sábado, 2 de fevereiro de 2013

O que o medo pode ensinar


 Walker comenta em conferência a conexão entre o medo e a imaginação

Oásis / Brasil 247

A escritora Karen Thompson Walker durante conferência em Londres, para o TED
Vídeo: TED-Ideas Worth Spreading. Tradução para o português: Isabel Villan. Revisão: Gislene Kucker

Imagine que você é um marinheiro náufrago à deriva na imensidão do Oceano Pacífico. Você pode escolher uma de três direções e salvar a si mesmo e a seus companheiros - mas cada escolha vem com uma temida consequência também. Como escolher a melhor opção? Contando a história do baleeiro Essex, a romancista Karen Thompson Walker demonstra como o medo impele a imaginação, à medida que nos força a imaginar possíveis futuros e como lidar com eles.

"Nossos medos podem representar ótimos presentes da imaginação... um modo para se antever o futuro enquanto ainda existe tempo para influenciar o modo como ele vai funcionar", diz Karen Thompson Walker

Vídeo da conferência de Karen Thompson Walker:


Tradução integral da conferencia de Karen Thompson Walker:

Um dia em 1819, a 3 mil milhas da costa do Chile, numa das regiões mais remotas do Oceano Pacífico, 20 marinheiros americanos assistiram a inundação de seu navio pela água do mar. Tinham sido atingidos por um cachalote que fizera um rombo catastrófico no casco do navio. Quando o navio começou a afundar sob as ondas, os homens se amontoaram em três pequenos barcos baleeiros. Esses homens estavam a 10 mil milhas de casa, a mais de mil milhas da nesga de terra mais próxima. Nos pequenos barcos, carregaram somente equipamento rudimentar de navegação e suprimento limitado de comida e água. Esses eram os homens do baleeiro Essex, cuja história inspiraria, mais tarde, partes do romance "Moby Dick".

Mesmo no mundo de hoje, a situação deles seria realmente terrível, mas pense quanto pior ela foi então. Ninguém em terra tinha ideia de que algo dera errado. Nenhuma equipe de busca estava procurando por esses homens. A maioria de nós nunca vivenciou uma situação tão assustadora como aquela em que os marinheiros se encontravam, mas todos sabemos como é ter medo. Sabemos como é sentir medo, mas não tenho certeza se passamos tempo bastante pensando sobre o que nossos medos significam.

À medida que crescemos, com frequência somos encorajados a pensar em medo como uma fraqueza, apenas mais uma coisa de criança a descartar como dentes de leite e patins. E acho que não é por acaso que pensamos dessa forma. Na verdade, os neurocientistas demonstraram que seres humanos são equipados para ser otimistas.Talvez seja por isso que pensamos em medo, algumas vezes, como um perigo em si mesmo. "Não se preocupe", gostamos de dizer um ao outro. "Não entre em pânico". Em inglês, medo é algo que nós vencemos. É algo que combatemos. É algo que superamos. Mas, e se olhássemos para o medo de uma nova maneira? E se pensássemos no medo como um ato surpreendente da imaginação, algo que pode ser tão profundo e perspicaz quanto onarrar histórias?

É mais fácil ver esta ligação entre medo e imaginação em crianças pequenas, cujos medos são com frequência extraordinariamente vívidos. Quando era criança, morei na Califórnia, que é, vocês sabem, na maior parte, um lugar muito agradável para viver. Mas para mim, uma criança, a Califórnia era também um pouquinho assustadora. Lembro quão apavorante era ver o lustre que pendia sobre a mesa de jantar balançando para frente e para trás durante o menor tremor de terra, e algumas vezes não conseguia dormir à noite, aterrorizada porque o Big One (terremoto) poderia nos atingir enquanto estávamos dormindo. E o que dizemos sobre crianças que têm medos como este é que elas têm uma imaginação vívida. Mas num certo ponto, a maioria de nós aprende a deixar para trás esse tipo de visões e cresce. Aprendemos que não há monstros escondidos debaixo da cama, e que nem todo terremoto destrói edifícios. Mas talvez não seja coincidência que algumas de nossas mentes mais criativas não conseguiram deixar para trás esse tipo de medo quando adultos. A mesma imaginação incrível que produziu "A Origem das Espécies", "Jane Eyre" e "Em Busca do Tempo Perdido", também gerou preocupações intensas que assombraram a vida adulta de Charles Darwin, Charlotte Bronte e Marcel Proust. Assim, a questão é: o que podemos aprender sobre o medo com visionários e crianças pequenas?

