle e transparência sobre a gestão pública.
A questão do controle público sobre o Estado no Brasil continua pendente. Ainda não conseguimos adotar soluções eficazes e legítimas para impedir ou cercear o arbítrio e irresponsabilidade da atuação do Estado, bem como sua corporativização e privatização. Para tanto, devemos superar o ideário de controle liberal, ou seja, não podemos simplesmente alargar as instituições de controle liberais tradicionais, desprezando o controle público e democrático pelos cidadãos. Os meios judiciais não são também eficientes. O Ministério Público não salvará a República. O Supremo Tribunal Federal tampouco o fará. O desafio continua sendo encontrarmos um modo de submeter a critérios sociais e democráticos a atuação, ou omissão, do Estado, através de um controle político e efetivamente democrático.

O desprezo a essas questões essenciais ao país nos lançará a um eterno bater de panelas. O povo deve assumir seu papel na construção de um país melhor. Não serão governantes isolados capazes de salvar a pátria, tampouco os únicos responsáveis por seu malogro. Essa é uma tarefa de todos e de cada um dos brasileiros e brasileiras."

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