“Estamos conseguindo superar essa seca duríssima sem levar a população a riscos e sofrimento”, afirmou o governador Geraldo Alckmin ao jornal O Estado de S.Paulo em agosto de 2014. O tucano havia descartado um plano de racionamento de água elaborado pela Sabesp em janeiro daquele ano, o mesmo período oficial do começo da crise hídrica. No mês seguinte, começaram os rodízios forçados de água em regiões abastecidas pelo sistema Cantareira.
Na prática, a água costumava acabar no período da madrugada sem aviso prévio da Sabesp e de nenhuma outra autoridade. Era uma espécie de racionamento, embora, nos projetos, a empresa fornecedora de água descartasse qualquer tipo de redução no fornecimento.
A negligência do governador, ao barrar o rodízio que poderia ter começado logo com o projeto de janeiro de 2014, está documentada em um email enviado ao promotor Otávio Ferreira Garcia. A correspondência foi anexada em um inquérito civil instaurado em 22 de julho do ano passado. O autor é o próprio jornalista do Estadão, Fabio Leite, que entrevistou Alckmin. “Creio que esse documento possa ajudar na investigação da crise da água. Se o plano tivesse sido posto em prática, a partir de fevereiro [de 2014], a economia teria chegado a 120 bilhões de litros, 12,3% da Cantareira, sem sacrificar os demais sistemas”. A mensagem é de 4 de fevereiro deste ano e consta na investigação do Ministério Público.
O DCM teve acesso ao documento “Rodízio do Sistema Cantareira 2014”, recusado por Alckmin em janeiro do ano passado, e também ao arquivo “Plano de Contingência II”, que foi formalizado pela Sabesp em junho. O segundo documento foi obtido com exclusividade. Comparando ambos, é possível ver como o discurso sobre os problemas do sistema Cantareira mudou radicalmente após a decisão do governador.
“Evitar o colapso”
O projeto de racionamento da Sabesp pensado em janeiro de 2014 foi elaborado pelo superintendente da unidade de produção de água da empresa, Marco Antônio Barros. A iniciativa traz dados sobre a situação de mananciais, cujas áreas foram devastadas, além de preocupações com o bem-estar da população e utiliza a palavra “colapso” para se referir ao esgotamento das reservas do Cantareira.
“Todas as estratégias foram adotadas concomitantemente no intuito de evitar a adoção do rodízio, pelo constrangimento que este causa à população”, afirma o documento de racionamento em seu tópico sobre o histórico do problema, abordando as medidas adotadas em 2013. E ele estabelece como objetivo “reduzir a produção do sistema Cantareira para evitar o colapso de seus mananciais”.
O uso do termo “colapso” é evitado publicamente tanto pela Sabesp quanto pelo governador Geraldo Alckmin. Fala-se em “crise hídrica”. A adoção de um rodízio era a última alternativa da Sabesp, segundo o projeto. O volume morto não foi mencionado em nenhuma passagem.
A situação de outras reservas é alarmante, segundo o mesmo arquivo. “O sistema Guarapiranga também está no seu limite de captação, com base na sua outorga para retirada de água da manancial. Com isso seria uma ampliação do sistema do Alto Tietê sobre o Cantareira, tornou-se praticamente inviável em caráter perene, servindo apenas para manutenções temporárias”.
O plano de rodízio foi entregue ao Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE), cumprindo a formalidade para obter a aprovação e tentar evitar o pior antes do agravamento da seca na região sudeste. De acordo com o documento, a ARSESP (Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo), nomeada pelo governo Alckmin, seria a responsável pelo monitoramento da execução e alterações de contratos.
Em fevereiro, Geraldo Alckmin barrou o plano e a Sabesp lançou o programa de bônus para reduzir a conta do cidadão que fechar mais sua torneira. Foi uma “decisão técnica”, sob a justificativa de que o racionamento reduziria a pressão nas tubulações e contaminaria a água. O problema é que o volume morto também reúne sedimentos do fundo das represas que fazem mal à saúde se não forem corretamente tratados.
Os rodízios se tornam “malefícios”
Um segundo documento foi produzido pela diretoria metropolitana da Sabesp, sob tutela de Paulo Massato há 11 anos, em junho de 2014. No “Plano de Contingência II”, a palavra colapso desaparece e entra uma série de medidas para controle de vazões, tratamento de água e toda e qualquer medida que mantenha o sistema funcionando.
