terça-feira, 3 de junho de 2014

O ateu pede a saideira

Religiosos dentro de partidos ou apenas representando correntes sacras conseguem a mágica de transformar fervorosos progressistas em pios conservadores.


Deus existe. Mas é ateu. (Millôr Fernandes)

Época eleitoral, promiscuidade concorrencial. No Brasil, foi dada a largada para negociações na penumbra, onde todos os gatos são pardos. Entre os grupos mais cortejados, estão os religiosos. Organizados dentro de partidos ou apenas representando correntes sacras em templos e púlpitos eletrônicos, conseguem a mágica de transformar fervorosos progressistas em pios conservadores. Socialistas se recusam a apoiar o direito das mulheres à interrupção da gravidez, em aberta contradição com o pensamento libertário que os originou. Neodesenvolvimentistas não se envergonham de ficar em cima do muro quando se trata de defender as pesquisas com células-tronco. Todos comparecem a cultos variados, onde aparecem compenetrados (sic), com evidente hipocrisia. Nenhum deles se atreve a condenar o ensino de religião em escolas públicas. Tudo para não enfurecer o bispo fulano ou o cardeal sicrano, que poderiam roubar-lhes preciosos segundos na televisão ou influenciar o voto de muita gente. Renunciam à coerência para prestar vassalagem ao atraso. De onde vem tanto poder ?

 
Quando trata de religião, nosso país é cínico. Embora o artigo 19 da Constituição brasileira garanta a laicidade do Estado, o Preâmbulo da nossa Carta Magna pede a “proteção de Deus” para os representantes do povo que elaboraram o documento. A pergunta óbvia é: a que Deus se referiam os nobres parlamentares ? Conto, a propósito, uma historinha, citada no livro Pimentas, do Rubem Alves, entre outras coisas teólogo cristão heterodoxo. Ela aparece no livro de Juízes. Guerreavam as tribos de Guilad e Efraim. Derrotados, os efraimitas temeram ser exterminados. Imaginaram um artifício. Tentariam atravessar a fronteira à noite, juntando-se aos guiladitas. Os guardas fronteiriços desconfiaram e pediram que aquela gente falasse a palavra Shiboleth. Sabiam que os efraimitas não conseguiam pronunciar o som “sh”. Dito e feito. Os espertinhos foram flagrados e, diz o texto sagrado, exterminados. Cerca de 42 mil deles foram decapitados e seu sangue “misturado com as águas do Jordão”. Não existe no texto sagrado, inspirado por Deus para exemplo, nenhuma condenação dessa matança, a despeito do mandamento “Não matarás”. O que prova, segundo Alves, “que o povo de Deus não dava muita bola para os mandamentos de Jeová. E parece que ele mesmo não levava a sério os mandamentos que ele mesmo promulgara, porque os morticínios, por sua ordem, são assombrosos”. É a esse Deus que o pessoal em Brasília pediu proteção ? Se não a ele, a qual ? Ao que sugeriu que pais e mães apedrejassem filhos rebeldes até a morte (Deuteronômio XXI, 18-21) ? Como ficaram os ateus, igualmente cidadãos com plenos direitos, que não precisam desse expediente para inspirar-se ?

 
Nossos espaços públicos são invadidos por símbolos religiosos, agredindo a neutralidade que os deveria caracterizar, e a coisa passa por normal. Crucifixos estão pendurados em tribunais de todas as alçadas. Praças exibem imagens de santos e símbolos de religiões não-cristãs (como uma grande Chanukiá, na praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana). A Assembleia Legislativa do Rio cede espaço para cultos evangélicos. É uma ocupação absolutamente indevida, que poucos ousam contestar.

 
A invasão sacra chega a parecer menor quando se compara aos feriados religiosos. Qual é o sentido de se decretar feriado nacional para se homenagear personagens ou referências da mística religiosa ? Qual é, por exemplo, o significado do feriado de São Jorge ou da Sexta-feira da Paixão para um muçulmano, um budista, um judeu ou um ateu ? Todos com iguais direitos constitucionais, mas uns mais iguais que os outros. As correntes hegemônicas se impõem, garantindo predominância no mercado da fé e influência na vida política. Foi exatamente isso que aconteceu ano passado, quando a prefeitura do Rio decretou feriado municipal durante a visita do papa Francisco à cidade. Parou-se tudo para homenagear o líder de um segmento religioso, não por acaso o mais numeroso em nosso país (embora esteja perdendo espaço, cada vez mais, para outras denominações cristãs). Cruzamento venenoso entre os espaços público e privado.

 
Ser religioso e participar da política não é, em si, negativo. A História tem exemplos para todos os gostos. A Igreja católica espanhola, associada ao grande latifúndio e à monarquia reacionária, foi punida pelos camponeses durante a Guerra Civil dos anos 1930. Imagens de santos foram fuziladas por milícias camponesas, partes do clero foram submetidas a tribunais revolucionários. Na América Latina, o padre colombiano Camilo Torres pegou em armas contra as oligarquias de seu país. Dom Helder Câmara e o padre Peyton pertenciam ao mesmo tronco, mas nada tinham em comum. O problema, me parece, são os lobbies, que retiram a fé do âmbito pessoal e a utilizam como ferramenta para impor agendas conservadoras a toda a sociedade. Não raro com expedientes terroristas. Nas campanhas eleitorais, subvertem o discurso político, mascarando-o com citações religiosas e confundindo o eleitor, que parece estar votando no clérigo e não no representante de uma corrente de ideias.

 
Já mencionei antes a imensa dificuldade que boa parte das religiões tem ao lidar com as questões do sexo e do desejo. Preferem reprimir, sublimar, punir, discriminar. Está em cartaz um belo filme do John Turturro, com um impecável Woody Allen no elenco. Em Amante a domicílio, que se passa num bairro novaiorquino com maciça população judaica ultraortodoxa, há uma cena inesquecível. A viúva de um rabino cai na rede do falso garoto de programa vivido por Turturro, que se faz passar por curandeiro espiritual. O acaso entra em cena. O “negócio” cai por terra quando ele se apaixona pela viúva. Ao encontrá-la e começar uma “massagem terapêutica”, ela começa a chorar convulsivamente. Perplexo, ele a ouve dizer que nunca tinha sido tocada. Reparem bem: tinha uma penca de filhos e jamais tinha se sentido tocada ! O finado marido a usava apenas para cumprir uma ordem divina, sem carinho, sem amor, sem direito à comunhão do sentimento com o prazer. Não pensem que isso é ficção. Tanto faz casamento para procriação ou proibição de casamento. Ambos são vestibulares para a melancolia e a solidão. Um monumental desserviço de religiões à ligeira passagem de todos nós pela Vida.

 
A tudo isso, prefiro a beleza da dúvida, que a ciência estimulou. Como bem lembrou Marcelo Gleiser, o físico poeta, “vivemos dentro de um útero azul, um oásis de vida em um Cosmo destituído de vida, frio e hostil”. Trazemos carimbadas em nossos corpos poeiras de estrelas, memórias viajantes de bilhões de anos. Um quintanar: Se as coisas são inatingíveis ... ora ! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas. Aproveitemos a chama fugaz, sem superstições ou aflições herdadas dos antepassados que tinham medo das tempestades. É essa a parte que nos cabe neste latifúndio.
Vi no: http://esquerdopata.blogspot.com.br/2014/06/o-ateu-pede-saideira.html

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