Safatle: “A função do Estado brasileiro é pagar a dívida da burguesia nacional”
Uma entrevista com Vladimir Safatle, professor de Filosofia na USP, sobre os acontecimentos políticos recentes do Brasil, a cultura popular e as perspectivas de mudanças no cenário político.
Vladimir Safatle é professor de Filosofia na Universidade de São Paulo. Além disso, mantém colunas semanais na Carta Capital e na Folha de São Paulo, onde escreve desde temas relacionados à área da filosofia até assuntos cotidianos de política, música, cultura e movimentos sociais. Recentemente esteve em Pelotas (RS), onde lecionou a aula inaugural do Doutorado em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas e lançou seu livro “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”. Durante sua visita, a revista o Viés conversou com Safatle sobre os acontecimentos políticos recentes do Brasil, a esquerda, a cultura popular e as perspectivas de mudanças no cenário político, entre outros assuntos.
Nós estamos num momento no Brasil em que os atores políticos da esquerda que se constituíram durante décadas de fato se esgotaram. Aqueles que deveriam ocupar seu lugar ainda não estiveram à altura do processo. Há muito que ser feito.
Revista o Viés : Tu afirmas que as condições para a modificação do futuro já estão no presente. O que falta para uma desnaturalização desse presente? O que falta para dar esse estalo?
Vladimir Safatle (VS): Eu diria que muitas vezes nós acreditamos que as condições para uma política transformadora se dariam através da construção de horizontes utópicos, de que faltaria uma utopia. Acho que talvez seria o caso de dizer que não, não falta. As utopias não são necessárias para o processo de transformação. O que é necessário é uma compreensão mais profunda da complexidade das tensões internas ao presente. Ou seja, saber tencionar melhor o presente. Acho que o campo da experiência do presente é maior do que o campo da situação organizada. É um campo no interior do qual nós conseguimos de uma maneira ou outra avaliar. O que acontece hoje é que nós estamos muito ligados a esse modelo de reflexão sobre situações e talvez fosse importante, na verdade, a gente ampliar um pouco, tendo em vista que todas as condições já estão dadas de uma certa forma para que as transformações se realizem. A gente nunca teve uma latência tão forte. O que falta é estar à altura dessas latências.
: Sobre a relação da utopia com a esperança e o medo, tu falas que a utopia é um pouco problemática porque as catástrofes que ocorrem dentro dela geram o medo. Gostaria de perguntar se as catástrofes dentro das utopias não são inevitáveis, se a história não nos mostra que acontecem coisas que não estão previstas dentro delas?
VS: Quando você constitui uma utopia, você projeta a imagem de um possível no futuro. Isso faz com que todo o processo de onde você está até o futuro que deve se realizar seja visto sob o signo da realização necessária de um horizonte já constituído e já em curso. O que acontece, então? Mesmo quando a imagem da utopia se aproxima, a primeira coisa que você faz é ter medo de que ela se perca. Qualquer tipo de acontecimento que não está enquadrado no seu horizonte pode fazer com que você perca o que conseguiu. Por isso que as utopias são fontes não só de esperança, mas de muito medo. Elas impõem um certo regime de medo para a vida social. Não é à toa que as grandes revoluções seguiram para grandes momentos de medo. O grande medo depois da Revolução Francesa, os expurgos depois da Revolução Russa. Tudo isso na verdade tem muito a ver com uma certa noção de tempo que é interna à noção de utopia. A utopia é um tempo de expectativa e essa expectativa nunca se realiza completamente. Ela, mesmo quando se efetiva, se efetiva com as marcas da sua fragilidade. Então a efetivação pode a qualquer momento se perder. E eu me pergunto se talvez não seria importante pensar em um tempo sem expectativa como condição para a ação política.
: Sobre a questão do presente, a falta de compreensão sobre fatos que ocorreram no passado, ou a falta de ação sobre esses fatos, tem algo a ver com a imobilidade política para a transformação?
