por Eduardo Matos de Alencar (03/01/2018)
1. O lugar dos ingênuos, ou Besta é o coco, que dá leite sem ter peito
Em 2012, eu trabalhava como gestor da UPP Social na Rocinha. O programa, fruto de uma parceria entre a ONU-HABITAT e a Prefeitura do Rio de Janeiro, tinha como alguns de seus principais objetivos estabelecer uma fonte confiável de informação a respeito das comunidades e uma comunicação permanente com as lideranças políticas dos territórios pacificados. A ideia alegada dos seus idealizadores era criar um novo canal para o desenho e implementação de políticas públicas em áreas de favela que não perpassasse pelas redes tradicionais da baixa política carioca, há muito influenciada por facções criminosas e milícias que detinham o controle histórico daquelas localidades.
A minha nomeação para gestor da Rocinha e do Vidigal se deu basicamente na semana de entrada no BOPE da comunidade. Antes assistindo à equipe da UPP Social na Cidade de Deus e no Batan, fui chamado para uma reunião com a diretoria do programa e designado para a missão. Tratava-se de uma tarefa complexa, que se daria pari passu à implementação da própria Unidade de Polícia Pacificadora. Durante meses, nossa faina consistiria no mapeamento dos principais grupos e lideranças comunitárias, projetos sociais e demandas mais urgentes da Rocinha – um trabalho hercúleo, em se tratando de uma comunidade com centenas de milhares de pessoas.
Apresentados publicamente numa reunião lotada na quadra da escola de samba da Rocinha, ao lado do Prefeito Eduardo Paes e outras autoridades, não tivemos muitas dificuldades de acesso às principais lideranças da comunidade num primeiro momento. No início do programa em cada localidade, ainda havia a expectativa que ele se traduzisse em algum tipo de investimento público, de modo que não raro as lideranças políticas procuravam angariar nossa simpatia, fornecendo auxílio para atividades de mapeamento e participando dos eventos do programa.
Claro que isso ocorria somente nos primeiros meses da implantação, e nem sempre de maneira pacífica. Nem todas as lideranças locais nutriam simpatia para com a prefeitura do PMDB. Algumas se encontravam ostracizadas devido ao alinhamento com alguma candidatura de oposição durante as eleições passadas. Outras, por sua vez, possuíam ligação orgânica com os poderes estabelecidos do narcotráfico, enfrentando a instabilidade decorrente do processo de pacificação. Enquanto várias pessoas viam aquele momento do Rio de Janeiro com desconfiança, outras aproveitavam a situação para uma desforra, numa tentativa não raro impulsiva de desestabilização do status quo.
Na Rocinha, a situação era deveras complicada. O mapa político da comunidade se encontrava francamente cindido. O maior e mais poderoso grupo político ocupava a UPMMR – União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha. Conhecidos pela inconfundível camiseta amarela que utilizavam em eventos públicos, com ampla capacidade de mobilização e táticas de intervenção política profissionais, os chamados “amarelinhos” eram famosos pelas ligações com o antigo “dono” da comunidade, o traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como Nem.
Relatos de inúmeras fontes remontavam a constituição daquele grupo a uma iniciativa do chefe criminoso[i], que pretendia ter uma atuação política mais presente na cidade. Foram uma peça chave para eleição do vereador Claudinho da Academia, encontrado morto no seu apartamento alguns anos antes. Naquele momento de chegada da UPP, a UPMMR se portava com franca desconfiança ou agressividade em relação aos atores ligados de alguma forma ao processo de pacificação.
Por meio da atuação de pessoas ligadas a figuras políticas como José Rainha, ex-líder do MST e atualmente condenado por inúmeros crimes, a UPMMR agia de maneira profissional e sistemática, talvez como nenhum outro grupo político das comunidades cariocas. Com capacidade para reunir uma verdadeira tropa de choque composta de dezenas de pessoas, podiam desestabilizar eventos, organizar escrachos públicos, espantar políticos indesejados ou intimidar frontalmente moradores quando se tratava de conseguir apoio político ou coibir opositores. Possuíam uma ampla rede de contatos na comunidade, com inúmeros aliados, informantes, financiadores e uma vasta clientela, mas não poucos detratores também, insatisfeitos com o clima de opressão política, outrora relegados à marginalidade por interferência de Nem, que não aceitava atuação política direta fora do seu cabresto.
Essa atitude de desconfiança viria a se provar mais do que justificada, visto que, meses mais tarde, o major da PMERJ responsável pela administração da UPP (e mais tarde imbricado no caso Amarildo) desempenharia papel ativo para o desmonte de parte da rede de poder do grupo. Ainda naquele ano de 2012, em pleno processo eleitoral, uma investigação policial revelaria um esquema de distribuição de milhares de cestas básicas na comunidade, financiado pelo dinheiro do narcotráfico. Essa clientela serviria para possibilitar a eleição do atual presidente da UPMMR a vereador naquele ano, mas também para negociar votos com deputados federais e estaduais do Rio de Janeiro, candidatos a prefeito e governador etc.
Como parte da nossa tarefa consistia em consolidar redes alternativas para diálogo e levantamento de informação, ainda que mantendo relações com as lideranças estabelecidas, a nossa entrada na Rocinha juntou a fome com a vontade de comer. Ao contrário do que ocorria com a UPMMR, muitas lideranças e atores políticos se mostraram abertos para interação com a nossa equipe. Enquanto uns procuravam vocalizar demandas históricas, como a regularização fundiária, o saneamento básico ou a construção de escolas e creches públicas, outros tentavam se aproveitar para ganhar legitimidade junto à população, procurando angariar simpatia como aliados dos novos atores que poderiam trazer algum tipo de investimento ao local.
