quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

TV trucida transmissão de desfile das escolas de samba

Alavanca do capitalismo, a televisão é hoje o principal inimigo da livre concorrência
O desfile das escolas de samba pode até ser o maior espetáculo da terra. Mas a televisão brasileira ainda não aprendeu a transmiti-lo.
Há uma forte razão que obriga todas as escolas a terem um samba-enredo e que seus integrantes sejam estimulados a cantá-lo e sambar com ele. Mas quem assiste ao desfile pela TV, logo percebe que o áudio é um mero detalhe.
A transmissão não se ocupa dele. Os sons parecem todos iguais e se não fosse por dois minutos de legenda, nem sequer saberíamos qual a música que cada escola escolheu para guiá-la.
Os enredos são mesmo complexos, falam de muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Mas o carnavalesco nem precisaria se preocupar em armar uma ordem mais ou menos lógica para tentar explicá-lo.
A transmissão da TV é randômica, vai e vem para frente e para trás freneticamente, alternando alas, destaques e carros e impossibilita ao espectador saber quem está na frente, quem está atrás.
A bateria é o pulmão de qualquer escola de samba, e quem quer que já a tenha ouvido ao vivo tem exata noção de sua importância e da emoção que provoca. Mas o som que ela produz é quase inaudível nas transmissões.
Os instrumentos dos ritmistas mais parecem fantasias. Como todo o desfile, aliás, muito mais plástico que acústico.
Bateria da São Clemente na Sapucaí
(foto: Dhavid Normando/ Futura Press)
A TV Globo continua tratando os espectadores pela doutrina Willian Bonner, segundo a qual quem está do outro lado da tela são milhões de Homer Simpson.
É preciso explicar cada uma das cenas como se estivéssemos assistindo a uma inusitada cerimônia aborígene ou a transmissão do parlamento sueco.
Mas os comentários que ouvimos na longa transmissão forjam, mais ainda que os enredos incompreensíveis, aquilo que o compositor e humorista Stanislaw Ponte Preta denominava "samba do crioulo doido".
O falso suicídio de Wladimir Herzog foi um tema muito "desenvolvido", diz o narrador. Antônio Conselheiro, líder da revolta de Canudos, vira mártir da independência brasileira. E por aí vão os comentários que nos impedem de ouvir as músicas.
Samba e enredo, cultura e alegria, engenho e arte, tudo sai de cena quando o assunto é encontrar celebridades na avenida.
Como madrinhas de bateria, destaques de alegorias ou diretores ad-hoc, toda escola tem os seus globais, que serão fartamente iluminados pelas câmaras da casa durante todo o desfile e entrevistados em plena ação, mesmo que para isso alas inteiras devam sucumbir na sombra.
Descobre-se, ao final, entre tantas vinhetas, salas especiais e recursos visuais repetidos ad nauseam, que a vedete do Carnaval é sempre a própria emissora.
E como se não bastasse trucidar o desfile, a Globo ainda estimula seus milhões de telespectadores a opinar pelo telefone justamente sobre aquilo que não viram.
Como escolher entre os vários sambas-enredo que a emissora impediu que conhecêssemos? Como dar nota às baterias cujos sons nos foram sonegados? Não, a nota não tem nenhum valor, dizem eles insistentemente; apenas preço: trinta e poucos centavos mais os impostos etc.
Mudar de canal, como se sabe, é impossível.
Formadora constante de monopólios, a TV, alavanca do capitalismo, está se tornando, paradoxalmente, a maior inimiga da livre concorrência.
Para corridas, jogos ou eventos musicais, não existe mais opção nesse liberalismo totalitário.
Vai chegar um dia que alguma emissora, possivelmente a própria Globo, terá exclusividade na cobertura de uma passeata, na apuração da eleição ou na posse de um presidente.
Para as escolas, o dinheiro engrossa o caixa não apenas pelos direitos de transmissão, mas cada vez mais pelo uso do merchandising.
Produtos, locais ou pessoas vão se tornando enredos à medida em que são bons de retorno financeiro - é a tal força da grana que ergue e destrói as coisas belas.
Assistimos à escola bancada pelo iogurte, com uma ala de lactobacilos, ou à que rende homenagem à mulher, alojando rimas da esponja de limpeza patrocinadora nas estrofes do samba.
Se o mundo é um moinho, como já ensinava Cartola, e vai mesmo reduzir nossas ilusões a pó, talvez devêssemos é nos dar por satisfeitos, enquanto o Carnaval não se transforma num enorme reality show.
No Sem Juízo, por Marcelo Semer

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