Ramatis Jacino |
Quando Ramatis Jacino, em seu belo texto "O Sonho do Ministro Joaquim Barbosa" assegurou-nos que "o conjunto de organizações sindicais, populares e partidárias, além das elaborações teóricas classificadas como 'de esquerda', [são] os aliados naturais dos homens e mulheres negros, na sua luta contra o racismo, a discriminação e a marginalização a que foram relegados" também recorreu a versos de Solano Trindade, dos
"Negros que escravizam e vendem negros na África, não são meus irmãos...
Negros senhores na América a serviço do capital, não são meus irmãos...
Negros opressores, em qualquer parte do mundo, não são meus irmãos..."
para reafirmar que acima de tudo é a solidariedade dos que optaram pelos pobres que norteia-lhes a construção de dignidades, os seus indignares frente à exclusão social, as suas inconformações com toda forma de injustiça ou, como dizia Bobbio, as suas indestrutíveis considerações de que se trata mesmo de uma aberração a desigualdade social que campeia neste Brasil e que lhe dando uma dimensão de tragédia concede-lhe destaque ímpar na cena mundial.
“Vai, Joaquim Barbosa! ser 'gauche' na vida”, poderia ter-lhe dito Drummond.
Tudo porque, como escreveu Cynara Menezes na CartaCapital, "ser de esquerda é não roubar nem deixar roubar", mas também "é ser contra a exploração do homem pelo homem e de países por outros países; é ser a favor da igualdade entre raças e gêneros; do Estado laico; é ser contra o preconceito e a intolerância; é ser a favor da natureza; de que o povo coma
bem e direito; da justiça social; é ser a favor de uma nova política para drogas e aborto; da reforma agrária; da moradia, da educação e da saúde de
qualidade para todos. Ser de esquerda é ser um defensor incorruptível da paz, da democracia e da liberdade. E ser de esquerda é, sim, dar menos importância ao dinheiro e mais à felicidade."
E, como ele veria, se porventura sonhasse o sonho de Drummond, que isso é muito mais do que roubar, "não roubar, nem deixar roubar", justo aquilo do que ele mais acusa José Dirceu, não de ser um homem de esquerda, dotado de todas aquelas virtudes, mas tão somente um reles chefe de uma quadrilha de ladrões.
Fiquei feliz com as dezenas de comentários supimpas que surgiram depois da publicação neste blog e de outros tantos que aplaudiram em silêncio ou via emails, o "O Sonho do Ministro Joaquim Barbosa".
Não só porque Ramatis Jacino pusera o pingo nos is, mas porque permitirá, quem sabe, que o Ministro Barbosa perceba que só lhe é permitido estar presente nas capas e espaços que os Marinhos, os Civitas, os Frias e os Mesquitas lhes emprestam - essas quatro grandes famílias da nossa imprensaGAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) - enquanto ele funcionar como um vigilante escoteiro da direita ideológica, a mesma que se regozija quando "Negros escravizam e vendem negros...", quando se tornam "Negros senhores na América a serviço do capital..." e "Negros opressores, em qualquer parte do mundo...", postos a seus serviços.
Tal e qual esses pobres diabos que em fins de carreira trocaram suas dignidades de rebeldes de esquerda que foram na juventude, com os atuais donos do poder e dos meios de comunicação, por algum espaço para escrever ou deitar falação sempre anti-PT, Lula ou Dilma, anti-esquerda como exigem seus patrões, nas rádios e emissoras de TV empresariais para que assim lhes sejam assegurados a sobrevivência dos decadentes.
Fico então mais à vontade pra condimentar este texto, pois, recuando algumas décadas, arrisco a dizer que é bem possível que o Ministro Barbosa tenha sabido que "com Richard Nixon e as ordens executivas do 'black capitalism', delineou-se uma família de políticas raciais destinadas a propiciar o surgimento de uma elite negra no mundo empresarial" norte-americano e, naturalmente e por conta própria, tenha aventado a hipótese disso merecer um prolongamento até o sofisticado universo do supremo judiciário brasileiro.