Claro que, como ninguém é só uma coisa neste mundo, havia os que procuravam atingir ambos os objetivos. Fiquei particularmente próximo de uma dessas pessoas, que chamarei aqui de Flávio Almeida. Outrora uma liderança ativa na comunidade, terminara caindo no ostracismo por disputas internas com o pessoal da UPMMR. Ficara famoso durante o período das obras do PAC-2, por consolidar pontes de comunicação entre os planejadores das obras, as empresas responsáveis pela execução, o poder público, os beneficiários da comunidade e os traficantes que dominavam o lugar. Fora um trabalho difícil, que lhe rendera problemas de diversas ordens, incluindo os de saúde. Ainda que tivesse dificuldades sérias de locomoção, Flávio demonstrava interesse em continuar influenciando o processo político da Rocinha. Desde o início da nossa chegada, sempre se mostrou solícito para fornecer informações privilegiadas e opinar sobre os projetos da UPP Social para o lugar.
Após alguns meses de trabalho na Rocinha, acabei me tornando amigo pessoal de Flávio, que também funcionou como uma espécie de conselheiro em inúmeros momentos. Visitava sua casa regularmente após o expediente. Tomávamos café juntos, jantávamos. Conheci sua família e boa parte dos problemas sociais e políticos da Rocinha, pelo menos na sua visão dos fatos.
Um dia, Flávio me mostrou um material que guardava com todo o cuidado, da época que teve atuação mais direta na política local. Tratava-se de um calhamaço que continha o nome de mais de duas mil pessoas na comunidade, com endereço e telefone, que alegava conhecer pessoalmente. Era uma mala direta, uma lista de contatos que utilizava para negociar apoio político. Flávio queria saber se eu não conhecia algum candidato ou pessoa da prefeitura que estivesse interessado em estabelecer negociação, já que haveria eleições municipais no ano que vem.
– Com isso aqui, o cara pode fazer uma rede boa aqui na Rocinha. Pode mandar uma cartinha semanal, visitar as pessoas, distribuir algum benefício. Eu não tenho mais pé para visitar todas elas, mas conheço cada uma. É só falar no meu nome, que vai ter uma relação de confiança. Acho que agora é um bom momento para ativar essa rede.
Educadamente, recusei, sob a desculpa de não ter contatos políticos efetivos no Rio, por ser de fora da cidade. Flávio não pareceu abalado e se pôs a falar sobre a ideia de negociar com algumas figuras aquele material. Talvez com Romário, que já aventava apoiar uma candidata à Câmara municipal. Também havia um ou outro candidato ligado a Eduardo Paes com quem teria interesse em negociar. O importante era não ficar para trás durante as eleições, já que muitas lideranças de fora e de dentro da comunidade estavam querendo se aproveitar do novo momento político para angariar votos e se legitimar junto aos moradores.
Não demorou muito tempo até que eu fosse descobrindo as outras personagens com pretensão política na comunidade. Do responsável pela região administrativa municipal, comerciante muito conhecido por todos, até um autointitulado representante dos nordestinos da Rocinha, boa parte das lideranças do lugar pareciam ter pretensões políticas.
Claro que poucos deles acreditavam de verdade na possibilidade de serem eleitos. Na forma que o sistema político brasileiro funciona na atualidade, gente assim costuma servir como puxador de votos para a chapa de algum político de maior cacife, principalmente em se tratando de pessoas pobres, de um território isolado no Rio de Janeiro, fora do qual os nomes dificilmente se fariam conhecidos. Qualquer um que conseguisse uma margem razoável de votos ali dentro, digamos, na casa de mais de 2.000, poderia contar com um emprego ou cargo público na prefeitura, no governo estadual ou no gabinete de algum político do legislativo. Era uma forma de iniciar a carreira política e possivelmente garantir o sustento da família e de alguns amigos por um bom tempo.
Eu mesmo cheguei a receber uma proposta de entrada nesse sistema, ainda que numa posição bem mais tímida. Uma das pessoas com quem mantive mais contato durante o período de trabalho da Rocinha, a responsável pelo Centro de Referência de Assistência Social que atendia a região, diversas vezes havia contado com minha ajuda para realizar mobilizações para atendimento ao público e cadastramento do Bolsa Família na comunidade. Depois de muitas conversas sobre os grupos e personagens políticos da Rocinha, essa pessoa me surpreendeu com um convite para uma reunião com o então Secretário de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro, Rodrigo Bethlem. Autorizado pelos meus superiores, compareci ao encontro, que se resumiu a um pedido do secretário para que apresentasse o que eu entendia como o mapa político da Rocinha – quem tinha influência em qual área, quem estava ligado a quem etc. Fiz o que me era pedido, na esperança de que aquilo resultasse em ações mais concretas da secretaria no território, mas fui dispensado cordialmente sem mais informações. Enquanto entrava no ônibus, entretanto, recebi um telefonema da moça que me convidara para a reunião.
– Você não teria seis pessoas para a gente empregar na Rocinha?
A pergunta era capciosa. Depois de quase um ano trabalhando numa favela com milhares de pessoas em situação de privação extrema, alguém como eu teria muito mais do que seis pessoas, evidentemente. E, considerando que a UPP Social cada vez mais se mostrava incapaz de atender às expectativas em torno do programa, a tentação de fazer valer de alguma forma meu esforço para aquelas pessoas não era pequena. No entanto, o convite nada tinha a ver com o programa, era pessoal. O cálculo era óbvio: caso eu arrumasse os seis nomes, ficaria estabelecido um outro nível de relacionamento, tanto para dentro da comunidade, quanto para fora, no nível da política partidária. Os beneficiados se sentiriam em dívida pessoal para comigo. Os preteridos inevitavelmente saberiam da indicação, mais cedo ou mais tarde. Poderiam expressar ressentimento ou expectativa quanto ao futuro. Ao mesmo tempo, a minha influência cresceria um pouco mais. Eu começaria a jogar um outro jogo que nada tinha que ver com política pública. Era a passagem discreta para o nível de ator político efetivo dentro de uma das comunidades mais badaladas do Rio de Janeiro. Evidentemente, recusei a oportunidade.
