Notei, para meu espanto, que muitos brasileiros comemoraram a execução de Marco Archer pelo Estado indonésio no sábado passado. É um pouco chocante ver o grau de violência que as pessoas devotam a um crime ordinariamente sem vítimas como é a venda de drogas. Mas não é algo aberrante da tendência de uma boa parcela da população brasileira e mesmo do Estado brasileiro. Uma tentação a que cedemos cada dia mais um pouco. Há entre nós quem sonhe com o rigor de uma Indonésia ou de uma Arábia Saudita. Cortar mão de ladrões, aí sim…
Falo da tentação de impor penas draconianas – muito severas e exemplares – como maneira de fazer valer a lei. Já que o jeitinho e a corrupção são onipresentes, pensam muitas pessoas e autoridades, o negócio é colocar penas absurdamente pesadas para ver se isso coíbe o comportamento julgado indesejável. Parcela expressiva, se não a maioria, da população apoiaria a pena de morte se ela fosse a plebiscito. De forma mais genérica, todos os novos tipos de violação que nosso sistema legal cria têm vindo com penas duríssimas.
Foi com essa ideia de punir exemplarmente que impuseram a todos os motoristas a absurda Lei Seca. Comportamentos completamente normais, como um casal que sai e toma um vinho, foram criminalizados e recebem uma punição ridiculamente alta. Tudo isso para impedir alguns atropelamentos causados por jovens trêbados que gostam de correr com seus carros à noite. Ao invés de pensar num nível razoável de álcool no sangue e, mais importante, tratar isso como tantas outras infrações de trânsito, e um agravante quando está associado a um acidente, foram pela via fácil da punição extrema. O resultado é uma situação hipócrita, que não tem como funcionar: poucos seguem a lei, e um ou outro desafortunado acaba caindo nas garras da polícia e tem sua vida seriamente prejudicada, tudo por agir de forma normal e sem causar dano ou risco a mais ninguém.
Com a lei do cigarro foi a mesma coisa. Se uma única pessoa acende um cigarro no estabelecimento, ele é multado e depois pode até ser fechado. E como a lei tem um grau de precisão nada razoável, proibindo o fumo mesmo sob toldos parciais, isso criou a situação desagradável de bares tendo que ser extremamente rudes com seus clientes que ousam acender um cigarro num lugar em que ele pouco incomoda os outros. E ainda impossibilitou que pessoas que assim o queiram possam se reunir num lugar público e fumar, ato que, embora ruim para a saúde, tem um papel de facilitador social e psicológico para muitos de seus usuários.
A causa ambiental também concentra muito desse sentimento. A Prefeitura do Rio, por exemplo, passou a multar desde 2013 quem joga lixo na rua, inclusive bitucas de cigarro. O que for menor que uma latinha já recebe multa de R$ 157. Ao invés de instruir ou dar à pessoa a chance de recolher o que jogou, a ideia é cair matando mesmo, para corrigir pelo medo o mau hábito dos cidadãos e encher os cofres da Prefeitura.
É o mesmo espírito, por fim, que leva tantos a desejar que corrupção vire “crime hediondo”. A ideia de políticos corruptos sofrendo por tudo que roubaram aquece o coração de muitos brasileiros indignados que se sentem impotentes perante megaesquemas que todos os dias aparecem na mídia.
Em meio a essa sanha punitiva, poucas vozes ousam se erguer e propor algo diferente. E curiosamente, essas vozes costumam vir da esquerda, como o deputado Jean Wyllys, que embora defenda que homofobia se torne crime (no que discordo dele), não quer que as pessoas vão para a cadeia ou paguem multas pesadas depois de xingar um gay. Aposta em penas educacionais e advertências; sabe que punições severas só aumentam a tensão social e acostumam o povo a viver cada vez mais pelo medo.
É o desejo de vingança que move os defensores de penas draconianas. O sentimento de que, finalmente, os que se dão bem à custa deles pagarão cada centavo do que devem –e ainda mais um pouco. Não percebem que, com isso, condenam a si mesmos, posto que muito poucos neste país seguem rigorosamente todas as leis.
E esse é o dado mais engraçado. Ver que esse tipo de atitude, de querer punir exemplarmente criminosos, malfeitores e todos os que violam as regras do momento, é apoiado por gente que quebra as regras rotineiramente, que aliás é a maior parte da população. Nosso sistema legal não é passível de ser seguido na íntegra, pois causaria uma redução muito grave na qualidade de vida da população. Quem entra em êxtase ao pensar no maconheiro indo pra cadeia, ou no cara que jogou cigarro no chão pagando duzentos reais, tenta dar um jeito para ele ou seu lindo filho escaparem da mesmo destino quando acontece com eles.
Joel Pinheiro - Paulista, formado em Economia pelo Insper e mestre em Filosofia pela USP.
suguei do: http://spotniks.com/o-sistema-legal-nao-deveria-servir-para-saciar-nossa-sede-de-vinganca/
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