Deflagrada em março deste ano, a Operação Lava Jato da Polícia Federal já conta com sete fases que investigam um grande esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Nesta quinta-feira, o Ministério Público Federal do Paraná ofereceu denúncias contra 36 investigados pela operação, e o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou que os envolvidos no esquema de desvio de recursos da Petrobras “roubaram o orgulho dos brasileiros”. O histórico de investigações de corrupção na empresa remonta a 1988 — o que não significa que antes não houvesse desvios.
Ainda no governo Sarney, o alto escalão da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras, foi afastado após denúncias de um esquema envolvendo aplicações financeiras ou contratações bancárias. Depois, no governo Collor, em 1992, apurou-se o aliciamento de funcionários e operação de um sistema de propinas dentro da estatal. Em 1996, o jornalista Paulo Francis acusou a alta cúpula da Petrobras de ter contas na Suíça, e foi processado.
Em entrevista ao Portal, os jornalistas Suely Caldas e Ricardo Boechat, que atuaram diretamente na apuração das primeiras denúncias; e Nelson Hoineff, que reconstitui no documentário Caro Francis o caso de seu amigo Paulo Francis, revisitam estes episódios e avaliam que, se os momentos são diferentes, há pelo menos dois pontos em comum entre eles e as investigações agora em curso: entre os envolvidos estão afilhados de partidos e governantes, e o dinheiro desviado sempre sai dos fundos de pensão das estatais.
O Caso BR
A série de reportagens do Estado de S. Paulo intitulada “O Caso BR”, dos jornalistas Ricardo Boechat, Suely Caldas, Aluizio Maranhão e Luiz Guilhermino, realizada em dezembro de 1988, denunciava um esquema de desvio na Petrobras durante o governo José Sarney, resultando em desfalque de pelo menos US$ 20 milhões nos cofres da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras. A investigação rendeu aos repórteres o Prêmio Esso de Reportagem em 1989. A série começou após denúncias do presidente do BNDES contra a BR. Segundo banqueiros, auxiliares ligados ao presidente da empresa, general Alberico Barroso, faziam chantagem para ganhar comissão sobre as transferências da estatal com os bancos. Barroso, indicado pelo presidente Sarney, não fez carreira na empresa e chegou assumindo os cargos mais altos.
A jornalista Suely Caldas, professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, lembra que a operação era feita com a diferença de dinheiro da inflação:
— A quadrilha que se instalou na Petrobras era comandada pelo general Barroso. Eles achacavam os bancos e faziam duplicatas dos postos de gasolina da BR Distribuidora para descontar numa rede de bancos, entre eles o Rural (o banco esteve envolvido em outros escândalos de desvios de dinheiro, como no esquema PC Farias, no governo Collor, e no Mensalão do PT. Ex-presidente do banco, Katia Rabello foi presa justamente por envolvimento no Mensalão). Diziam para depositar na conta da Petrobras dez dias depois, pois a inflação era muito alta, e ganhavam por fora. Na época, se o dinheiro valia dez cruzados num dia, daqui a dez dias valia 70. Essa diferença de dinheiro era dividida entre os funcionários do esquema do general e os banqueiros. Os auxiliares de Barroso utilizavam bancos pequenos para retirar a parte desviada.
Em junho de 1988, a BR estabeleceu critérios mais rígidos para as tranferências, e a aprovação de novas contas passou a depender de autorização da diretoria da empresa. Esse documento foi ignorado quando Geraldo Nóbrega, diretor financeiro da Petrobras, assumiu como vice-presidente da estatal, em setembro. Após a denúncia, o Conselho Administrativo da Petrobras sugeriu a demissão de Barroso e Nóbrega, que foi acatada.
Durante as investigações internas na Petrobras, o nome de Eid Mansur foi citado pelos banqueiros como o principal intermediário. Barroso, Nóbrega e Geraldo Magela, chefe de gabinete de Barroso, negavam conhecer Mansur.
Após a conclusão das investigações, a sindicância da BR divulgou um relatório especificando as ações dos funcionários e estimando em US$ 4 milhões o desvio dos cofres da estatal. No mesmo dia em que o documento foi divulgado, os três acusados prestaram depoimento. Todos negaram conhecer Eid Mansur, mas se contradisseram em vários pontos. Após o fim do depoimento, Barroso admitiu ser próximo de Magela — o presidente da BR morava em uma casa que pertencia ao auxiliar —, mas ressaltando que achava que ele parecia ser “uma pessoa correta”. E afirmou que não iria entregar o cargo.
