Formas contemporâneas de protesto inovam pela natureza urbana e heterogênea de seus integrantes
Praça do Sol, em Madri: principal centro de aglomeração dos indignados espanhóis, que reivindicam uma verdadeira democracia em seu país
O embate entre os interesses discrepantes que opõem os donos do poder e seus subordinados constitui o motor que conduz à transformação da história em direção a novas formas de organização política da sociedade. Mas esta forma clássica da luta de classes, na sábia definição de Marx e Engels, terminou ofuscada pela ascensão dos segmentos médios no pós-II Guerra Mundial, fruto de uma ampla reforma no capitalismo que trouxe melhorias no padrão de vida dos trabalhadores, especialmente nos países centrais.
A crise deste modelo, de inspiração keynesiana, interrompeu um ciclo de bonança, os chamados “anos de ouro do capitalismo”, abrindo assim uma brecha para o retorno do ideário econômico liberal, a partir de finais da década de 1970. Ao liberar os capitais antes reprimidos, com medidas de desregulamentação dos três mercados (de bens, de trabalho e de capital), abriu-se com esta estratégia privatista uma tenebrosa caixa de pandora.
O custo da tão propagandeada modernização econômica foi um recuo drástico do Estado em sua capacidade de planejar a produção e garantir o pleno emprego, terminando por detonar a maior crise social e econômica desde os anos 1930 em boa parte dos países avançados.
Mais de quarenta anos após do início da onda neoliberal, uma reação começa, por fim, a ser esboçada, com a constituição em 2011 de novíssimos movimentos de protesto, que impressionam pela capacidade de mobilização e de pressão política. Sua presença é especialmente evidente nas regiões mais fortemente afetadas pela crise do neoliberalismo, os países do norte da África e do Golfo Pérsico (dando lugar à Primavera Árabe, no início de 2011), a Espanha (do movimento de 15 de maio de 2011) e os EUA (Occupy Wall Street, com protestos iniciados em setembro de 2011). Apesar do curto espaço de tempo que nos separa destes eventos é possível já resumir alguns traços comuns que aproximam a forma de ação e as reivindicações destes movimentos de indignados que se globalizam.
Em geral, a sua natureza pouco tem a ver com as formas tradicionais de mobilização popular que marcaram o século XX. É um movimento urbano e heterogêneo em sua composição social, mas com um claro discurso contestatório em relação à falta de legitimidade política e econômica do sistema. A participação mobiliza um contingente que vai muito além dos operários subordinados ao capital, e ganha a adesão massiva de universitários, profissionais liberais, servidores públicos, e trabalhadores qualificados em contratos precários. Nos EUA, por exemplo, o movimento conclama os 99% a protestar contra os privilégios do 1% mais rico da população, mas a participação é mais nítida entre segmentos médios da população.
Enganam-se, no entanto, os que não enxergam um componente de classe nesta luta contra as injustiças de um sistema que beneficia uma minoria de abastados. Apesar das pautas locais, como a crítica ao poder do sistema financeiro nos EUA, ao bipartidarismo do sistema político espanhol ou ao autoritarismo dos regimes do Magreb, o discurso dos indignados visa acima de tudo chamar a atenção para a incapacidade da democracia liberal em permitir uma real participação popular nos processos de decisão política. Assim como a sua tendência em se corromper diante da tentação que representam os interesses econômicos das grandes corporações. Concretamente reivindicam um Estado forte, com metas sociais e de bem-estar, financiado pela tributação das grandes fortunas e riquezas.
Agência Efe
Polícia norte-americana reprime manifestantes dos Occupy com spray
Dada esta relação heterogênea de subordinação ao capital, os instrumentos principais de manifestação dos indignados também se afastam das tradicionais greves e paralisações que marcaram o século XX – e que continuarão evidentemente existindo no quadro das relações de trabalho assalariadas.
A forma de protesto agora é completamente inovadora, marcada pela ocupação de espaços públicos, e não necessariamente dos locais de produção, cada vez mais distantes dos centros de decisão política. Sua capacidade de mobilização se multiplica em ações previamente arquitetadas nas redes sociais. No aniversário do movimento 15M, os indignados espanhóis tomaram a Praça do Sol em Madri em menos de 15 minutos. Uma demonstração de disciplina impressionante, principalmente quando se sabe que o comando do movimento é descentralizado, e não se submete a partidos de esquerda convencionais.
Na América Latina, a indignação é mais visível nos países que resistem a adotar reformas no modelo econômico, mantendo a sua natureza liberal e dependente, especialmente Chile e Colômbia. No entanto, o modus operandi do movimento dos indignados tem um certo paralelo com a revolução latino-americana atualmente em curso. Na Argentina, os panelaços ocuparam por semanas a Praça de Maio até a substituição do regime rentista e neoliberal que afundou o país na pior recessão de sua história, no início dos anos 2000. Na Venezuela, uma contra-revolução popular ocupou, literalmente, o Palácio Miraflores para restituir o poder a Chávez, derrubado por uma conspiração golpista em 2002.
O elemento comum a esta nova onda de mobilizações é o lugar de vanguarda e de comando ocupado pela juventude, especialmente as gerações nascida nos anos 1980 e 1990. Poucas vezes na história líderes sociais tão jovens tiveram um papel tão relevante em movimentos nacionais – e globais. Para ilustrar, o Outra Economia conversou com Christine Rondon, do Comitê Gaúcho da Verdade, Memória e Justiça, de Porto Alegre, que tem participado das ações, conhecidas como “esculachos”, no âmbito do resgate da memória da ditadura no Brasil.
Agência Efe
Manifestantes egícios ocuparam a praça Tahrir e ajudaram a por fim ao regime de Hosni Mubarak
Em seu primeiro ato, em frente à antiga sede do Dops (centro de tortura e prisão clandestina da ditadura) na capital gaúcha na semana passada, o Comitê reuniu 200 pessoas, relata Rondon, “sendo que a maioria tomou conhecimento da atividade através do Facebook”, e destaca a importância da “organização em rede que conectou diferentes atos no Brasil inteiro e a criatividade do ativismo digital dando uma dimensão para a pauta que seria inatingível sem a democracia das redes sociais”.
Os cientistas sociais ainda não foram capazes de produzir uma interpretação à altura deste fenômeno. Castells, Chomsky e Hobsbawm têm arriscado algumas hipóteses interessantes: são unânimes em apontar o potencial de mudança que poderá promover tamanha indignação. E mudança, no vocabulário dos indignados, representa nada mais, nada menos, que alterar o curso da história, impondo uma profunda transformação nas estruturas de poder dos Estados e das grandes corporações. É com um de seus lemas mais bradados nas manifestações que encerro este artigo, por resumir perfeitamente as pretensões dos indignados, instigando ao mesmo tempo a nossa reflexão sobre a falência no sistema em que vivemos: DEMOCRACIA REAL JÁ!
Pedro Chadarevian é doutor em Economia pela Universidade de Paris, professor de Economia na Universidade Federal de São Carlos e editor do blog Outra Economia. Escreve quinzenalmente ao Opera Mundi às quintas-feiras.
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