quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

EM "KEOMA", CIDADE EMPESTEADA (mas não é daqui) ESTÁ SOB DOMÍNIO DE MILICIANOS QUE IMPEDEM ENTRADA DE MEDICAMENTOS

 

Keoma (1976) foi o canto do cisne do western italiano, tendo encerrado tal ciclo com extrema dignidade.

Trata-se daquela obra-prima que eventualmente um diretor convencional (no caso, Enzo G. Castellari) realiza uma única vez na vida, como se tentasse provar que tinha talento para voos maiores.

Mestiço (Franco Nero) volta da guerra da secessão e encontra sua cidade dominada por uma milícia de ex-soldados, desengajados  após o final do conflito; dela fazem parte seus três meio-irmãos, que sempre o hostilizaram por ser filho de uma indígena e não da mãe deles.

Grassa a peste e Keoma salva uma mulher grávida (Olga Karlatos) que estava sendo levada para o confinamento de leprosos porque o marido contraíra a doença, embora ela mesma não apresentasse sintomas.

Ele não saberá depois explicar direito a ela o porquê de haver comprado tal briga, justificando-se com a frase "todos têm direito de nascer". Mas, seu ato trará graves consequências para o pai (William Berger), o empregado negro que o criou (Woody Strode), os irmãos, o bando de Caldwell (Donald O'Brien) e, enfim, para toda a cidade.
O subtexto é dos mais ricos:
  • a briga entre os quatro irmãos remete, é óbvio, a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
  • o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
  • a presença da velha índia (Gabriela Giacobbe) nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
  • o herói errante em busca de um desígnio que dê sentido à sua vida também tem inspiração mitológica;
  • a peste se constituiu num elemento bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o escritor Albert Camus (A PesteO Estrangeiro), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
  • finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos – Keoma é filho de Shane, o mocinho (Alan Ladd) de Os Brutos Também Amam, enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem era um dos atores prediletos.
E não foi só Castellari quem se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A  dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Morricone. O contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se casam maravilhosamente com o filme.

Em suma: trata-se de um merecido cult e, por enquanto, de um clássico não reconhecido. 

E será uma pena se Castellari afinal concretizar o projeto que acalenta há bom tempo, de criar uma sequela chamada Keoma rises (ou The Fourth Horseman, ou Badlanders), estrelada por um Franco Nero que acaba de tornar-se octogenário e tendo como vilão... Quentin Tarantino! 

Prenuncia-se tão descartável quanto Django – a volta do vingador, que o inexpressivo diretor Nello Rossati (aka Ted Archer) cometeu em 1987 (por Celso Lungaretti)
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lista de filmes do Festival do Western Italiano 

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