VS: Eu acho que, muitas vezes, nós ficamos diante de acontecimentos que não conseguimos entender. E o que fazemos normalmente diante desses fatos é ignorá-los, é tentar esquecê-los o mais rápido possível. Só que esses acontecimentos nunca desaparecem por completo, então eles ficam forçando um pouco dos nossos esquemas de compreensão e mostrando a limitação desses esquemas. Acho que vivemos um momento muito parecido. O Brasil passou por alguns momentos decisivos na sua história, como [nas mobilizações de] 2013. 2013 foi um acontecimento importante não por aquilo que construiu, mas por aquilo que destruiu. Ele destruiu uma certa ideia de quem eram os atores políticos do Brasil e desde então a gente vive um hiato, onde o que nós temos simplesmente são as figuras destruídas que ainda, de uma maneira ou de outra, se conservam. Esse parece um belo exemplo de como um acontecimento nos força a pensar e o que acontece quando nós não nos dispomos a pensar esse acontecimento.
: Tratando do papel da esquerda hoje, tu acreditas que tem sido fundamental, mesmo que tímido, ou existe uma grande dificuldade na esquerda de aproximação, de legitimidade e também de unificação, pois está fragmentada, com várias frentes que não dialogam entre si?
VS: Acho que a esquerda não teve a altura dos acontecimentos, mais que a questão da fragmentação. Ela não foi capaz de mostrar que entendeu que havia uma demanda de reinvenção do campo político e de reinvenção das práticas políticas como condição para um maior engajamento de novos sujeitos políticos. Nesse sentido, ela ficou muito presa a seus esquemas de organização herdados da estrutura partidária dos anos 1940 e 1950 e esses são esquemas muito hegemonistas, dirigistas, centralistas. E não é à toa que nossas organizações de esquerda acabam tendo uma densidade eleitoral muito baixa. Acho que há uma tarefa para nós e a tarefa é estar à altura dos acontecimentos. É realmente conseguir reconstituir o que significa uma noção nova de organização. As pessoas olham para a esquerda e se perguntam: ‘o que vai fazer quando chegar ao poder? ’ O que você vai fazer é o que você já faz dentro da sua estrutura. Se você olha para a estrutura e vê que a estrutura está cheia de vícios é difícil de imaginar que alguém vai confiar em você. Isso é um problema muito grave. Nós estamos num momento no Brasil em que os atores políticos da esquerda que se constituíram durante décadas de fato se esgotaram. Aqueles que deveriam ocupar seu lugar ainda não estiveram à altura do processo. Há muito que ser feito.
: Muitas pessoas falam que a esquerda não tem projeto de governo e de sociedade. O que terias a falar sobre isso? E também sobre essa questão de que ter um projeto fechado ás vezes é…
VS: É falso. O que mais tem hoje é diagnóstico sobre a situação presente. É impressionante como todo mundo tem, mais ou menos, um consenso a respeito de pontos fundamentais. Se você pegar a crítica das políticas econômicas dos últimos anos, a gente tem uma biblioteca de críticas. A esquerda deixou muito claro o que era o esgotamento do modelo, onde a coisa ia quebrar, o que era necessário fazer, a discussão sobre a reforma tributária que era necessário fazer no Brasil, as injustiças tributárias que ocorrem no Brasil… Diagnóstico não falta. O que é impressionante é como não existe o mínimo de coragem política quando se fala em passar do diagnóstico para a ação. Por exemplo, todos nós temos muita clareza do sistema de capitalismo patrimonial que foi implantado no mundo inteiro e principalmente no Brasil nessas últimas décadas. Nós sabemos que não há nada a fazer no interior desse processo. Nós precisamos de uma modificação estrutural e radical. Há, inclusive, o caminho para fazer. Mas o fato, e isso precisa ficar muito claro para a esquerda, é que a situação hoje é de uma instabilidade tal que qualquer brecha que você abre, é como um castelo de cartas: tudo vai cair, basta uma brecha. Nessas situações é que os sistemas ficam mais violentos, porque eles não querem nem deixar que uma brecha passe.
