Há um provérbio latino que diz vox populi, vox Dei (ou seja, a voz do povo é a voz de Deus), mas não custa lembrar que foi a voz do povo que sentenciou à morte Jesus, tido pelos cristãos como o filho de Deus.
Começamos este artigo invocando uma frase latina e dentro de um contexto de cunho religioso, tema sempre muito delicado, para dizer que a voz do povo pode ser manipulada e se tornar uma perigosa unanimidade burra, irracional, que a mídia moderna costuma chamar pejorativamente de efeito manada(paralelo com uma corrida de bois e vacas que seguem a toda velocidade, irrefletidamente, a direção do animal que vai à frente, ainda que este se dirija para o abismo).
Historicamente, quem pela primeira vez usou os recursos da chamada comunicação de massa para fins de manipulação política da opinião pública foi o partido nazista, através do seu ministro das Comunicações, o sinistro Joseph Goebbels. Ele compreendeu a imensa capacidade de penetração nos lares alemães da propaganda radiofônica que, naqueles idos da depressão capitalista da década de 1930, era o meio de comunicação mais eficiente para transmitir emoção pela palavra, com uma capacidade de convencimento muito maior do que a letra fria dos jornais.
Resultado: o genocídio alemão só foi possível porque contou com o apoio da opinião pública na Alemanha e até em outros países invadidos (caso da Áustria).
Todos os atos de arbitrariedade sistêmica política e militar apelam sempre para o apoio da opinião pública, sem o qual eles não podem obter sucesso, porque a população civil é sempre muito mais numerosa do que as forças militares ou instituições do Estado. Mas, tal apoio não tem sido historicamente difícil de ser obtido, graças à manipulação da informação.
Hoje, a capacidade da mídia televisiva, radiofônica e cibernética é muito mais abrangente, poderosa e decisiva do que em qualquer tempo da história. A mídia não é o quarto poder, como muitos admitem, mas um poder acima e fora da institucionalidade estatal e que conduz a vontade coletiva (opinião pública) para a aceitação passiva do modo de ser social instituído e cuja manutenção é por ela induzido.
Neste sentido, a grande mídia está acima dos poderes constituídos; e seus veículos, como empresas capitalistas que são, mantêm um liame estreito com a categoria a que pertencem, sem que precisem institucionalizar-se como um poder do Estado.
Detendo o controle do sistema de comunicação nacional, um grande empresário midiático é tão importante quanto (e, em certas circunstâncias, até mais poderoso do que) um dirigente político, um mandachuva de outro ramo ou um comandante militar.
Daí os magnatas de outros setores da economia fazerem questão de ter e manter empresas de comunicação, ainda que estas sejam deficitárias. Assim como muitos políticos se tornam donos de empresas de comunicação.
Para se aquilatarmos melhor a força da opinião pública, torna-se necessária uma análise do significado da informação pública geradora da inconsciência popular perante o seu próprio modo de ser social. Vários fatores se somam para que a sociedade aceite a opressão de forma passiva; o primeiro deles é a inconsciência sobre si mesma, pois quem não sabe é como quem não vê.
Colabora para a inconsciência social o massacre midiático de milhares de informações supérfluas que são transmitidas ao cidadão diariamente, menos aquela que seria fundamental: a negatividade sobre o objeto do maior desejo coletivo (o dinheiro). Ao contrário, ensinam-lhe desde a educação básica, por meio da mídia, a importância de sua formação educacional para enriquecer e vencer na vida, dizendo-lhes que quem não ganha dinheiro é um perdedor, um derrotado. Assim, o dinheiro passa a ser o troféu virtuoso positivado e os comportamentos sociais se dirigem para a sua afirmação, de modo que inconsciência sobre a negatividade do dito cujo permaneça intacta.
Não é por menos que pensadores ilustres de diferentes séculos têm manifestado o perigo da manipulação midiática da opinião pública no sentido da obstrução sistemática da lucidez coletiva. Ainda no século 18, o famoso jornalista francês Nicolas de Chamfort já dizia: “Há séculos que a opinião pública é a pior das opiniões”.
E o nosso contemporâneo professor emérito de universidades estadunidenses, o filósofo analítico Noam Chomsky avalia que “o propósito da mídia não é de informar o que acontece, mas sim de moldar a opinião pública de acordo com a vontade do poder corporativo dominante''. O que faz todo sentido: final, sendo a grande mídia parte importante de tal poder, coisas não poderiam mesmo ser diferentes do que são.
Se perguntarmos a um transeunte qualquer sobre qual a coisa mais importante para o seu sustento material, ele responderá de pronto: o dinheiro. Entretanto, ele desconhece inteiramente, do ponto de vista da sua natureza existencial constitutiva, a essência do objeto de seu desejo maior.
Propositadamente, não se estuda na grade curricular do ensino básico o mecanismo de reprodução cumulativa do valor (dinheiro, pois isso denunciaria a sua própria mesquinhez); e no ensino superior somente se ensinam as virtudes e os mecanismos de controle e administração do dinheiro, nunca a sua negatividade. Aliás, a ciência social econômica não poderia mesmo negar aquilo corresponde à sua própria essência existencial acadêmica.
Como poderia a opinião pública entender os mecanismos de sua opressão sistêmica se isto não lhe é ensinado ou comunicado nas duas esferas da informação: a educação escolar e midiática? Como o poderia se, ao contrário, são-lhe marteladas o tempo todo as virtudes do sistema produtor de mercadorias, como se tal sistema fosse o meio mais justo, único e eficaz para a obtenção do seu sustento material?
A resultante disso é que a expressiva maioria da população, que forma o grande contingente ratificador do consenso social chamado opinião pública, diante da miséria social a que é submetida, admite como sua uma culpa que na verdade lhe é estranha; tenta reproduzir os valores do seu opressor vitorioso, como se este fosse o exemplo a ser seguido, e assim distorce os melhores conceitos da virtude.
Não é de se admirar, pois, a eterno desgaste dos governantes perante a opinião pública eleitoral e o eterno retorno ao ponto de partida, graças ao chamado pêndulo da ineficácia, sem que se negue o próprio processo eletivo obrigatório e aquilo que lhe é subjacente: um modo de mediação social perverso e irracional, além de ecologicamente suicida.
Por Dalton Rosado |
A opinião pública tem sido historicamente a fonte de legitimação da própria opressão pública, o que não impede que, de tropeço em tropeço, acabemos chegando a um porto seguro. Mas a travessia em tais condições implica uma constante possibilidade de naufrágio humanitário.
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/10/opiniao-publica-e-irracionalidade.html
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