No final de 2012, quando já me decidira a abandonar a UPP Social, inúmeras situações dessa natureza, algumas menos, outras bem mais bizarras, haviam se repetido comigo e com outras pessoas que trabalhavam em outras comunidades. A elas se somava uma crescente animosidade em relação às pessoas que trabalhavam no programa, por várias razões.
Do lado da prefeitura, a ideia inicial do programa, de estabelecer um mecanismo para o levantamento de informações e construção de relações políticas diferente das redes tradicionais, com objetivo de atender realmente às demandas locais, revelou-se um rotundo fracasso. Abrigada no Instituto Pereira Passos, a UPP Social demonstrou eficiência no trabalho de mapeamento das principais demandas das comunidades atendidas pelo programa. O problema é que isso nunca chegou realmente a entrar na agenda política da prefeitura. Afinal, as secretarias, loteadas na base das negociações partidárias e influências territoriais que se estabeleciam através dessa mesma rede de relações políticas espúrias que o programa se propunha a substituir, não tinham incentivos para colocar a UPP Social em destaque. Cada demanda atendida por intermédio do programa significaria o enfraquecimento de redes políticas historicamente estabelecidas, quebra da confiança, perda de capacidade de negociação. Para quê desmoralizar aquelas lideranças locais dentro das comunidades, se o papel de intermediário entre o voto da população e a concessão de serviços funcionava para consolidá-los no poder, ainda que isso passasse de alguma forma pelo tráfico de drogas? Era mais fácil e mais desejável deixar que o programa perdesse legitimidade nesse processo, dada a expectativa pública criada em torno dele, do que mudar uma lógica que funcionava muito bem para atender aos fins para os quais fora instituída.
Assim, do lado dos territórios pacificados, inúmeras pessoas, incluindo as lideranças comunitárias, não demoraram a perceber que os integrantes do programa haviam adquirido um papel meramente figurativo no cenário político carioca. Nos locais onde não sofriam escracho público, as equipes passaram a ser ignoradas solenemente, com toda a razão. Todo mundo já sabia que o idealizador e responsável pela UPP Social havia se retirado para a presidência de um instituto social de um grande banco. Agora, uma economista ligada à PUC assumia o programa, com a missão de mudar o seu formato, para atuar como espécie de mediador de investimentos privados dentro das comunidades, também com resultados igualmente ineficazes. Não demoraria até que a iniciativa se transformasse em uma das maiores piadas do projeto de pacificação.
2. As regras e as razões do jogo, ou Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos
O que antes me parecia um idiossincrático sistema político das favelas cariocas, mais tarde se revelou, pela experiência e pelo estudo, como parte da estrutura mesma do sistema político brasileiro, pelo menos no que se refere à lógica do voto nas áreas mais pobres do país. Trabalhando em mais de uma prefeitura no Nordeste durante os anos posteriores, o contato com algumas pessoas atuantes nas campanhas municipais me ensinou que tudo aquilo que eu vira como um complicado jogo de relações pessoais era absolutamente precificado. Os relatos que ouvi para eleição de prefeitos e vereadores envolviam cálculos complicados sobre que lideranças precisavam ser compradas e a que preço. Havia mapas bem precisos das divisões políticas de cada bairro, incluindo as pessoas mais ou menos influentes, as lideranças, os formadores de opinião, isto é, todos aqueles que são cabos eleitorais, os puxadores de voto que ganhavam a confiança da população porque tinham algo a oferecer em troca. Era a dona de uma creche ou escola, a enfermeira de um posto de saúde, o empresário à frente de um bar, casa de show ou supermercado, o policial que fazia a segurança informal do lugar ou o líder comunitário que oferecia cursos no centro social.
Além de benefícios imediatos, o nível de credibilidade dessas pessoas dizia respeito à capacidade de atrair melhorias efetivas para a comunidade. Quem ganhava confiança era quem conseguia aparecer ao lado do funcionário da companhia de limpeza urbana, que mais tarde instalaria uma caixa compactadora naquele local com um problema particular de descarte irregular de lixo. Ou a pessoa que indicava para o agente da companhia de energia elétrica quais ruas deveriam ser contempladas com nova iluminação. Ou aquele que detinha um contato em certo hospital parar furar a fila de um exame ou cirurgia mais urgente. Ou, simplesmente, o cara durão capaz de oferecer proteção privada contra os marginais que assolavam os moradores da área, não raro usando de violência letal para resolver problemas que a polícia não demonstrava capacidade ou disposição de resolver. No final das contas, em grandes áreas das cidades, para um contingente enorme de pessoas, os serviços nunca eram públicos, porque se tornavam mercadoria política. Não parece fazer sentido para a maioria dos políticos ofertar algo de maneira impessoal, com regularidade e eficiência, quando se pode transformar qualquer coisa (água, luz, lixo, saúde, segurança) em moeda de negociação. Ao fim e ao cabo, era assim que a coisa funcionava em todo canto.
Uma maneira excelente de observar como isso se dá na prática é durante as chamadas ações sociais, que ocorrem no país inteiro, com intensidade particular em anos eleitorais. Em um dia especial, agentes públicos se reúnem para mobilizar parte do aparato de que dispõem em diversos órgãos para ofertar serviços simultaneamente em alguma área pobre da cidade. Cadastramento para benefícios sociais, retirada de documento, aferição de pressão, oficina de artesanato, animação infantil, corte de cabelo, maquiagem, distribuição de kits de higiene, camisetas e brinquedos se associam num dia de festa e filas na comunidade.