Veja o que aconteceu na Grécia. O programa que os gregos tinhas era um programa que foi aplicado na América Latina em larga medida nos anos 1980 sem muito problema, sem muita confusão. Foi aceito em larga medida, como os programas de moratória, e os países sobreviveram a isso. Agora, quando isso foi tentado ser efetivado na Grécia nesse momento, em 2015, foi inaceitável. A gente viu todo o sistema de destruição que foi colocado como ameaça caso a Grécia tomasse esse caminho. Mesmo medidas que seria, digamos keynesianas, são rechaçadas com toda a força, porque elas podem ter um efeito indutor… você aceita uma medida, depois passa outra medida e outra e outros países começam a olhar e aí você pensa: ‘mas porque a gente está aplicando esse plano de austeridade totalmente idiota?’. Então nesse sentido você sabe que uma hegemonia pode se quebrar e nesse momento quando as hegemonias percebem sua fragilidade, é que elas são mais violentas.
: Ontem li uma pesquisa que foi aplicada com centenas de pessoas perguntando o que elas acham que um governo deveria ter. Então foram colocadas questões de esquerda, como os serviços públicos essenciais. O resultado foi que a maioria das pessoas tem algo de esquerda. Tu acreditas que há um problema de comunicação na esquerda, já que parece que ela não consegue explicar a concepção de Estado em que acredita e no geral assusta as pessoas?
VS: É muito interessante essa pesquisa que você descreve e eu vi uma parecida há uns anos que foi feita pela Folha de São Paulo. Quando se colocava questões de moral, costumes, a população brasileira se mostrava claramente conservadora. Essas questões como aborto e casamento homoafetivo. Quando se colocava questões econômicas ela era claramente de esquerda. O que acontece não é um problema de comunicação. Nós vivemos um momento em que as pessoas têm um diagnóstico, mas não conseguem encontrar atores que estejam dispostos a efetivá-lo. Eu vejo, por exemplo, que há um governo hoje que a princípio seria de esquerda, o que ele faz diante de uma crise é chamar economistas liberais. O que as pessoas pensam? Que não existe mais economistas de esquerda porque quando o negócio fica feio a gente corre atrás dos liberais. Nesse ponto, acho que muito mais que um problema de comunicação é mesmo um problema de ação. Enquanto você não conseguir criar uma coalisão e uma força política que vá se comprometer com o que diz, que é uma coisa completamente elementar – você afirmar uma coisa e fazer aquilo que afirma -, vai ser sempre essa disfunção cognitiva, esse choque. Tinha o Alastair Campbell, spin doctor [porta-voz] do Tony Blair, que uma vez disse: ‘eu não entendo porque a esquerda sempre faz algo diferente do que ela promete’. Só que ele falou no sentido de parar de prometer e fazer só o que se conseguia fazer daí veio a questão da terceira via. Eu utilizaria essa mesma frase no sentido inverso: vamos parar de fazer aquilo que a gente não promete e vamos começar a lutar para realizar aquilo que a gente promete.
: Atualmente, a gente está tentando entender como a terceira pessoa na sucessão da na linha política, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, está envolvida em tantas questões ilegais e não existe uma indignação coletiva maior. Na sua opinião porque isso acontece?
VS: Acho que isso acontece por duas razões. A primeira delas é que as pessoas que se identificam com ideias de esquerda hoje têm vergonha. Elas têm vergonha da situação na qual a esquerda institucional chegou. Então ficam paralisados e não se encorajam de sair na rua. Que existem 300 mil pessoas nas ruas defendendo pautas conservadoras, isso para mim não parece nada estranho, pois o Brasil sempre teve uma direita popular: Adhemar de Barros, Paulo Maluf, a Marcha por Deus Pátria e Família. Isso teve sempre. A grande diferença é que no outro dia ia ter 300 mil pessoas de outro lado sendo o contraponto e isso hoje não tem. Esso é o problema, você desmobilizou todo o campo da esquerda. Porque essa gente que sai pedindo combate à corrupção como foi em abril e agora no início do ano todo mundo sabe que pratica uma farsa da mais absurda possível. Eram as mesmas pessoas que votavam no Maluf há não muito tempo, são as pessoas que votaram no Alckmin sem o menor problema, sendo que São Paulo é um estado que tem uma quantidade de casos de corrupção inacreditáveis. A CPI do Metrô de São Paulo que está acontecendo agora, julgada por tribunais da França e da Suíça até, administrações absolutamente temerárias do ponto de vista público, também a questão dos recursos hídricos e as pessoas não têm o menor problema com esse cinismo político que utiliza um critério contra os seus inimigos enquanto se alimentam os seus amigos que agem da mesma forma. Tem essa vergonha das pessoas ligadas à esquerda em fazer o contraponto e se bater contra figuras como esse senhor [Eduardo Cunha] e também tem o cinismo orgânico do conservadorismo nacional, que sempre utilizou da corrupção como uma arma estratégica para você colocar contra a parede alguns grupos enquanto o seu grupo faz exatamente a mesma coisa. Você tem a incapacidade crônica de fazer uma crítica a você mesmo.