Até que Suely obteve um vídeo em que os quatro aparecem tomando champanhe juntos:
— O presidente Sarney continuava a defender o general. Mas a imprensa toda estava investigando Barroso. Um dia estava na redação e me ligou uma fonte da BR Distribuidora dizendo: “Suely, eu vi o depoimento em que o general Alberico Barroso declarou não conhecer Edir Mansur. Tenho um vídeo aqui em que aparecem ele, os dois comparsas e o Edir Mansur tomando champanhe numa festa da BR”. Fui até lá com um fotógrafo e tiramos fotos do vídeo. Publicamos no jornal, e isso desmoralizou o general. Era uma prova de que ele mentira. Sarney não teve como sustentá-lo na direção da BR Distribuidora. Barroso saiu, mas dizendo que se demitiu. Foi presidir a Petrofértil.
No dia seguinte ao da divulgação das imagens, a Polícia Federal abriu investigações para apurar o caso. Com a demissão de Nóbrega e o afastamento de Magela, pedidos anteriormente pela Comissão Administrativa da estatal, o presidente da Petrobras, Armando Guedes, afirmou que com tais medidas administrativas o caso poderia estar fechado.
As investigações se estenderam por meses, até que no dia 14 de março de 1989 o juiz da 26ª Vara Criminal do Rio, Edson Vasconcelos, decretou a exclusão do general Barroso e de Geraldo Nóbrega do inquérito do caso BR.
Parceiro de Suely na apuração, Ricardo Boechat é categórico: aqueles não foram os primeiros indícios de irregularidades e desvios de verbas da empresa: “Certamente já se pilhava a Petrobras há muito tempo, e em muitos outros setores”. Para ele, não há comparação entre este caso — “de dimensão infantil diante dos atuais” — e o atual:
— A única coisa que liga os dois esquemas é a retaguarda politica de ambos. Os envolvidos, então e agora, eram afilhados de partidos e governantes. Ou seja: o elo que amarra as bandalheiras contra a estatal (e outras) é a apropriação do Estado brasileiro pelas máfias político-partidárias. Isso sempre existiu. Espero que, desta vez, ao menos, os culpados sejam condenados. Parece pouco, mas olhar para o passado é enxergar uma loooonga sequência de impunidades.
O Esquema PP
Em março de 1992, outra série de reportagens do jornal Estado de S. Paulo denunciou um novo caso de corrupção envolvendo a estatal brasileira. O episódio ficou conhecido como “esquema PP”, referência ao então ministro de Assuntos Estratégicos, Pedro Paulo Leoni Ramos, acusado de operar um sistema de cobrança de propinas na Petrobras e em fundos de pensão de estatais. As reportagens lançaram pela primeira vez suspeitas de corrupção dentro do governo do presidente Fernando Collor de Mello, envolvendo os fundos e a exportação e a importação de combustíveis.
A série foi produzida novamente por Suely Caldas e Aluizio Maranhão e, que tiveram como fonte off the record (que fala sem se identificar) o presidente da Petrobras na época, Luiz Octávio da Motta Veiga. Ele declarou aos repórteres que Collor tentava montar um esquema de corrupção. “Por não aceitar participar, se declarou com os dias contados dentro da empresa, o que de fato aconteceu”, lembra Suely.
Com Motta Veiga fora, Collor pôs Ernesto Weber na presidência da Petrobras. “Aí começaram a rolar as coisas: Collor inaugurou o aliciamento de funcionários”. De acordo com a apuração da jornalista, o advogado João Alves, que tinha um escritório na Avenida Rio Branco, chamava funcionários da Petrobras e dizia a eles: “Precisamos da sua ajuda. Você será promovido a um cargo de diretoria ou superintendência se viabilizar alguns processos. Caso não colabore, será rebaixado e, talvez, congelado na empresa”. Alguns aceitavam, outros não.
— Os que não aceitavam me procuraram. Tive um primeiro encontro com esse grupo de seis funcionários de carreira da Petrobras. Alugamos uma sala em um clube no Centro da cidade e nos encontrávamos. Basicamente existiam três empresas, cujas sedes eram na torre do shopping Rio Sul, que pertenciam a um compadre do Pedro Paulo Leoni Ramos — conta Suely, que resume: — Esse papo de compadrio sempre dá em crime.
As empresas passaram a intermediar milionárias operações de exportação e importação para a Petrobras, como uma compra de derivados de petróleo da Argentina com preço superfaturado. Elas eram desconhecidas pelo mercado e pelos fornecedores e, no entanto, surgiram como as principais negociadoras da maior empresa da América Latina. Como a Petrobras deveria negociar apenas com empresas de renome e confiáveis, para não serem descobertas, elas passaram a operar.