Bem, vamos retornar ao ano de 1819 por um momento, para a situação que enfrentava a tripulação do baleeiro Essex. Vamos dar uma olhada nos medos que a imaginação deles criava enquanto estavam à deriva no meio do Pacífico. Vinte e quatro horas tinham se passado desde o naufrágio do navio. Era hora de os homens fazerem um plano, mas eles tinham muito poucas opções. Em seu fascinante relato do desastre, Nathanel Philbrick escreveu que esses homens estavam tão distantes da terra quanto era possível estar de qualquer lugar na Terra. Os homens sabiam que as ilhas mais próximas que poderiam alcançar eram as Ilhas Marquesas, a 1.200 milhas de distância. Mas tinham ouvido alguns rumores assustadores. Diziam que essas ilhas, e várias outras nas redondezas, eram habitadas por canibais. Então os homens imaginaram-se chegando à praia apenas para serem mortos e comidos no jantar. Um outro destino possível era o Havaí, mas, em razão da estação do ano, o capitão tinha medo de que fossem atingidos por tempestades terríveis. A última opção era a mais longa, e a mais difícil: navegar 1.500 milhas em direção ao sul, na esperança de alcançar uma determinada região de ventos que poderiam finalmente empurrá-los em direção à costa da América do Sul. Mas sabiam que a extensão dessa viagem esgotaria seus suprimentos de comida e água. Ser comido por canibais, ser abatido por tempestades, morrer de fome antes de atingir a terra. Esses eram os medos que dançavam na imaginação desses pobres homens, acontece que, o medo a que escolhessem dar ouvidos decidiria se viveriam ou morreriam.

Bem, poderíamos simplesmente designar esses medos por um nome diferente. E se em vez de nomeá-los como medos, nós os chamássemos de histórias? Porque isso é realmente o que o medo é, se você pensa nisso. É uma forma não intencional de contar histórias que todos nascem sabendo fazer. E medos e contar histórias têm os mesmos componentes. Eles têm a mesma arquitetura. Como todas as histórias, os medos têm personagens. Em nossos medos, os personagens somos nós. Medos também têm enredos. Têm começo, meio e fim. Você embarca no avião. O avião decola. O motor falha. Nossos medos também tendem a conter imagens que podem ser, em cada pedacinho, tão vívidas como as que você encontraria nas páginas de um romance. Imagine um canibal, dente humano afundando na pele humana, carne humana assando sobre uma fogueira. Medos também têm suspense. Se fiz meu trabalho como narradora hoje, você deve estar imaginando o que aconteceu com os homens do baleeiro Essex. Nossos medos provocam em nós uma forma de suspense muito semelhante. Como todas grandes histórias, nosso medos focalizam nossa atenção numa questão que é tão importante na vida quanto é na literatura: O que acontecerá depois? Em outras palavras, nossos medos nos fazem pensar sobre o futuro. E humanos, a propósito, são as únicas criaturas capazes de pensar sobre o futuro dessa maneira, de projetar-nos à frente no tempo; e essa viagem mental no tempo é mais uma coisa que medos têm em comum com a narração.

Como escritora, posso dizer-lhes que grande parte do escrever ficção é aprender a predizer como um fato em uma história afetará todos os outros acontecimentos, e o medo funciona dessa mesma maneira. No medo, exatamente como na ficção, uma coisa sempre leva a outra. Quando estava escrevendo meu primeiro romance, "The Age Of Miracles", passei meses tentando imaginar o que aconteceria se a rotação da Terra subitamente começasse a diminuir. O que aconteceria a nossos dias? O que aconteceria a nossas colheitas? O que aconteceria a nossas mentes? E foi somente mais tarde que percebi quão semelhantes eram essas perguntas àquelas que eu costuma me fazer quando criança, assustada, no meio da noite. Se um terremoto nos atingir esta noite, eu costumava a me inquietar, o que acontecerá à nossa casa? O que acontecerá à minha família? E a resposta a essas questões sempre teve a forma de uma história. Portanto se pensamos em nossos medos como mais do que apenas medos, mas como histórias, devemos pensar em nós mesmos como os autores dessas histórias. Mas tão importante quanto isso, precisamos pensar em nós mesmos como leitores de nossos medos, e como escolhemos ler nossos medos pode ter um profundo efeito em nossas vidas.