: A classe política se coloca acima do resto da sociedade, num nível superior…
VS: … é, tem muito de um sistema de castas que é próprio da casta política brasileira. Quer dizer, quando 2013 ocorreu havia duas saídas possíveis: você ouve o que o acontecimento está dizendo, você procura criar novas políticas para dar conta disso, ou você faz tudo para que um acontecimento como esse nunca mais ocorra, você fecha cada vez mais o sistema. E foi essa segunda alternativa a saída implementada. Ou seja, a casta política se fechou cada vez mais, diminuindo o tempo de campanha, criando sistemas cada vez mais fechados, impedindo a criação de qualquer outro tipo de grupo ou partido que pudesse quebrar o equilíbrio. Nesse sentido, com esse funcionamento de casta, ficou muito claro como a gente tinha chegado ao limite de um processo histórico. O Brasil acabou em 2013 e de 2013 até hoje é só um jogo de espectros. A tristeza é que esse jogo de espectros pode continuar durante muito tempo. Mas acabou no sentido de capacidade de mobilização da população rumo a um processo de transformação. Não há nada mais nesse sentido. Acho que seria importante deixar isso claro.
: O Rodrigo Constantino escreveu um texto na Veja rebatendo um texto seu e disse que a esquerda de hoje é o PT de amanhã. O que pensas disso? Esse medo que se lança para as pessoas é uma estratégia da direita?
VS: Olha, eu poderia fazer um milhão de gracinhas contra um sujeito como esse. Mas eu diria que infelizmente há uma questão concreta nesse tipo de colocação. É muito importante que a esquerda pense o que foi a experiência do PT, porque foi a primeira larga experiência da esquerda no poder no Brasil. A princípio serão 16 anos e já se foram 13, nunca na história brasileira houve um tempo tão grande de um mesmo grupo no poder em períodos democráticos. Então é necessário, de fato, fazer uma autocrítica profunda, não dá pra continuar nessa toada de dizer ‘não, veja bem, a gente não fez a luta política, então a gente não soube se contrapor, fazer a reforma de mídia e bla bla bla’, como se fossem problemas externos, sendo que há problemas internos da ordem do inacreditável. Quer dizer, minorar o problema da corrupção do Estado como se fosse uma pauta de direita, isso é desonesto até com a história da esquerda. Se você pegar Estado e a Revolução, do Lenin, vai ver o que ele fala sobre corrupção do Estado. É um tópico absolutamente central. Isso por um lado.