Suely lembra que, nesta época, não parava de receber denúncias anônimas, o que tornava a apuração ainda mais delicada:
— Até que um funcionário de uma empresa estatal de portos me procurou dizendo que o esquema tinha chegado aos fundos de pensão e, não só a esse, mas ao da Vale, do Banco do Brasil, da Petrobras e dos Correios. Onde é que o Estado tem dinheiro no Brasil? Nas estatais e nos fundos de pensão das próprias estatais, cujos funcionários depositaram a vida toda para ter uma pensão na velhice, e estavam sendo roubados. Aí se estendeu a investigação aos fundos de pensão. É onde tem o dinheiro. Foi assim com Sarney, com Pedro Paulo, e está sendo agora com o PT.
Para investigar tais irregularidades, foi instaurada uma CPI no Senado. O inquérito da Polícia Federal e o processo na Justiça valeram a Suely Caldas dois depoimentos e duas acareações: com Pedro Paulo Leoni e como advogado João Alves, responsável pelo aliciamento de funcionários.
— Lá fui eu. A primeira a depor. Tinha uma tropa de choque do Collor para tentar me fazer cair em contradição — conta ela, lembrando que a Comissão de Valores Mobiliários comprovou os desvios em vários fundos, e Collor foi obrigado a afastar Pedro Paulo do governo, além de mudar outros ministros.
Mais que isso, as reportagens do Esquema PP foram o estopim para as investigações de corrupção no governo Collor, que levaram ao impeachment:
— Na realidade, tudo era um esquema único, e o mandante era o ex-presidente Fernando Collor. Comecei a publicar a matéria em março, e quando chegou junho já havia CPI do Collor, havia o movimento de impeachment e os caras-pintadas.
Caso Paulo Francis
Em uma polêmica edição do programa Manhattan Connection, do canal GNT, em 1996, o jornalista Paulo Francis acusou a diretoria da Petrobras de fazer parte de um esquema de desvio de recursos, mantendo contas em paraísos fiscais. A alta cúpula da companhia o processou por calúnia na Justiça americana, uma vez que Francis morava em Nova York, numa ação em que cobrava US$ 100 milhões.
O processo começou em outubro de 1996. O alto valor do processo não intimidou o jornalista, que voltou a repetir as acusações no programa. Apesar de muitos o interpelarem para retirar as acusações contra Francis, inclusive o presidente da República na época, Fernando Henrique Cardoso, o presidente da Petrobras, Joel Rennó, só retirou o processo em fevereiro de 1997, mês em que o jornalista, morreu, de infarto.
O jornalista e cineasta Nelson Hoineff, amigo de Paulo Francis, fez um documentário em 2010 sobre o controverso jornalista opinativo.
— A sensação que fica é que o Francis ficou mesmo muito abalado por esse processo da Petrobras. Ele, que foi o meu melhor amigo durante 20 anos, deixava visível claramente em algumas atitudes o impacto desse processo.
No filme, muitos dos entrevistados, também próximos a Francis, afirmam que o processo pode ter abalado a saúde do jornalista.
Conservador liberal, Paulo Francis era polêmico e pregava a inoperância das estatais brasileiras. Apesar de sua linha pensamento conhecida, a denúncia contra a Petrobras foi surpreendente, pois a empresa na época já era a maior da América Latina. A fonte da informação sobre os desvios para paraísos fiscais foi um advogado, de acordo com o que Francis afirmou à época. Hoineff acredita que o teor das denúncias de Francis não se compara com os atuais:
— Aquilo não era o esquema atual, porque hoje existe uma estrutura de perpetuação de poder. Aquele momento ainda era do PSDB, portanto não havia essas nomeações da diretoria com o propósito de roubar dinheiro da empresa para botar no partido. Não havia isso. Mas já havia a corrupção, mas ninguém ousava pensar nisso, e o Francis dizia isso abertamente no ar. Francis tinha a qualidade que eu mais admiro em um jornalista, e que eu tento seguir muito, que é a coragem.
A Petrobras está sendo processada atualmente nos Estados Unidos, por acionistas que acusam a empresa de divulgar informações falsas e prejudicar investidores. A ação cita “esquema multibilionário de corrupção” na estatal”.
Davi Raposo e Paula LaureanoNo DCS-PUC-Rio
via: http://www.contextolivre.com.br/2014/12/corrupcao-na-petrobras-primeiro.html