Os discursos em torno desse tipo de intervenção sempre enfatizam ideias de cidadania ou promoção de direitos, mas não há ocasião em que os responsáveis pelo evento não apareçam publicamente ao lado de lideranças comunitárias aliadas. O objetivo pode ser conferir credibilidade àquelas pessoas, iniciar um corpo a corpo mais próximo para a promoção de um futuro candidato ou simplesmente construir uma mala direta para a distribuição de benefícios e garimpagem de votos.
Em cidades do interior do país e mesmo em muitos bairros de periferia e nas favelas das grandes cidades, a troca não raro se dá na forma da compra pura e simples de voto. Há regiões em que os moradores já obedecem à tradição de esperar na frente de suas casas na madrugada anterior às eleições, para receber os cabos eleitorais que vem trazendo dinheiro nas mãos. É comum que os eleitores recebam de mais de um candidato e acabem se decidindo por outros meios em quem vão votar. Ao contrário do que se pensa, não se tratam de casos isolados ou anedóticos, mas da estrutura mesmo do funcionamento do sistema político brasileiro para milhões de pessoas.
Nesse jogo, podem ser criados projetos que procuram dar uma aparência de legitimidade ao sistema. O Orçamento Participativo (OP), implementado pelo Partido dos Trabalhadores em algumas cidades, por exemplo, funcionava como um instrumento eficiente para seleção das lideranças políticas com influência real dentro das comunidades, com capacidade de transferir voto. Afinal, em um sistema que opera com uma lógica que precisa permanecer oculta, uma das coisas mais difíceis é aferir a reputação das pessoas envolvidas. Normalmente, os partidos trabalham com intermediários que procuram selecionar, cooptar ou mesmo fabricar essas personalidades políticas dentro de determinadas áreas que são de seu interesse. Nesse processo, muita gente acaba passada para trás. Alguém pode aparecer para fora da comunidade como popular, mas, para dentro, não passar de um fanfarrão. É normal que aproveitadores vendam para os políticos algo que não tem. O sucesso nas eleições depende diretamente da capacidade de comprar as pessoas certas e não ser feito de trouxa. Nunca é uma questão só de dinheiro, mas também de saber como emprega-lo da maneira correta.
Com o OP, o PT conseguiu criar um mecanismo que furava a fila dos intermediários. Afinal, aquelas lideranças que fossem capazes de arregimentar mais pessoas para as plenárias e se elegerem, deteriam comprovada influência local. Tratava-se, portanto, de identificá-las e fornecer algum benefício real para que trabalhassem junto ao partido, como filiados ou não. Uma pesquisa nos Diários Oficiais de cidades como Recife ou Porto Alegre, em comparação com os candidatos e delegados eleitos nas plenárias do OP, pode demonstrar isso que estou falando com exatidão, isto é, a quantidade de lideranças comunitárias que terminam sendo contempladas com um emprego na máquina pública. Claro que os cientistas políticos que costumam pesquisar o assunto, por limitações metodológicas, comprometimento ideológico ou simples interesse normativo em promover qualquer coisa que lhes pareça mais democrática do que o nosso atual sistema político, não costumam atentar para essa face obscura da “festa da democracia” criada pelo Partido dos Trabalhadores. Aqui, eu só pretendo falar do que eu vi com meus próprios olhos ou ouvi das pessoas envolvidas diretamente no processo.
Outras pessoas também procuraram expor essa lógica do nosso sistema político, com fontes até melhores que as minhas. Em O Nobre Deputado (Editora Leya, 2014), um livro rapidamente descartado pelos especialistas pela suposta “falta de evidências empíricas”, Marlon Reis, o juiz responsável pela Lei da Ficha Limpa, chega a apresentar parte dos valores envolvidos na economia política do voto[ii]. Depois de realizar entrevistas com políticos eleitos e operadores dos partidos em diversos estados da federação, chegou a conclusões que defende como homogêneas em quase todos os rincões do país. Os valores pagos pelo voto aos cabos eleitorais podem variar, R$ 50,00, R$ 100,00 ou mesmo R$ 150,00. A economia política que explica esse cálculo com precisão ainda está para ser delineada, mas sabe-se que ele se relaciona com a reputação do cabo eleitoral em converter os votos que promete, a posição relativa dos candidatos na pesquisa, entre outros fatores.
É bom ressaltar que, aqui, não está em jogo uma visão de mundo que procura esvaziar a democracia dos seus aspectos racionais. Ao contrário, parcela considerável dessas pessoas são perfeitamente capazes de fazer cálculos na hora de trocar seus votos por dinheiro ou um benefício imediato para sua rua ou comunidade. Não foram poucas as vezes que vi secretários ou gestores públicos desdenharem das necessidades de investimento em determinadas áreas porque não correspondiam à votação do grupo político que havia faturado a eleição. Nesse sentido, os mapas eleitorais por setores censitários publicados pelo TSE são um importante instrumento para os políticos decidirem que locais devem receber mais recursos, e quais devem sofrer mais com a escassez. Aqueles que apoiaram fortemente a eleição de um candidato podem esperar o mínimo de deferência na distribuição dos recursos disponíveis. Já os estados, cidades, bairros e comunidades que não atenderam às expectativas, nem tanto. É uma questão de estratégia. Afinal, é deixando populações inteiras à míngua que se retira a credibilidade e confiança nas lideranças políticas estabelecidas, abrindo espaço para sua substituição por outras mais leais no futuro.
As pessoas comuns não raramente sabem disso, ou percebem pela simples experiência cotidiana. Por outro lado, a quantidade de vezes que tiveram de lidar com promessas estruturais não cumpridas também é um elemento importante para conformar sua decisão. Na hora em que se tem de lidar com um mercado em que todos os fornecedores possuem péssima reputação, é preferível estabelecer negócios imediatos do que relações de longo prazo. Troco e recebo, uma única vez, para só voltar a negociar de novo bem mais adiante. A luz na rua chega poucas semanas depois da visita do técnico da companhia de energia. O posto de saúde pode ser construído em poucos anos de mandato. Já a melhoria estrutural no serviço de educação é algo complicado e lento, cujo resultado pode demorar décadas para se refletir em mudanças na vida das pessoas.
