É ESSA A "LINDA POBREZA" QUE OS INTELECTUAIS FALAM DAS PERIFERIAS?
Por Alexandre Figueiredo
Dia após dia, a intelectualidade que ainda exerce seu poder hegemônico na visão oficial sobre cultura popular é questionada. Os questionamentos não são muito difundido na mídia, mesmo na imprensa escrita de esquerda, mas já começam a provocar acaloradas discussões nas cantinas das faculdades e até mesmo em chats de amigos.
Reputações são derrubadas, com razão. Afinal, é uma geração de intelectuais formada no modelo burocrático e tecnicista ditado, em caráter nacional, pela elite da USP depois associada tanto à velha mídia (sobretudo Folha de São Paulo) quanto à velha política (leia-se, sobretudo, PSDB).
Muitos desses intelectuais formados nessas cátedras, em que pesem ainda difundirem, com sutileza, ideias aprendidas na Teoria da Dependência do "mestre" Fernando Henrique Cardoso, eles tiram o corpo fora. Cuspindo nos pratos em que comeram deliciosos banquetes neoliberais, a intelectualidade etnocêntrica teve que correr para o barco esquerdista, usando diferentes anéis para não deixarem marcas de feridas nos dedos.
Em várias ocasiões, mostramos os preconceitos que esses intelectuais, até pouco tempo unanimidades absolutas, possuem em relação à cultura popular. Eles, que tanto alardeiam lutar "pela ruptura do preconceito", são os mais preconceituosos do que aqueles que assim acusam aqueles.
Afinal, na sua metodologia, eles apelam para atitudes estranhas como desaconselhar o debate estético - discutir estética é "preconceituoso", dizem eles, se não urubologicamente atribuem as avaliações estéticas como "moralismo" ou até "racismo" - e definir as periferias como "paraísos" da diversão e da alegria.
Com esse raciocínio, que, pasmem, é defendido por gente ainda vista como "tarimbada" como Paulo César Araújo e Pedro Alexandre Sanches, certamente teríamos distorções etnológicas violentas, que na prática inverteriam o sentido da aparente solidariedade que tais "pensadores" têm em relação ao povo pobre.
Primeiro, porque se condenarmos as questões estéticas como se fossem "preconceitos", "moralismo" ou "racismo", estaríamos condenando praticamente várias gerações de intelectuais que pensavam as questões estéticas em suas obras. Do filósofo grego Aristóteles ao teórico da Comunicação Umberto Eco, seriam eles, neste sentido, "preconceituosos", "moralistas" e até "racistas".
Daí para comparar o lúcido e sábio Umberto Eco - de uma geração de brilhantes pensadores do Primeiro Mundo, ao lado de Noam Chomsky e outros - ao ditador Benito Mussolini, é um pulo. Tudo pelo bem de outro Benito, aquele que cantou, agradecido a Deus, que tudo estava em seu lugar durante a ditadura militar.
Segundo, porque essa intelectualidade brasileira, que tanto diz condenar idealizações do povo pobre e suas consequentes domesticações e infantilizações, é a que mais idealiza as periferias, da forma mais cruel do que se imagina.
Essa idealização transforma ambientes de pobreza e sofrimento em "paraísos" pretensamente "autossuficientes". Sem saber que sua visão segue um raciocínio que já foi condenado por intelectuais como o falecido John Kenneth Galbraith, Pedro Sanches falava em "autossuficiência das periferias" ignorando as naturais limitações sociais que as classes populares vivem.
Para esses intelectuais, tudo é "maravilhoso" nas periferias. O subemprego dos camelôs, o mercado deprimente da prostituição, o alcoolismo entre os idosos, as meninas andando pelas ruas à noite, sob risco de serem assaltadas e estupradas, o comércio pirata, a mediocridade artística, a baixa escolaridade, o grotesco, a pior vulgaridade, os valores morais baixos.
Sim, é isso mesmo. Cria-se até uma inversão de valores, e quem tem que aperfeiçoar seus valores morais e andar na linha são sempre os mais ricos. Se Gisele Bündchen compra uma mansão gigantesca, a intelectualidade faz piti. Se é um cantor de sambrega comprando um caríssimo carro importado, a mesma intelectualidade se derrete em elogios. "Ele sabe o que quer", alardeiam seus "pensadores" sob aplausos de focas amestradas dos seus fãs.
A vulgaridade feminina, para essa intelectualidade, só é "pecado" para as classes ricas. Mas, para "musas" associadas ao público mais pobre, como Solange Gomes e Valesca Popozuda, vale esculhambar o máximo no grotesco, sem medir escrúpulos para gafes e grosserias.
Mas a inversão de valores vai até mesmo para níveis kafkianos do absurdo. Se acompanharmos o raciocínio apologético de Milton Moura, por exemplo, um branquelo de classe média do Paraná, o breganejo Michel Teló, seria associado às classes pobres de origem negra, a exemplo das Sheilas do É O Tchan. Em contrapartida, músicos negros de origem pobre, como Cartola e Pixinguinha, seriam vistos como "burgueses euroétnicos".
Dessa forma, entender o "outro", no caso o povo pobre, acaba expressando, por parte dessa intelectualidade, muito mais preconceitos do que se imagina desses "pensadores sem preconceitos". Preconceitos piores ainda, vale frisar.
Afinal, o povo pobre leva a pior, mas eles sempre têm um jeitinho para dar a impressão contrária. Porque o povo só é "melhor" no que tem de pior. Se sofre sozinho, é "autossuficiente", se sua baixa escolaridade permite acreditar em moral baixa, o povo "tem uma moral moderna". Se o povo é medíocre e culturalmente subordinado, ele é visto como "intuitivo" e "conectado com o mundo".
Os preconceitos criam até mesmo distorções violentas, na medida em que associam também os empresários do entretenimento - como os donos de galpões de eventos nos subúrbios e de empresas de gerenciamento de cantores e grupos musicais - às classes pobres. Através dessa abordagem, dá-se a impressão, falsíssima, de um povo pobre que não consegue comprar um pequeno sítio sequer, mas é "detentora" de tecnologia de ponta.
Isso é terrível, porque a intelectualidade, além de confundir demais as coisas - uma pesquisa cautelosa verá contradições desastrosas nas abordagens dos festejados Milton Moura, Paulo César Araújo e do citado Sanches - , cria uma ilusão de perfeição que não existe nas classes populares.
Isso não é difícil de percebermos. Basta ocorrer um temporal que atinge áreas populares para perceber o quanto essa "linda periferia" que tanto falam os intelectuais é derrubada feito um castelo de areia. Porque o sofrimento do povo pobre não pode servir de brinquedos para os delírios pseudo-sociológicos da intelectualidade "sem preconceitos" mas muito, muito preconceituosa.
Mingal de Aço
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