Bem, alguns de nós leem naturalmente os medos mais exatamente que outros. Recentemente li um estudo sobre empreendedores bem sucedidos e o autor descobriu que essas pessoas tinham um hábito que ele chamou de "paranoia produtiva", o que significa que essas pessoas, em vez de descartar seus medos, essas pessoas fazem uma leitura detalhada deles, elas os estudam, e então traduzem aquele medo em preparação e ação. Dessa forma, se seus piores temores se tornarem realidade, suas empresas estão preparadas.

E às vezes, claro, nossos piores medos se tornam realidade. Essa é uma das coisas que são tão extraordinárias sobre o medo. Vez por outra, nossos medos podem prever o futuro. Mas talvez não possamos nos preparar para todos os medos que nossa imaginação inventa. Então, podemos distinguir entre os medos que valem a pena ouvir e todos os outros? Penso que o final da história do baleeiro Essex apresenta um exemplo esclarecedor, ainda que trágico. Depois de muita deliberação, os homens finalmente tomaram uma decisão. Aterrorizados pelos canibais, decidiram abrir mão das ilhas mais próximas e em vez disso embarcaram na rota mais longa e muito mais difícil para a América do Sul. Depois de mais de dois meses no mar, os homens ficaram sem comida, como sabiam que poderiam ficar, e ainda estavam bem distantes da terra. Quando o último dos sobreviventes finalmente foi recolhido por dois navios que passavam, menos da metade dos homens tinha sobrevivido e alguns deles tinham recorrido à sua própria forma de canibalismo. Herman Melville, que usou esta história como pesquisa para "Moby Dick",escreveu anos depois, e em terra firme, cito: "Todos os sofrimentos desses pobres homens do Essex poderiam, dentro de todas probabilidades humanas, ter sido evitados, se eles, imediatamente após deixar o naufrágio, tivessem se dirigido direto para o Taiti." Assim, a pergunta é: por que esses homens se aterrorizaram com os canibais muito mais do que com a extrema possibilidade de inanição? Por que foram influenciados por uma história muito mais do que pela outra? Olhe por este ângulo, ali começa uma história sobre leitura. O romancista Vladimir Nabokov disse que o melhor leitor tem uma combinação de dois temperamentos muito diferentes, o artístico e o científico. Um bom leitor tem uma paixão de artista, uma disposição de ser apanhado na história, mas, com a mesma importância, o leitor também precisa da frieza de julgamento de um cientista, que age para acalmar e complicar as reações intuitivas do leitor à história. Como vimos, os homens do Essex não tiveram problemas com a parte artística. Eles imaginaram uma variedade de cenários horríveis. O problema foi que eles deram ouvidos à história errada. De toda as narrativas que os medos deles escreveram, eles responderam somente à mais sinistra, à mais vívida, àquela que era mais fácil para a imaginação deles criar: canibais. Mas, talvez se tivessem sido capazes de ler seus medos mais como um cientista, com mais frieza de julgamento, teriam dado ouvidos ao conto menos violento mas mais provável, a história da inanição, e se encaminhado para o Taiti, exatamente como o triste comentário de Melville sugere.

E talvez, se tentássemos ler nossos medos, nós também seríamos com menos frequência influenciados pelo mais indecente entre eles. Talvez então passássemos menos tempo nos preocupando com assassinos em série ou desastres de avião, e mais tempo dedicado aos desastres mais sutis e lentos que enfrentamos: a silenciosa sedimentação de placa em nossas artérias, as mudanças graduais em nosso clima.

Assim como as histórias mais matizadas na literatura são com frequência as mais ricas, assim também podem ser mais verdadeiros nossos medos mais sutis. Lidos de maneira correta, nossos medos são um dom surpreendente da imaginação, um tipo de clarividência diária, uma forma de antever o que poderia ser o futuro quando ainda há tempo para influenciar como esse futuro se desenrolará. Adequadamente lidos, nossos medos podem nos oferecer algo tão precioso como nossas obras de literatura favoritas: um pouco de sabedoria, um pouco de perspicácia e uma versão da coisa mais ardilosa - a verdade. Obrigada. (Aplausos)”

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