Para pessoas que vivem em situações de privação extrema, há mecanismos que operam para impedir cálculos de longo prazo. Pode parecer estranho, mas é mais provável que um mendigo na rua prefira receber R$ 50,00 agora de você do que R$ 500,00 no final do mês. E não é só porque a fome exige uma solução rápida, mas porque ele já se acostumou a operar no nível de satisfação das expectativas imediatas de cada dia. Essa mesma falha de racionalidade, que se encontra em inúmeras pessoas das camadas mais pobres da população, impede o estabelecimento e realização de um planejamento que leve a uma melhoria efetiva de vida. Nas classes mais abastadas, o nicho de coaching opera justamente com a promessa de mudar aquilo que no mundo dos negócios se chama mindset, ou a mentalidade em relação à própria vida que impõe limites para as ambições e, consequentemente, realizações de cada um. Essa visão de mundo vai dizer muito não só sobre a forma como as pessoas lidam com os bens materiais, mas também com o voto.
Compreender como funciona essa lógica no Brasil é pensar minimamente da mesma forma que os políticos, os verdadeiros artesãos desse processo. Em um país em que o IBGE reconhece 52 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza, com mais de 40% da população sem qualquer acesso a esgotamento sanitário, a quantidade de pessoas sujeitas aos mecanismos descritos aqui não pode ser ignorada. Não se trata de algo residual, mas da alma mesma do nosso sistema político.
Pode ser que um ou outro cientista político de carreira que leia este ensaio torça o nariz para afirmar que não tenho dados para provar aquilo de que falo. Falar em dados de uma economia que prima pelo segredo de suas operações é de fato sempre muito complicado. Porém, as revelações dos últimos dois anos, principalmente as surgidas durante o processo da investigação da Lava Jato, deveriam colocar um freio nas pretensões de pessoas que insistem em operar análises políticas unicamente pelo estudo formal das instituições, discursos dos atores envolvidos, estatísticas governamentais e pesquisas de opinião.
Junto com “corrupção”, talvez a palavra mais falada nos depoimentos da investigação conduzidas por Sergio Moro & cia tenha sido “Caixa 2”. Centenas de políticos foram apresentados ao grande público como operando largamente com essa prática, isto é, recebimento de recursos não contabilizados de campanha para fins eleitorais. Houve inúmeros dentre eles que defenderam publicamente a necessidade de diferenciar esse tipo de recurso do dinheiro recebido ilegalmente para enriquecimento pessoal. Não raro, os defensores do sistema político quiseram apresentar o problema como uma simples questão fiscal, o que não é bem verdade.
Infelizmente, com raras exceções, as investigações centraram fogo nas relações ilícitas entre empresários e políticos, revelando para o grande público a quase universalidade de mecanismos de financiamento de campanha que envolvem superfaturamento de obras públicas, fraudes em licitações e inúmeras outras ilegalidades. O problema é que quase não se falou da outra ponta do processo, isto é, para que serve o Caixa 2 citado pelos políticos. Aqui, desconfio que tenha sido não só uma questão de fôlego dos responsáveis, mas de prudência em adentrar numa seara que poderia levar para um emaranhado sem fim de redes e relações ilícitas, dos peixes grandes aos mais pequeninos, comprometendo não só a viabilidade das investigações, como talvez qualquer resquício de legitimidade do sistema político nacional.
Investigar a finalidade do Caixa 2 seria não só adentrar os meandros das relações entre a política e mercados ilegais como tráfico de drogas, jogo do bicho e lavagem de dinheiro, mas de mapear as veias e artérias do voto no Brasil. Não se trataria só de colocar na cadeia políticos, empreiteiros, marqueteiros e operadores, mas também os intermediários entre estes e o eleitor comum. Entre outras razões, uma campanha precisa de Caixa 2 porque é preciso pagar por serviços que não podem entrar em nenhuma prestação de contas oficial. Publicitários, peças de marketing, serviços gráficos, comícios, carros de som, outdoors, camisetas, panfletos, cavaletes, santinhos e os diversos tipos de produtos e serviços que circulam durante o período eleitoral podem ser adquiridos de maneira legal, ainda que não seja sempre desejável. A compra de votos direta ou das pessoas que são capazes de atraí-los pelos meios descritos aqui, no entanto, necessita sempre de dinheiro livre para ser operada com sucesso.
3. As chances do novo, ou Apressado come cru
Nessa altura, já deve ser possível entender que nutro certo descrédito com a possibilidade de uma figura muito diferente do usual faturar a presidência em 2018. De fato, não acredito que muitas coisas tenham mudado com as crises política e econômica que se abateram sobre o país. Há inúmeros indícios que o sistema político começa a se reorganizar, sem muita disposição para se estabelecer em outras bases. A aprovação de um fundo eleitoral de quase R$ 2 bilhões é só mais um sinal de que as coisas podem ter mudado para que possam continuar as mesmas. É possível supor que os mecanismos de financiamento ilegal de campanha estarão um pouco mais restritos, ao menos no nível da negociação com empreiteiras que estão na mira da Justiça. Ainda assim, doações ilegais de campanha não são a única forma de arcar com os custos envolvidos nas operações de compra e venda de votos no Brasil, no atacado ou no varejo.
Os bilhões de reais liberados pelo Governo Federal em programas e emendas parlamentares em 2017 são um bom exemplo disso. Esse dinheiro não serve só para garantir a lealdade dos congressistas com o grupo político do poder. É um tipo de negócio que abastece prioritariamente os caixas para os anos de eleição. Uma emenda parlamentar pode ser convertida inteiramente em dinheiro para um candidato, na forma de suborno a fiscais que assinem obras nunca realizadas ou por meio de fundações e instituições fantasmas que recebam o dinheiro. O mais normal, porém, é que parte dessa verba (10% ou 20%) seja devolvida por fora pelos prefeitos aos quais os recursos foram destinados, que compõem parcela importante da base eleitoral dos deputados. A imensa quantidade de obras abandonadas ou de péssima qualidade indica justamente o montante de recursos que termina nunca sendo empregado inteiramente naquilo a que deveria ser destinado.
