Por Raul Longo
Depois de assassinada em 1º de Abril de 1964, a democracia não ascendeu ao Planalto Central em 1985 por soberana decisão do povo. O povo brasileiro bem lutou por isso, mas foi traído inclusive pelo então chamado “Senhor Diretas”, o Ulisses Guimarães, quando ao invés dos compromissos que assumiram com o povo nos comícios do Movimento das Diretas Já, os políticos do MDB aceitaram as imposições dos algozes da democracia para concorrer com a ARENA por votos indiretos dos parlamentares do período ditatorial.
Até se pode argumentar que se não fosse aceita a imposição, a democracia não renasceria 8 anos depois. Argumentar pode, embora não convença. Com toda a mobilização do “Diretas Já” e o total desgaste, inclusive internacional, da ditadura, perdeu-se ali grande oportunidade de promover a consciência dos brasileiros sobre a própria soberania, como ocorre entre todos os povos livres que muitas vezes podem errar elegendo maus políticos, mas sabem exigir respeito às suas escolhas.
Mas lá, instituições, partidos políticos, magistrados, policiais, funcionários de qualquer órgão público, seja o que for referente ao Estado; são do povo. No Brasil e em todos os países da América Latina o que é público não existe em razão do público que o mantém, mas das elites que através desses órgãos se protegem e protegem a impunidade de seus crimes.
E isso todo mundo sempre soube e sempre quis que se investigasse e se condenasse os que corrompem o que é público. O problema é que a justiça pública julga o público roubado, não as elites que o roubam.
Aqui, quando surge quem queira investigar os roubos, as concessões públicas concedidas à mídia se empenham para convencer o público de que quem investiga o roubo é o ladrão. E o ladrão é o herói! Ou alguém acredita que a mídia que diz que sabe de tudo, até do que jamais aconteceu; já não soubesse das falcatruas do Eduardo Cunha antes do MP da Suíça?
Até quem não é da mídia sabia de Cunha, como é que a mídia não ia saber desde quando o vendia como um de seus heróis?
E assim, sejam armados ou por artifícios político/jurídicos, os golpes promovidos pela mídia matam a democracia à bala ou por colapso como em roteiro de novela, naquela fórmula que o Roberto Marinho detalhou à BBC a respeito de sua própria cria, o Collor de Melo: “Nós o pusemos, nós o tiramos!”. Fácil, fácil!
Desse jeito a democracia brasileira morreu e foi enterrada conforme bem interpretou o Latuff nessa charge, mas se equivocou quanto às efemérides e é preciso conhecer com exatidão o memorial da falecida para o caso de algum dia ela aparecer na esquina de um futuro qualquer, não ficarmos na dúvida se é ou não uma certa senhora com a qual já esbarramos em outros momentos da história da nação. Afinal não se trata de uma democracia qualquer, mas de uma que morreu e renasceu para morrer novamente como uma fênix a se desfazer em cinzas pelo desapreço à soberania do povo. Observemos seu voo:
O difícil parto da democracia brasileira se deu muitas décadas depois de um golpe das elites latifundiárias contra a Monarquia que emprenhou o Brasil de República maquiada de democracia. O golpe de1889 foi fruto da abolição da escravatura por D. Pedro II no ano anterior, 1888. Desgostosas por a terem alijado da força de trabalho gratuita, instituíram a República para reparar o que consideraram prejuízo instaurando o servilismo feudal.
O sistema de relações sociais retrocedeu em duas eras e para mascarar esse retorno à Idade Média se manteve as eleições periódicas já instituídas desde Império, quando éramos regido por uma Monarquia parlamentarista. No entanto a farsa democrática novamente nos subjugou ao poder feudal dos coronéis, tal qual estivéramos subjugados pelos capitães donatários logo após o descobrimento do país. E nessa condição a chamada democracia limitava-se à escolha de votar em quem o coronel mandava ou a perder a vida. Em caso em mais ameno, expulsão da terra, o que equivalia ao mesmo, pois numa economia agrária a terra era o único meio de sobrevivência.
Essa realidade só foi transformada em 1930 quando através de uma revolução Getúlio Vargas tomou o poder. Dois anos depois as elites feudalistas reagiram com outro ato revolucionário, mas Getúlio resistiu e em 1937 instituiu uma ditadura: o Estado Novo.
Paradoxalmente foi nessa ditadura que se começou a democratizar os direitos públicos e as elites passaram a ser obrigadas a respeitar determinações de leis trabalhistas e a pagar impostos para manutenção de sistemas de educação e saúde pública. Não obstante, o regime político foi ditatorial.
