Nada como um inimigo comum para fazer desaparecer diferenças políticas, religiosas, sociais e até futebolísticas. Se existe algo que demonstra enorme capacidade de unir pessoas é o ódio. Em pequenos ou grandes grupos, homens e mulheres se juntam para celebrar o ódio aos gays, aos negros, aos judeus, aos muçulmanos, aos presos, aos drogados, aos corruptos, aos petralhas ou tucanalhas.
Eis que agora reaparece um antigo inimigo comum, novamente indesejável da hora: o adolescente infrator. E as agendas da política e da grande mídia voltam à carga com a velha e cansada proposta de redução da maioridade penal para 16 anos. Os adolescentes envolvidos em alguma prática criminosa são apresentados, pela enésima vez, como os novos inimigos.
O número da proposta de emenda constitucional que trata do tema é sugestivo: 171. Mesmo número do artigo do Código Penal relativo ao estelionato, crime praticado mediante fraude contra vítimas que muitas vezes sucumbem ao afã de levar vantagem em algum negócio, mas que acabam mesmo é caindo no conto do vigário e ficando apenas com o prejuízo.
Estamos diante de uma clara tentativa de estelionato. A população mais pobre, eterna massa de manobra e a mesma massa de onde vêm os prisioneiros de todos os cárceres Brasil afora, é agora levada a acreditar que a redução da maioridade penal seja capaz de trazer segurança pública. Proposta enganosa, tal que a reincidência no sistema prisional é enorme. Proposta que, na prática, está fadada a produzir ainda mais violência. Violência que se voltará exatamente contra os pobres, diante da seletividade escancarada do sistema punitivo. Ou alguém acredita que adolescentes das classes sociais mais abastadas serão levados à prisão? Isso por acaso já acontece com os criminosos adultos?
Entretanto, seduzidos e entorpecidos pela ideia de que o inimigo comum deve ser combatido com todas as forças, também os mais pobres apoiam a iniciativa. Acreditam, tal qual a vítima do estelionato, que a medida será uma vantagem para eles próprios. Que terão paz. Ledo engano. Aprovada a lei, não tardará em aparecerem aos montes os enganados, as vítimas da PEC 171.
Se estamos muito distantes de uma educação de qualidade, se a greve dos professores não é sequer notícia na televisão, se o governo oferece um salário de miséria para seus professores, se não temos conselhos tutelares decentes, se não há creches para os filhos dos trabalhadores, se não existem praças de esporte e lazer nos bairros periféricos, se não temos acesso a serviços públicos dignos, como transporte e saúde, se temos meninas e meninos marginalizados pelas ruas da cidade… Nenhum desses problemas parece importar tanto assim para uma causa comum.
Não! Se nada disso nos une, vamos então apoiar a exclusão dos adolescentes nas masmorras de sempre. Eles são os reais culpados pela violência que impera nas cidades, pela nossa depressão e pela alta do dólar. Não os “nossos” adolescentes, fazemos questão de ressaltar. O problema não é nosso, mas do outro, do filho do vizinho do lado de lá do muro.
Se as causas que poderiam levar à transformação da realidade brasileira para melhor não nos mobilizam, vamos, então, nos unir em torno do ódio, esse sentimento tão gostoso de sentir, em que projetamos cegamente toda nossa ira e ignorância para um inimigo imaginário, porém comum. E o inimigo é aquele jovem, compleição física de homem feito, drogado, coincidentemente negro, pobre, analfabeto e desempregado, mas que pode até votar. – Olhe lá! Parece que ele tem uma arma na mão!
Movidos pelo ódio vamos, então, defender a redução da maioridade penal. Vamos defender a PEC 171! Mas vamos assumir desde agora, com o mesmo rubor de vergonha da vítima do conto do vigário, que aceitamos o discurso fácil que vem de Brasília e que ecoa na televisão e nas redes sociais. Afinal, para que o estelionato aconteça não basta o vigarista; é preciso também o otário.
Por: Haroldo Caetano da Silva é promotor de Justiça em Goiânia-GO e Mestre em Direito.
sugado do: http://justificando.com/2015/04/24/o-odio-que-nos-une/
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