Acreditar na possibilidade da eleição de alguém que não opere nessas bases implicaria responder ao enigma sobre como lidar com esse sistema. Até hoje, arrisco a dizer, nenhum candidato majoritário escapou disso. Pode ter gente que pense que a lógica não é a mesma para todos os níveis do pleito, como se houvesse uma diferença substantiva em eleições de vereador, prefeito, deputado, senador, governador e presidente. A minha experiência com esse tipo de trabalho e convivência com as pessoas diretamente envolvidas me faz pensar que se trata de diferenças de escala, sobretudo. Prioritariamente, um vereador negocia com lideranças comunitárias ou diretamente com o eleitor. Um prefeito negocia com lideranças e com candidatos a vereador. Um deputado negocia com prefeitos, candidatos a vereador e lideranças comunitárias. E por aí vai. Até chegar aos candidatos à presidência, as negociações podem atingir um nível de complexidade impossível de descrever com precisão. Porém, a forma como se negocia aquilo que importa, isto é, o voto, não muda substantivamente.
Nesse aspecto, as dificuldades de candidatos como Jair Bolsonaro e João Amoedo não seriam muito diferentes, em que pese a enorme diferença de popularidade de ambos. Em um debate recente pelas redes sociais, Filipe G. Martins, colunista do Senso Incomum e certamente o especialista mais sério da atualidade a defender a viabilidade de uma vitória de Bolsonaro nas eleições, colocou para mim que alguns pontos deveriam ser levados em consideração a partir da minha avaliação do sistema político. O primeiro é que não posso responder com certeza qual é, de fato, o coeficiente de eleitores que operam nessa lógica, o que não me permitiria fazer uma estimativa factível sobre sua importância.
De fato, não dá para saber se todas as pessoas pobres do país negociam seus votos nesse nível, de maneira direta ou indireta. O que dá para saber é que não há político de eleição majoritária que não leve esse cálculo a sério, muitas vezes com um nível de estimativa que beira à exatidão. É claro que as pessoas constroem suas preferências sobre inúmeras outras bases. O que um candidato diz, a forma que diz, o que ele parece representar, a influência de familiares e amigos próximos, a ação da mídia e das redes sociais desempenham funções importantes na conformação da escolha de inúmeros eleitores. Nas classes médias e altas, sobretudo, que não dependem diretamente de serviços que deveriam ser públicos, mas terminam funcionando como moeda de troca, é difícil falar da mesma lógica no processo de conquista do eleitor.
O que é mais difícil, porém, é acreditar que eleitores mais pobres desafiariam a própria racionalidade para operar em uma outra lógica em 2018. Inúmeras dessas pessoas podem até declarar, num primeiro momento, a preferência por A ou B, mas a verdade é que quando a liderança comunitária, o vereador, o prefeito da cidade ou o deputado da região acionarem os mecanismos para “pedir” votos pelos seus aliados, acho bem difícil acreditar que as pessoas responderão diferentemente do esperado. Afinal, o que mudou, de verdade? Elas continuam sabendo que não jogar o jogo daqueles que detém o poder é arriscar demais por muito pouco. A maioria já deve ter lidado com inúmeras promessas não cumpridas e não deve estar disposta a jogar de outra maneira o mesmo jogo de sempre.
É por isso que não costumo dar muita credibilidade para pesquisas de opinião, antes que a máquina eleitoral esteja em pleno funcionamento. Os 30% de intenção de voto em um candidato podem refletir a opinião imediata de um eleitor perfeitamente capaz de mudá-la, a depender de quem peça e por quanto lhe peça. Até mesmo mais do que pelo desempenho nos debates, pelo posicionamento da grande mídia e pelas limitações no tempo no horário eleitoral gratuito, acredito que um candidato como Bolsonaro tem mais chances de perder estofo quando as peças e engrenagens do sistema político começarem a operar de maneira efetiva.
Pode-se alegar que a crise política implicou em uma desmoralização sem precedentes das lideranças estabelecidas. Na verdade, existem evidências que escândalos públicos são sucedidos por altos índices de renovação parlamentar. Foi assim no Mensalão e deve ser também depois do Petrolão[iii]. Entretanto, mudança de rostos não significam mudanças nas práticas. Em quase uma década de experiência trabalhando com pessoas em situação de privação, nunca vi algo mais generalizado do que a crença de que políticos jogam sujo um jogo que sempre foi sujo. O que os acadêmicos chamam de legitimidade definitivamente não é aquilo que grande parte da população pensa a esse respeito. O “rouba, mas faz” não é um fenômeno localizado: é a lógica do sistema político para uma população extremamente pragmática. Caso contrário, por que essa mudança de perspectiva não se refletiria no surgimento de outsiders em todas as esferas do sistema político?
Até mesmo a ascensão do petismo ao poder dependeu fortemente da capacidade de lidar com essa situação histórica. É verdade que o processo de tomada efetiva do poder pelo PT passou por um longo processo de construção de uma hegemonia de esquerda no âmbito da cultura. A ocupação de espaços em universidades, sindicatos, órgãos de impressa, veículos de comunicação, repartições públicas, igrejas, escolas e tribunais certamente contribuiu não só para a aceitação de candidatos outrora desconhecidos, como para o deslocamento do eixo das próprias ideias que circulam na esfera pública, limitando o campo do discurso e da ação de maneira formidável.