Por outro lado, você não tem uma crítica ao modelo de desenvolvimento econômico implementado durante esses anos e seus limites internos, limites que estavam muito claros nas escolhas do lulismo, tanto que produziram uma oligopolização ainda mais acirrada da economia. O processo de ascensão social se deu num quadro no qual você não tinha mais condições de dar para a população aquilo que ela realmente precisava, que eram os serviços públicos de qualidade para que pudessem diminuir seus gastos do salário. Elas aumentaram seu poder aquisitivo, mas aumentaram também seus gastos e suas necessidades e o Estado não tinha condição de oferecer nada. O Estado foi incapaz de fazer uma transformação tributária que capitalizasse o país para oferecer educação pública de qualidade, saúde pública de qualidade e serviços dessa natureza. Então todas essas promessas de reconstrução das cidades que foram feitas na época que o Brasil descobriu que ia sediar a Copa do Mundo, promessas de que ia haver uma revolução no transporte público, todas elas se demonstraram absolutamente farsescas pelo fato do Estado Brasileiro ter se transformado num sócio privilegiado de conglomerados empresariais e de construtoras que não têm nenhum tipo de engajamento efetivo para uma reflexão do planejamento urbano. Muito pelo contrário. Então você é levado por um processo de especulação imobiliária. Ou seja, há problemas gravíssimos no modelo econômico e uma dificuldade crônica de uma parcela da esquerda de fazer uma autocrítica. Então nesse ponto é verdade: se não fizer autocrítica severa, você não vai poder mostrar para a população que você tem condições de oferecer algo diferente daquilo que foi oferecido.
: Sobre o limite do modelo econômico que temos, a professora Sara Granemann fala que estamos chegando num limite para o mercado de compra e venda de mercadorias e que, quando isso acontece, começam a ser privatizados serviços essenciais, como previdência, saúde e educação…
VS: Não sei se chega a ser um esgotamento agora, mas claro que o capitalismo desde os anos 1970 percebe a possibilidade de auferir lucros privatizando sistemas que estavam sob a posse do Estado. Enquanto esses sistemas eram deficitários, não davam lucro, não havia nenhuma pressão de privatização. Nos anos 1950, 1960, o sistema de saúde, educação e transporte na Europa era totalmente público. Devido ao processo de reconstrução das sociedades europeias, o nível de investimento era tamanho que não haveria nenhum ator privado que conseguiria operar dentro dessas áreas. Quando o sistema ficou montado, ficou evidente: o nível de investimento poderia diminuir e você poderia auferir lucro daí. E foi isso que aconteceu. Eles privatizaram, fecharam aquilo que seria deficitário, e começaram a ter lucros estrondosos. Os fundos de pensão da previdência, o sistema educacional, as empresas de educação privadas que têm lucros exorbitantes, os planos de saúde. Acho que, de fato, essa é a pressão atual. O sistema está mais ou menos montado, então quer dizer que você pode investir menos, pode desmontá-lo, privatizá-lo, para que a empresa privada tenha seus lucros.
: Nós temos pessoas ótimas trabalhando na questão da auditoria da dívida pública no Equador e na Grécia, como a Maria Lúcia Fattorelli. O que faltaria para que chamássemos pessoas assim para investigarem a nossa dívida?
VS: Nada, não falta nada. O que falta é que vários estudos da Fattorelli demonstraram que boa parte da dívida pública privada é uma dívida feita pelas empresas privadas que o Estado colocou nas suas costas. As pesquisas mostram isso, mas se for aplicado aqui você vê que esse pacto entre Estado e burguesia nacional se quebra. Porque a função do Estado brasileiro é pagar a dívida da burguesia nacional. Sempre foi assim. A burguesia faz essa imagem de anti-estatista e isso é uma das coisas mais hipócritas que existem, porque quando eles quebram a primeira coisa que fazem é pedir dinheiro do Estado. É o caso dos bancos quebrados nos anos 1990, em que a função do Estado foi de ir lá e pagar as dívidas da burguesia nacional. Por isso que a dívida pública brasileira tem esse volume estratosférico. Agora, é inegável que é inconcebível que uma política de esquerda não coloque isso como uma de suas questões centrais. É o preço que estamos pagando hoje.
: Gostaria de perguntar se conheces mais ou menos a situação do estado do Rio Grande do Sul, com desmonte do funcionalismo público, parcelamento de salários, entre outros pontos.
