Discrepância. Os governantes foram fiéis aos planos iniciais. O partido nem tanto. Foto: B. Salgado/ Estadão Conteúdo |
Singular personagem, Golbery. Única, a seu modo. Fiel do maniqueísmo da Guerra Fria, inventou a ideologia destinada a sustentar o golpe de 1964, estranhamente impregnada por um pretenso, e de fato impossível, propósito democrático. Foi retirado da cena com o fim do curto mandato bienal de Castelo Branco, e só voltou ao governo no período de Ernesto Geisel. Partiu para a demolição do regime que contribuíra a criar, “lenta, gradual, porém segura”, sem que o próprio Geisel tivesse clara noção a respeito.
Enredo singular como a personagem. Mantido na chefia da Casa Civil por Figueiredo, Golbery deu prosseguimento ao seu plano, primeiro com uma anistia ardilosa que não foi “ampla, geral e irrestrita”, depois com a reforma partidária, cujo objetivo era estilhaçar a oposição reunida no MDB do doutor Ulysses, subitamente capacitado a se aproveitar daquelas pretensões democráticas e, a despeito de pressões, ameaças e riscos, a desempenhar um digno e importante papel.
De todo modo, a entrevista de Lula publicada na edição da primeira semana de fevereiro de 1978, deixou Golbery impressionado e muito interessado nos movimentos do astro nascente. Quando Lula ficou preso durante a greve do ABC de 1980, nas dependências do Dops, o mago planaltino enviou a São Paulo dois cavalheiros engravatados com a incumbência de entrevistar o preso no tom de uma conversa de amigos, peripatética, mas sutilmente inquisitiva. Apresentavam-se como subordinados do “cacique”, não melhor especificado, e queriam saber das ideias e tendências políticas do líder metalúrgico.
Golbery sairia do governo em agosto de 1981, em consequência das bombas do Riocentro e da tentativa de Figueiredo e de Octavio Medeiros de emperrar, se possível de vez, o processo de abertura. Da reforma eleitoral resultaram o PMDB de Ulysses, o PP de Tancredo Neves, o PDT de Brizola, a quem a legenda tradicional, PTB, fora sumariamente furtada para ser entregue a Ivete Vargas. E o PT de Lula, que dia 20 deste fevereiro celebrou dez anos de governo.
Longa caminhada, de êxito total. A busca do poder é o alvo de qualquer partido e se eleições fossem convocadas hoje, é mais do que certo que o PT continuaria folgadamente onde se encontra. Como dizia Raymundo Faoro, “eles querem um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”. Referia-se aos senhores da casa-grande. O governo Lula e agora o de Dilma Rousseff empenharam-se e se empenham para que os milhões se multipliquem às dezenas. E, quanto ao eleitorado, colhem os frutos de sua ação.
É do conhecimento até do mundo mineral que o Brasil progrediu nos últimos dez anos como jamais se dera na sua história, e fique claro que na sua desfaçatez, na sua parvoíce, na sua hipocrisia, a mídia nativa situa-se, queira ou não, em estágio anterior ao mundo mineral. Quem sabe, o magma primevo.
Não evito a seguinte consideração. Uma peculiar discrepância instala-se, na minha visão, entre partido e governo. O PT nasceu à sombra de um ideário político de franco esquerdismo, afinado com os tempos, no Brasil e no mundo. Sobretudo no Brasil, entregue à ditadura. Ao amadurecer, o partido soube adaptar-se às mudanças globais. Hoje pergunto aos meus meditativos botões se os avanços dos últimos dez anos se devem ao PT ou aos governos Lula e Dilma.
Governos do PT? Meus botões não são de cautelas, afirmam: mérito dos governantes, além do mais forçados a alianças nem sempre aprazíveis, a bem da governabilidade. Lula, divisor de águas. Dilma, firme continuadora. À época do surgimento do PT, imaginei um grande, versátil, inteligente partido de esquerda, capaz de produzir mudanças profundas sem maiores conflitos, como se deu em outros cantos do mundo, onde anéis saem dos dedos graúdos somente sob pressão.
O PT não foi essa agremiação ideal, e muitas vezes portou-se como as demais. E muitas vezes ofereceu munição de graça à feroz obsessão da casa-grande. E muitas vezes exibiu inúteis divergências intestinas, a lhe exibirem a fragilidade, quando não a má-fé. E muitas vezes levou a cargos de governos quem não merecia. É a voz dos meus botões.
Mino CartaNo CartaCapital
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