Com o tempo, o simples enunciado de ideias ou a adesão política a opiniões consideradas de direita passou a ser execrado ou francamente silenciado na esfera pública brasileira, com um rebatimento direto no campo político. As declarações do presidente Lula em 2010, comemorando a ausência de candidatos de direita nas eleições daquele ano, foram o reconhecimento público desse trabalho de décadas, iniciado já no regime militar, quando a esquerda se viu expropriada dos meios de atuação política direta e relegada a ocupar sem muitos constrangimentos os espaços de produção de cultura.
Nesse aspecto, tenho pouco a acrescentar às reflexões pioneiras do filósofo Olavo de Carvalho sobre o tema[iv], que ganharam no mais recente livro de Flávio Gordon, A Corrupção da Inteligência (Editora Record, 2017), o apoio de um forte aparato documental. Porém, acho que esse processo também tem um rebatimento direto na distribuição de recursos materiais cuja importância procurei ressaltar aqui.
A história do PT é também a história da constituição de uma máquina bastante eficiente em operar no sistema político brasileiro. Em 2002, o partido ocupava cerca de 200 prefeituras e detinha 59 cadeiras na Câmara dos Deputados. Além da quantidade não desprezível de vereadores e deputados estaduais eleitos em todo o país, o partido liderava o ranking de prefeituras com mais de 100.000 habitantes. Isso perfazia um total de aproximadamente 30 milhões de pessoas administradas diretamente por membros do partido. Além disso, não havia capital ou cidade importante do país que o PT pudesse ser considerado uma força desprezível, sem uma vasta rede de clientela entre as camadas mais pobres da população.
O assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, apontava para a importância dessas estruturas para o estabelecimento do PT como uma força política de peso já em 2002. Disposto a apresentar denúncias contra a desvirtuação de um esquema de propinas nos setores de transportes e de coleta de lixo na cidade, Daniel foi morto porque não concordava que o dinheiro desviado fosse utilizado para o enriquecimento ilícito de alguns, em vez do abastecimento dos cofres do partido[v].
O próprio Lula reconheceu, certa vez, que o PT se constituíra a partir de três pilares fundamentais: universidades, sindicatos e comunidades eclesiais de base. Essas duas últimas constituem instituições de grande importância para a troca de votos no atacado e no varejo por uma série de proteções e benefícios sociais. Desde o seu nascimento, o fenômeno do sindicalismo passa exatamente pela constituição de organismos intermediários que pudessem auxiliar os trabalhadores em inúmeros aspectos. E as críticas de setores mais conservadores da Igreja Católica contra a atuação de figuras como Dom Hélder Câmara não raro expressavam a condenação do uso de obras de caridade para transferência de clientes para partidos e políticos de esquerda.
Claro que uma figura com a popularidade de Bolsonaro pode decidir jogar o jogo nos seus termos atuais. Considerando que se trata de um deputado com 20 anos de mandato, é bem provável que o faça. Esse é o segundo ponto levantado pelo Filipe G. Martins na nossa discussão que me parece de maior relevância.
Esse aspecto acho infinitamente mais importante para mensurar a viabilidade real de sua candidatura do que as opiniões propriamente ditas do candidato. Afinal, não é verdade que o Brasil não tenha tido candidatos que expressaram posições conservadoras em outros pleitos. De Enéas Carneiro a Paulo Maluf no passado, a figuras como Pastor Everaldo ou Levy Fidelix nas últimas eleições presidenciais, sempre houve quem levantasse bandeiras como as que o deputado ora defende, ainda que boicotado em inúmeras frentes e com pouquíssimos recursos à disposição[vi].
Isso também significa que uma eventual vitória não se trataria propriamente da entrada de um outsider no jogo político. Em termos de rompimento com os limites do debate público impostos pelas principais forças do país (PT e PSDB), é bem possível. O que é difícil de acreditar é numa resposta real aos anseios de parcela significativa da população em torno do problema da corrupção endêmica do nosso sistema político. Cavar fundo sobre as bases nas quais se está alicerçado nunca foi forte de político algum. Consequentemente, também olho com descrença para promessas de diminuição real do tamanho do Estado brasileiro ou de suas prerrogativas sobre a vida de milhões de brasileiros. A máquina pública nacional é grande e sufocante porque sustenta os donos do poder desde muito antes de haver esquerda e direita no Brasil[vii].
Aqui, porém, vale uma ressalva. É bem provável que mudem as opiniões de muitos eleitores quando o sistema político comece a operar a todo vapor, mas é quase certo que políticos mudem de time antes do pleito, a depender dos valores em jogo. Os bilhões aprovados para o novo fundo eleitoral indicam que não deve faltar dinheiro para isso. O Estado brasileiro é uma fonte ainda abundante para a satisfação de uma ampla gama de aliados.
Apesar da Lava Jato ter retirado parte dos incentivos para que empresas não estabeleçam negócios ilícitos com políticos, o arrefecimento das investigações e o papel desempenhado pelo Governo Federal e pelo Supremo Tribunal Federal em liberar os envolvidos em esquemas de corrupção e impor restrições ao trabalho policial já tem contribuído para um sentimento alastrado de impunidade.
Iniciativas como o RenovaBR, fundo para financiamento de jovens candidatos contando com apoio de milionários como Luciano Huck e Abílio Diniz, indicam que a proibição de doação empresarial de campanha deve ser facilmente compensada por outros mecanismos.
A tranquilidade aparente de caciques como Geraldo Alckmin e a facilidade que teve para eliminar o “fenômeno Dória” também são indícios de que há um plano para lidar com a nova situação. Fatos de última hora como a possibilidade de rompimento de Bolsonaro com o recém-criado Patriotas levantam suspeitas sobre a atuação de operadores políticos nesse sentido.
