O registro do que se passa hoje na Inglaterra, berço do liberalismo e de referências clássicas sobre liberdade de expressão e liberdade da imprensa, nos ajuda a entender o atraso secular em que nos encontramos quando se trata de regulação (ou autorregulação) no campo das comunicações.
“O povo inglês merece uma imprensa que assuma suas responsabilidades seriamente e exerça os padrões profissionais reconhecendo que a liberdade preciosa de que desfruta é um privilégio, não um direito divino.”
Lord David Hunt, chairman da Press Complaints Commission
(cf. The Guardian, em 9/3/2012)
A Comissão de Reclamações sobre a Imprensa (Press Complaints Commission, ou PCC, na sigla em inglês), criada por empresários de jornais e revistas, é a agência autorreguladora da imprensa no Reino Unido, em funcionamento desde 1991. Na arquitetura institucional para o setor de comunicações naquele país, além da PCC, existe a OFCOM, autoridade independente e reguladora para as indústrias de comunicações.
O escândalo relativo ao comportamento criminoso do tabloide News of the World, do grupo News Corporation, revelado em novembro de 2011, provocou não só a instalação de uma comissão judicial para apurar e sugerir medidas para evitar a repetição dos fatos como também uma indignação generalizada quanto à ineficiência da agência autorreguladora.
Antecipando-se às recomendações da comissão judicial, a PCC anunciou no dia 8 de fevereiro sua descontinuidade, para dar lugar a outra agência com poderes de interferência mais eficazes. Nas palavras do chairman da PCC, o Reino Unido terá “pela primeira vez um órgão regulatório da imprensa com dentes", embora não tenha divulgado os poderes e o mandato da nova agência.
Na verdade, a promessa de uma agência autorreguladora “com dentes” responde à acusação feita em depoimento à comissão judicial pela escritora J.K. Rowling, autora de Harry Potter. Ela afirmou ser a PCC uma agência “sem dentes”, isto é, sem poder efetivo de ação para coibir os desvios profissionais e éticos da imprensa.
E o Brasil?
O registro do que se passa hoje na Inglaterra, berço do liberalismo e de algumas das referências clássicas sobre a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa, nos ajuda a entender o atraso secular em que nos encontramos quando se trata de regulação (ou autorregulação) no campo das comunicações.
Três exemplos:
1. À exceção do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) –“organização não governamental que visa impedir que a publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a empresas” –, não existe órgão autorregulador para nenhum setor da mídia no Brasil. Mesmo assim, recente recurso ao Conar feito pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (aliás, não acolhido) provocou irados e violentos editoriais e artigos na grande mídia, sob acusação de interferência estatal, censura e fundamentalismo conservador [cf. “Caso Gisele Bündchen: Onde está a censura?”].
2. A Lei nº 12.485/2011, que muito timidamente estabeleceu cotas para a produção nacional na televisão paga, foi recentemente objeto de campanha publicitária do grupo SKY – leia-se Direct TV e Globo –, que utilizou o falso argumento de que a Agência Nacional de Cinema (Ancine) estaria querendo tomar das mãos dos assinantes o controle remoto e decidir por ele qual a programação a ser vista. Além de um desrespeito à inteligência do assinante, uma operadora estrangeira, associada ao maior grupo de mídia brasileiro, se rebela publicamente contra uma lei cujo projeto tramitou por mais de quatro anos no Congresso Nacional. Tudo porque são estabelecidas normas de proteção ao conteúdo nacional, aliás, existentes nas democracias contemporâneas que supostamente servem de modelo para a nossa.
3. E, por fim, a impossibilidade da imensa maioria dos brasileiros de acompanhar as partidas de seus times na Copa Libertadores da América, o principal torneio de futebol da América Latina. O oligopólio no setor de TV paga e os interesses de seus poucos grupos dominantes – exatamente a SKY e a NET (ambas associadas à Globo) – continuam a contrariar a conhecida máxima do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Byron White, estabelecida 43 anos atrás: “É o direito dos espectadores e ouvintes, não o direito dos controladores da radiodifusão, que é soberano”.
Por favor, leitor(a), julgue você mesmo(a) o tamanho do nosso atraso.
Venício Lima
Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
Artigo publicado originalmente na revista Teoria e Debate, nº 98.
No Carta Maior
Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
Artigo publicado originalmente na revista Teoria e Debate, nº 98.
No Carta Maior
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