Pequeno relato que versa sobre a demonização e a imprevidência da esquerda e a arrogância e "esperteza" do velho oportunismo da direita.
Por Mauro Santayana, Carta Maior -
Às vezes, só sobram, aos mais velhos, quando mergulhados nas franjas do sono e da noite, a distração dos sonhos.
Esta noite, sonhei com uma alegoria que ouvi em um balcão de pedra de um bar de um embarcadeiro no porto de Castro Urdiales, na Cantabria, na Espanha da década de 1980.
É um pequeno relato - cruel - que versa sobre a demonização e a imprevidência da esquerda e a arrogância e "esperteza" do velho oportunismo da direita - que se repete várias vezes, na História - em seu caminho, a qualquer custo, para o poder.
Foi assim que o ouvi de um velho pescador, ex-combatente anarquista da Guerra Civil Espanhola, chamado Manolo Ouriges.
E é assim que o repasso a vocês agora, com algumas pequenas - e perdoáveis - adaptações:
Dizem que, dias depois de dar a Noé as famosas - e precisas - instruções de construção da Arca, Deus estava distraído, de pé em um rochedo no topo da montanha mais alta, observando o trabalho do velho seguidor - agora convertido em marceneiro - e de seus filhos, em um constante serra, corta, bate, cola, quando sentiu uma presença estranha.
- Pode aparecer. Já sei que você está aí, atrás da rocha - disse, advertindo-se da aproximação do demo por um leve, característico, aroma de enxofre.
Em resposta, o outro abaixou, para que pudessem conversar, o capuz vermelho que lhe cobria o rosto e a barba.
E colocou-se ao seu lado para observar também o vai-e-vêm das figuras que se movimentavam, lá embaixo, pequenas como formigas.
- Então você - disse, depois de algum tempo, o demônio - vai mesmo fazer essa loucura....
- Vou - disse Deus, impávido, o queixo duro apontado para a frente - vou destruir tudo o que existe. Ou quase tudo.
- Mas você vai acabar com todas as coisas - disse o Anjo Decaído - Isso tem algum sentido?
E começou a contar, batendo com o pé no chão:
Com as grandes empresas...
- Sei, mas isso não vem ao caso...
respondeu o outro, olhando-o de cima, impávido e e indiferente.
- Com milhares de empregos....
- Já sei, mas isso não vem ao caso...
- Com o valor das grandes companhias e de suas ações....
- Sei, mas isso também não vem também ao caso...
- Com o patrimônio e o futuro dos acionistas e investidores...
- Sei, mas isso também não vem ao caso...tornou o Senhor.
- Com os negócios de centenas de pequenos e médios fornecedores...
- Sei, mas isso também não vem ao caso...
- Com os grandes projetos de infraestrutura, de energia e de defesa que estão em andamento....
- Sei, mas isso também não vem ao caso...
- Com a reputação dos políticos e de todos os partidos...
- Sei, mas isso também não vem ao caso...
- Com até mesmo os seus seguidores...
- Sei, mas isso também não vem ao caso...
- E com a vida de milhões de pessoas.
- E isso também não...vêm ao caso - pontuou o Divino, finalmente, conclusivo e enfático.
- É... - exclamou o demônio, pensativo - isso vai ser uma coisa dos diabos!
- Mas e não é justamente essa a ideia? Quero que seja você que leve a culpa por tudo, ou melhor, por quase tudo.
- Mas se fui eu que multipliquei o PIB, a renda per capita e o salário mínimo nestes últimos 13 anos, diminuí a dívida bruta e a líquida, paguei a dívida com o FMI, economizei 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, fiz quase 3 milhões de casas populares, plataformas, navios, refinarias e hidrelétricas, submarinos, cargueiros militares, mísseis, caças e fuzis de assalto, descobri petróleo no fundo do mar, tripliquei a fabricação de automóveis e dobrei a safra agrícola... até a Copa do Mundo e as Olimpíadas - suspirou, tristemente, Lulcífer - eu trouxe para cá...
- Mas não soube "vender" nem explicar nada disso. - cortou o Senhor, bruscamente -consequentemente, não me venha com vitimização, nem mimimi e nem lamúrias. Você sabe que agora ninguém mais se lembra do que você fez nem sabe do que você está falando.
- Mas para que fazer isso? - repetiu o pobre diabo, exibindo todo seu espanto e inconformidade, apontando para as montanhas e cidades, no horizonte, como se já as visse cobertas por um oceano - assim, tudo irá por água abaixo, tudo o que existe...
- Tudo, não.
Vão sobrar essa arca, os bichos, a família de Noé, e água, muita água, que depois refluirá para os pólos, transformando-se em gelo.
E o Marketing, bastante marketing também, é claro.
- O Marketing? Não entendi - perguntou-se o outro, intrigado - se depois não vai ficar, praticamente, pedra sobre pedra...
- O Marketing, meu caro. Não seja burro. Você já ouviu falar de Luiz XV?
- Você está se referindo a um rei francês que vai nascer daqui a muitos séculos?
- Exatamente. Dizem que, entre outras coisas, ele vai ficar conhecido por uma expressão famosa.
- Que expressão é essa? - perguntou o diabo.
- "Aprés moi, le Delúge" - Depois de mim, o Dilúvio - continuou o Senhor, em tom professoral - querendo afirmar, esse grande soberano, que, após sua morte, pode chover até canivete que isso não vai lhe interessar ou preocupá-lo nem por um instante.
Pois, no meu caso, a base do plano é exatamente a inversa.
- Como assim - indagou o diabo - tentando entender o sentido do que queria dizer o altíssimo.
- Como não pretendo morrer, muito pelo contrário, Avant moi, le Déluge - Antes de mim, o Dilúvio... - disse Deus, com um gesto imperial, recolhendo a aba da capa preta, os cabelos fustigados pelo vento - culparei você pela corrupção e a corrupção pelo desemprego e pela crise, independentemente de problemas nas maiores economias do mundo ou da queda do valor do petróleo, ou das multas bilionárias que irão cair como um meteoro sobre as maiores empresas, e transformarei todos os que existem agora, sem exceção, em pecadores sujos, perversos, devassos e ladrões, para que todos entendam que não existe salvação na Política.
Que não existe salvação para além de mim, o Todo-Poderoso!
E me transformarei no cavaleiro vingador que distribuirá trovões a "tortos" e a "direitos", e que afogará e aprisionará a tudo e a todos - menos aqueles que cumprirem o meu plano - em um avassalador e purificador tsunami de justiça!
- Mas existem outros - tornou o diabo, cofiando, novamente, a barba - que estão usando o mesmo discurso que você, não se iluda...
- Não se preocupe - disse o onipotente - impávido e resplendoroso. Esses também serão arrasados, quando chegar a hora.
E, levantando os braços para o horizonte, proclamou:
Só poderá haver um "Mito"!
Eu mesmo!
E sua voz rebombou e rebombou, reverberando pelos vales e montanhas.
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