Na verdade, é possível que o sistema político brasileiro, como o italiano, igualmente abalado pelas investigações da Operações Mãos Limpas nos anos 1990, mas rapidamente se reorganizando naquilo que muitos analistas denominaram “Corrupção 2.0”, corresponda àquilo que Nassim Nicholas Taleb denomina como Antifrágil, isto é, um sistema complexo, capaz de se fortalecer a partir de intervenções limitadas sobre seus pontos fracos. Afinal, até mesmo a intervenção autoritária nos anos 1964 parece ter abalado pouco essa lógica, cujas raízes remontam ao sistema de voto de cabresto já em vigor durante o Segundo Reinado[viii].
Contudo, é importante reconhecer que o advento das redes sociais e o processo de abertura política que se verifica desde 2013, com a participação ativa de uma nova direita que não tem vergonha de se apresentar enquanto tal na esfera pública, deve ter um peso de difícil mensuração para qualquer analista ou operador da política no Brasil. Ainda assim, é bom lembrar que as restrições ao uso das redes sociais durante a campanha são draconianas. E o TSE sempre pode presentear os brasileiros com mais uma surpresinha.
O que não se pode esperar é que as velhas engrenagens do sistema político não façam sentir seu peso quando começarem a se movimentar em ritmo de ano eleitoral. Neste deserto tropical, onde os fracos não têm vez, é aconselhável manter o ceticismo com qualquer sinal de esperança de mudança num horizonte próximo – pode não passar de uma miragem.
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NOTAS
NOTAS
[i] Em recente livro publicado sobre a trajetória do traficante, intitulado O Dono do Morro (Companhia das Letras, 2017), o jornalista e historiador britânico Misha Glenny arranha levemente o tema da atuação política de Nem na Rocinha. Tenho inúmeras discordâncias com o autor em torno da interpretação de vários fatos, que devem ser fruto de publicações minhas nos próximos meses, mas ainda se trata de um bom ponto de partida para uma discussão a respeito das relações entre tráfico e política na comunidade.
[ii] O livro de Reis sofre de evidentes limitações metodológicas e de um problema formal que é quase fatal. Com as mesmas entrevistas e algum método, é possível pensar em uma obra de caráter científico, bem mais elaborada e organizada. A escolha do autor de apresentar as entrevistas na forma do relato em primeira pessoa de um deputado fictício (Cândido Peçanha) deve ter contribuído bastante para seu descrédito como fonte autorizada entre analistas e estudiosos da política. É uma pena que as revelações da Operação Lava Jato, pouco menos de um ano após a publicação da obra, não tenham despertado os brasileiros para um fato óbvio: Reis já falava boa parte das coisas que Sérgio Moro & Cia comprovaram com provas irrefutáveis. Talvez o fato se deva à proverbial falta de memória do brasileiro, mas arrisco uma hipótese mais ousada – o livro é um soco no estômago das esperanças políticas para com a Nova República.
[iii] O cientista político Marcus André Melo é possivelmente o defensor mais gabaritado dessa tese. Com artigos recentemente publicados na grande imprensa, procura discutir o alcance e o potencial de renovação da crise e faz suas apostas. Vale a pena ser lido e debatido por qualquer um interessado nas eleições deste ano.
[iv] Nesse sentido, a obra do filósofo, principalmente na sua trilogia sobre o tema (A Nova Era e a Revolução Cultural, O Jardim das Aflições e O Imbecil Coletivo) permanece como referência indispensável para o entendimento da questão.
[v] Para mais sobre o tema, consultar o livro de Silvio Navarro, Celso Daniel: Política, Corrupção de Morte no Coração do PT (Editora Record, 2016).
[vi] Em que pese a importância da introdução de uma agenda ideologicamente conservadora na política brasileira, há que se ter em mente que isso pode ser feito de um jeito bom ou de um jeito ruim. Há propostas excelentes e propostas péssimas nesse sentido. A vitória de uma agenda conservadora atrapalhada pode ser um verdadeiro desastre para o país, com consequências de longo prazo difíceis de prever. Além disso, a falta de um partido historicamente constituído e de quadros formados, além da ausência de qualquer alteração no cenário de ocupação das mais diversas instituições pela esquerda nas últimas décadas, são evidências que um eventual governo de viés ideologicamente conservador teria dificuldades sérias de apresentar resultados consistentes. Nesse sentido, vejo a candidatura de Bolsonaro mais como uma excelente oportunidade de consolidar um partido e uma agenda de médio a longo prazo do que a eleição de um governo de salvação nacional. A política responde ao voluntarismo e ao carisma, mas só se consolida no tempo pela operação de instituições sólidas, que devem servir para racionalizar propostas e ideias, tornando-as operacionalizáveis.
[vii] A retomada das reflexões de Raymundo Faoro em Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro (Globo Livros, 2012), por parte da assim chamada nova direita, é sinal de que muita gente já entendeu que há um problema bem mais antigo no Brasil do que a polarização ideológica. A separação histórica entre o estamento burocrático que ocupa o Estado e a população que o sustenta é um dilema que absolutamente nenhum regime político conseguiu resolver. Ironicamente, Faoro, um liberal, foi um dos fundadores do PT, defendendo publicamente a bandeira de que o partido deveria substituir essa classe e acabar com a cisão. O que se viu na prática, porém, foi a tentativa de integrá-la numa concepção ideológica da sociedade concebida à luz do marxismo de Antônio Gramsci. Aqui, mais uma vez, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho precisa ser citado, já que, desde 2015, tem apontado que o problema do Brasil é bem mais amplo do que a própria retirada da esquerda no poder, exigindo uma verdadeira revolução nos moldes da que fundou os Estados Unidos da América.
[viii] O melhor livro em língua portuguesa sobre a operação e suas consequências para a Itália no século XXI é o calhamaço publicado pelo Grupo Citadel, Operação Mãos Limpas, de Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio. Sobre o tema do clientelismo, na minha modéstia opinião, a obra de Richard Graham, Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX (Editora da UFRJ, 1997), ainda permanece um clássico indiscutível.
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