VS: Eu sei através do que sai pela imprensa nacional, dessa situação falimentar do estado. A impressão que dá – e quem conhece melhor a economia do RS pode falar com mais precisão – é que você tem estados brasileiros, como o RS, que sofrem com o processo de desindustrialização e com as flutuações das commodities agrícolas e você tem um modelo de gestão que é extremamente temerário. O fato é que aqui no estado alguns setores necessários da estrutura do funcionalismo público estão sentindo mais e em São Paulo pode não se sentir tanto porque já privatizou quase tudo que poderia privatizar, deixou para trás já. As conseqüências são sentidas. São Paulo é o estado mais rico da federação e estamos longe de estar entre os estados que oferecem os melhores serviços públicos. A educação de São Paulo é falimentar, como a situação da minha universidade [USP], onde ficamos 200 dias em greve porque estávamos numa situação onde os custos da universidade eram maior que sua receita. Só que esse custo não é porque a universidade paga altos salários para trabalhadores, mas é porque ela saiu de uma universidade de 30 mil alunos nos anos 1990 para uma de 90 mil alunos hoje e com a mesma dotação orçamentária. Mas São Paulo tem uma vantagem porque tem um acordo entre imprensa, empresariado e Estado, que faz com que todos esses absurdos acabem tendo pouco impacto, o que talvez não exista aqui ou talvez não nesse nível que faz com que as coisas apareçam de maneira mais evidente.
: A última é mais sobre cultural popular. Tu escreveste um artigo na Folha de São Paulo em que fala um pouco fatalisticamente sobre a não existência de cultural popular atualmente e cita o exemplo do funk, que esse gênero teria uma “simplicidade formal”. Outros gêneros, como o blues e o punk, também não tinham uma simplicidade formal que acabaram por dar origem a outros ritmos tão consagrados?
VS: Essa é uma bela questão e é uma pena que seja a última. Para mim é realmente inacreditável um certo setor da esquerda de analisar de maneira crítica a produção cultural desse país. Eles estão dispostos a fazer uma crítica do lulismo, do campo econômico, do campo social, mas não chegam na cultura. Muda-se totalmente a figura, como se não houvesse nenhuma relação entre a nossa miséria cultural e a nossa miséria política atual. Então eles não conseguem nem aplicar os esquemas de análise para o campo da cultura. Eles não se perguntam se a oligopolização que se dá em vários setores do campo da economia não chegou no campo da cultura de maneira brutal. Tudo que falei é que a boa produção cultural da música popular hoje, e ela existe nos últimos 20 e 30 anos, foi deslocada para as margens para que o centro fosse monopolizado por uma estrutura não só oligopolista de produção, mas que faz lá uma música que é de uma pobreza formal, de uma pobreza de capacidade de transformação interna absoluta. Eu acho inacreditável que a gente tenha chegado num ponto em que não se pode sequer fazer uma crítica cultural, como se fosse crime contra a majestade, como se fosse o exemplo maior de um certo autismo intelectual da universidade contra a produção popular. Isso é de um primarismo absoluto, deveriam ter vergonha disso, isso é esquema que se usava nos anos 1930 nos debates entre stalinistas e os artistas que queriam que tencionassem, porque uma sociedade revolucionária é uma sociedade que tenciona a cultura popular, ela não se adequa à produção popular, ela faz com que outras coisas circulem, com que outras coisas passem a circular. Se você percebe, o que mais circula entre as classes populares hoje, o que elas acabam ouvindo cada vez mais é o mesmo tipo de mercadoria da indústria cultural, porque você tem dificuldade de circulação. Você lembrou de outro aspecto, dizendo que falar da simplicidade formal dessas formas seria um pouco injusto com a dinâmica interna da própria produção da música popular que parte de elementos simples para se complexificar, como por exemplo o blues e o punk, e de fato o punk é um exemplo belíssimo. De 1977 a 1985 você teve os anos mais produtivos do ponto de vista de inovação e invenção dentro de um espectro do que foi o rock. No movimento pós-punk tiveram elaborações formais interessantes, isso é inegável, um reconhecimento poético, uma capacidade de hibridação. Tudo isso foi produzido por esse tipo de simplicidade. Mas veja a diferença: não é uma questão de criticar a simplicidade, a simplicidade é necessária. Eu poderia falar da simplicidade da música erudita, da simplicidade como elemento fundamental onde a linguagem precisa se contrair ao máximo para que possa reconstituir suas potencialidades em outras bases. E o que acontece com o punk: dois anos depois você já tinha uma produção altamente impressionante. Hibridação com música negra, aqueles casos do The Clash. Você tinha um aprofundamento poético inacreditável. Agora, eu pago ‘3 contra 1’ para ver na partitura que isso aconteceu com o funk brasileiro. As pessoas sabem que isso é falso e ficam insistindo nesse ponto. Faz 15 anos que nós temos uma hegemonia desse modelo de produção musical no Brasil. E o que foi produzido a partir daí?