Tanto lá, como cá "a elite negra que emergiria a partir dos estímulos do poder público - nesse quesito Lula até que deu uma mãozinha - cumpriria a função de um agente da ordem, contribuindo para a estabilidade social e política. Se para o governo americano, a estratégia cumpriria a finalidade de amortecer o descontentamento gerado pelas profundas desigualdades econômicas, numa sociedade em que não era fácil distinguir classes sociais de grupos raciais" no Brasil, anos mais tarde, o ex-prefeito negro de São Paulo, Celso Pitta, demonstraria na prática que o furo é bem mais embaixo.
Custo a crer que Barbosa não tenha lido "Uma Gota de Sangue", onde Demétrio Magnoli - um dos ex-comunistas que aderiu à direita midiática com a fúria dos derrotados -, disse isso tudo e ainda assegurou pra quem quisesse ouvir, que a pobreza, tem sim uma cor, mas que aos "talentosos 10%", é-lhes destinado salvar "a raça negra, como todas as raças, por homens excepcionais."
Joaquim foi muito pobre, mas certamente se considera talentoso e, por conseguinte um homem excepcional, fruto inconteste do "melhor desta raça, que pode guiar a massa para longe da contaminação e morte, provenientes da ralé na sua própria e em outras raças."
E porque, logo ele, foi dar ouvidos a Magnoli e não pensar nessas "outras raças" como sendo todo o povo brasileiro, posto agora nesse alvorecer em que a moralidade da revista Veja se apresenta como sendo a bandeira a qual Barbosa devesse desfraldar para que ele apareça sempre na capa entre fogos de artifício, sorrindo a encantar a titubeante classe média brasileira, seus leitores, com vistas as eleições de 2014?
No entanto, nesse jogo brutal, o que é sensato o Ministro Barbosa entender, desde já, é que além da resistência aos processos desumanizadores do racismo ser, de longe, a maior contribuição dos negros à cultura brasileira, é, agora, ele também ter a consciência nítida de que "as elites brasileiras sempre utilizaram indivíduos ou grupos, oriundos dos segmentos oprimidos para reprimir os demais e mantê-los sob controle", como escreveu Jacino.
E sem refrescar alerta: "A tragédia, para estes indivíduos – de ontem e de hoje -, se estabelece quando, depois de cumprida a função para a qual foram cooptados são devolvidos à mesma exclusão e subalternidade social dos seus irmãos."
Assim, diria eu ao ilustre Juiz e Ministro Barbosa, por razões óbvias, fazer parte do jogo da burguesia não têm o condão de alterar o panorama de exclusão que se verifica até o instante em que as elites brancas admitem que um "talentoso 10%" pode lhes ser útil, mas que, certamente não passará disso.
Daí em diante, o que volta a prevalecer é a consciência e a realidade dos excluídos, tanto os que o são pela cor da pele quanto pela cor da pobreza.
Na verdade, e isso é o mais importante, o que deveria ser uma consciência de todos nós, uma bandeira da nossa identidade brasileira, talvez quem sabe - ou seria pedir muito? -, um outro sonho para Joaquim Barbosa, até um prenúncio de uma reordenação da nossa realidade social, daquela que até então permanece gravada de forma cruel na história do povo brasileiro.
Um sonho, uma consciência e uma bandeira que não devem servir pra que se consagre apenas como a história particular de um talentoso juiz negro alçado a Ministro do Supremo Tribunal Federal que a Família GAFE da Imprensa guindou ao altar da fama, mas de todo um povo que não merece que a vaidade dele ponha tudo a perder, justamente por ter-lhe faltado um talento a mais, aquele que Magnoli escamoteou, mas que é justamente o decisivo, o que seria capaz de fazê-lo perceber, sem ter que esfregar muito os olhos, o que exatamente está em jogo, o que vale e o que não vale na mesa do capital, seja ele "black or white", quando se trata de manter a hegemonia sócio-econômica de uma elite tupiniquim a qual ele não pertence e que, por tantos motivos, como sabemos, deve ser posta abaixo.
(*) Antonio Fernando Araujo é engenheiro e colaborador deste blog
seu comentario estara visivel depois de aprovado!"democracia"?
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