Este plano se insere nos investimentos de R$ 1,1 bilhão que a Sabesp passou a realizar, sobretudo na contenção de vazamentos de água. A ideia por trás da contingência é que a otimização da distribuição e de toda a infraestrutura seriam suficientes para manter o sistema funcionando no volume morto até o reestabelecimento das chuvas.
O racionamento é tratado como uma solução precipitada, mesmo se for organizado de maneira exemplar.
“O Plano de Contingência II está, então, evitando que a população seja submetida ao rodízio e aos malefícios correspondentes à sua implementação, cujos mais impactantes são os riscos à saúde pública devido às pressões negativas às quais as redes ficam submetidas”. O documento conclui que, além da diminuição da qualidade da água, o corte no fornecimento mobilizaria um contingente grande de mão de obra que a Sabesp deveria evitar para investir na melhoria da infraestrutura.
Em janeiro de 2015, mais de seis meses depois, Dilma Pena disse que ordens diretas do governo Alckmin evitaram falar sobre a falta de água. Paulo Massato falou para os paulistanos deixarem sua cidade natal. Os dois áudios vazaram de reuniões internas da Sabesp.
“Falta de transparência”
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi aprovada na Câmara dos Vereadores em 6 de agosto de 2014. Nelo Rodolfo (PMDB) e Ari Friedenbach (PROS) assumiram a relatoria e vice-presidência, respectivamente, do grupo de políticos que investiga irregularidades da Sabesp. Outros nomes que estão fazendo requisições à empresa são Nabil Bonduki (PT) e Laércio Benko (PHS).
Bonduki se licenciou no dia 3 de fevereiro para assumir a Secretaria Municipal de Cultura, no lugar do novo ministro Juca Ferreira. No entanto, o então vereador deixou um documento sobre suas contribuições para a CPI que dão um panorama sobre as ingerências da Sabesp. O DCM teve acesso exclusivo ao arquivo.
“A crise é resultado de uma combinação de fatores: gestão tradicional de água com foco em obras de ampliação de demanda, degradação de mananciais e aumento de consumo; pouco espaço de participação da sociedade e falta de transparência da gestão da água; seca extrema e déficit de chuvas, em especial no sistema Cantareira”, explicou Nabil Bonduki.
Com formação em arquitetura e urbanismo, Bonduki é doutor em estruturas ambientais urbanas pela Universidade de São Paulo (USP) e fala com propriedade sobre o conjunto de fatores que levaram a Sabesp a chegar próximo do colapso de sua principal reserva hídrica.
Este documento da CPI frisa que o programa de redução de perdas de vazamentos não atingiu o resultado esperado. Bonduki também caracteriza como “sistêmica” a atitude da Sabesp em buscar outras reservas para repor estoques de águas, sem ter uma ação localizada para captar recursos das chuvas e de formas de reuso do líquido.
“Outro ponto importante é a falta de transparência por parte da Sabesp e do governo do estado sobre cortes de fornecimento de água, bem como a falta de articulação com outras instâncias de governos”, explica Nabil Bonduki. O Ministério Público Federal (MPF) chegou a recomendar formalmente que a gestão Alckmin executasse, com a Sabesp, o racionamento de água publicamente. Essa ação não aconteceu desde o mês de janeiro de 2014.
O governo Alckmin é o maior acionista da companhia e, como o lucro é da venda de volume de água, o rodízio não era uma alternativa interessante.
O problema é que essa decisão forçou um racionamento feito de forma velada, enquanto os cortes foram desconsiderados do planejamento. Nesta mudança de percurso, a ideia de “colapso hídrico” foi abandonada e voltou com a seca de janeiro na Cantareira, que fez o nível cair até 5%. Chuvas não esperadas em fevereiro fizeram a reserva subir para 10%.
Mas hoje se fala abertamente em começar um racionamento por temores de um colapso das reservas do sistema. A palavra proibida voltou a tona. Primeiro o governador Alckmin cogitou o mês de março para iniciar o processo de maneira pública. Hoje a iniciativa pode começar só na metade de 2015.
“As eleições de 2014 podem ser consideradas como um fator agravante para a crise de água em São Paulo, uma vez que as decisões mais radicais como racionamento e multa foram evitadas no período”, diz Nabil Bonduki. Alckmin foi reeleito no primeiro turno com mais de 12 milhões de votos.
Esta é mais uma reportagem da série do DCM dedicada a investigar o papel da Sabesp e de seu controlador, o governo do estado de São Paulo, na crise da falta de água. As demais matérias estão aqui.
Pedro Zambarda de Araujo
No DCM, via http://www.contextolivre.com.br/2015/02/alckmin-descartou-plano-da-sabesp-de.html
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