: E com o rap brasileiro?
VS: Eu não falei do rap. Eu falei do funk e da música sertaneja universitária. O Tom Zé falando ‘ah, tem um funk, Atoladinha, que eles usam microtom’. Não é verdade, o sujeito errou. Não tem uso consciente de microtom. Isso é falso. Tem uma tendência tropicalista que é muito ruim de imaginar que a cultura brasileira é a cultura da autointegração e então ela pode integrar tudo. E nesse processo você acaba fazendo uma deposição da capacidade crítica de certas formas que são mutiladas. Essa forma se mutilou, ela não anda, não se desenvolve. Seria ilusório imaginar que o desenvolvimento que você viu no jazz, com John Coltrane, que aconteceria uma coisa dessas com o funk. Não aconteceu. É simples, é porque esse tipo de produção se adequa perfeitamente aos critérios de produção da indústria cultural. Ele foi feito, é a imagem que a indústria cultural produziu do que é a população brasileira. É muito diferente de uma situação como o blues onde você tem uma autonomia, durante muito tempo, em relação à indústria cultural, que era incipiente. Mas nós não estamos mais com uma indústria cultural incipiente. Nós estamos com ela em altíssima articulação. Dentro desse processo de integração das classes populares, houve uma integração cultural. Qual o modelo de produção onde eles se adequam mais às exigências de mercado da indústria cultural? É o funk.
: O que você pensa do papel de contestação do rap e sua origem, que tem ligação com alguns batuques, a do hip hop, e um pouco da cultura de rua do pixo, dessa forma que a margem se escreve centros¿
VS: Seria equivocado falar de uma forma generalizada de todas as produções. Eu conheço muita qualidade em certas produções do rap nacional. Poderia ficar falando de Sabotage, Racionais, e nem era esse o eixo da minha discussão. No entanto, um elemento que eu gostaria de insistir, porque acho que vale a pena a reflexão, é o de se o modelo de política cultural que foi implementado nesses últimos anos foi realmente capaz de permitir fazer circular aquilo que não circula. Eu tenho acesso ao Sabotage e aos Racionais. O pessoal lá da vila xxx tem acesso do John Cage¿ Acho que é importante mostrar essas coisas. Os meus alunos todos ouvem funk e conhecem todos, tem até funk de filosofia: ‘qual a diferença entre o Lutero e Kant¿ um é iluminista e outro protestante’. Poisé, todos conhecemos. Mas pergunto: os alunos das escolas públicas da periferia de São Paulo têm a possibilidade de, pelo menos, saber a existência de alguém chamado Morton Feldman, de conhecer a produção musical que não seja só a produção popular, hoje¿ Eles têm acesso, eles podem ouvir¿ Se eles quiserem tocar um violino, até podem. Mas nada disso foi questionado. Não há uma desqualificação da produção popular, há uma consciência de que há uma oligopolização do processo que impede a circulação de uma parcela expressiva do que é a experiência musical dessas últimas décadas. E acho, por outro lado, que é necessário, sim, fazer uma crítica da produção cultural. Eu estou disposto. Vamos discutir com a partitura na mão. As análises são apenas sociológicas, e eu diria que são até totalmente limitadas, é como se não houvesse julgamento estético. Como se qualquer tipo de crítica estética fosse uma desqualificação de classe. Isso eu acho inaceitável. Esse tipo de julgamento estético não precisam desqualificar a produção popular, mas há de fato produções populares que precisam ser criticadas.
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