Somente em1945 conseguiram depor o ditador, substituindo-o pelo candidato que ele mesmo indicou. Quem indicou foi o ditador, mas o primeiro presidente realmente eleito por voto livre e democrático no Brasil foi o general Gaspar Dutra.
Nascia então a democracia brasileira, com a concorrência pelo voto popular por 4 partidos:
PSD – Partido Social Democrático – de centro e influências getulistas.
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – de base eleitoral no operariado urbano, fundamentando-se no projeto de realização de Assembleia Constituinte com manutenção de Getúlio Vargas na Presidência da República.
UDN – União Democrática Nacional – de orientação conservadora, em defesa dos interesses das elites econômicas, frontalmente opositora à política e à pessoa de Vargas.
PCB – Partido Comunista Brasileiro – fundado em 1922, proscrito no Estado Novo e então legalizado.
Os candidatos da UDN e do PCB foram derrotados pelo da coligação PSD e PTB. Não obstante, depois de assumir o general Eurico Gaspar Dutra trai a Getúlio Vargas, a coligação partidária e seus eleitores, aliando-se a UDN.
Em 1946 é promulgada nova Constituição onde se prevê o controle estatal da produção de petróleo. No ano seguinte, 1947, a UDN obtêm de Dutra a aprovação ao Estatuto do Petróleo, projeto de lei que altera a determinação constitucional permitindo a exploração do petróleo nacional pelo capital estrangeiro.
Militares nacionalistas e legalistas se contrapõem lançando a Campanha do Petróleo da qual surge o primeiro grande movimento popular nacional: O Petróleo é Nosso!
Na eleição de 1950 a UDN coliga-se com 3 novos partidos criados durante o governo Dutra, apresentando candidatos à presidência e vice-presidência, cargo criado pela Constituição de 1946 para escolha democrática, independente da eleição à presidente.
O PCB fora novamente cassado pelo governo Dutra em 1947 e um novo partido, o PSB – Partido Socialista Brasileiro, apresenta seus candidatos.
A coligação PSD/PTB, com demais novos partidos, é novamente vitoriosa na eleição dos dois cargos: presidente e vice-presidente. Getúlio Vargas retorna, dessa vez eleito democraticamente.
Getúlio cria a Petrobras e a reação da UDN é feroz. Sem tréguas os porta-vozes dos interesses do capital estrangeiro: jornal O Estado de São Paulo, jornal e rádio Globo e o jornalista Carlos Lacerda se esforçam para denegrir sua imagem perante o Brasil, acusando-o de corrupto.
O então grande empresário de comunicação era Assis Chateaubriand, dono de uma rede de emissoras de rádio e jornais diários em cada capital de estado, da revista de maior circulação nacional, O Cruzeiro, e da primeira emissora brasileira de TV, a TV Tupi fundada em 1950. Chateaubriand se declara disposto a defender Getúlio com a condição de que desistisse da Petrobras, evidenciando que nem mesmo o rei da mídia do Brasil teria condições de enfrentar as forças movidas pelos interesses do capital estrangeiro que financiavam os políticos da oposição.
Contando com o apoio de militares entreguistas o golpe foi precipitado por tresloucado atentado contra Lacerda que supostamente haveria ferido o pé do jornalista, mas efetivamente matou a um oficial das Forças Armadas. Ao ser informado do atentado, Getúlio lamentou: “Acertaram um tiro no pé do Lacerda e me deram um tiro nas costas”. De fato, o atentado provocou um documento militar, “A Carta dos Generais”, exigindo a renúncia de Getúlio.
Ciente de que seu afastamento da presidência resultaria na internacionalização da Petrobras, Getúlio encontra num ato trágico uma última tentativa de proteger o maior patrimônio da história do país, E suicida-se em 1954.
A reação popular é violenta. No Rio de Janeiro o povo empastela a rádio e o jornal O Globo, obrigando Lacerda a fugir do país. Assume o vice-presidente democraticamente eleito pelo PSB: Café Filho.
Café Filho fora eleito por apoiar a candidatura de Getúlio à presidência, mas como Dutra rompe com a linha nacionalista do getulismo e apresenta candidatos próprios para eleição de 1955, sendo derrotado pela coligação PSD/PTB que apresentara Juscelino Kubistchek e João Goulart. Completando a traição, apoia nova manobra golpista afastando-se da presidência para que assuma o presidente da Câmera Federal, Carlos Luz.
Do PSD, mas nitidamente abduzido pela UDN, Luz é deposto 3 dias depois por militares legalistas que percebem a manobra e impedem que se rasgue a Constituição desonrando a soberania democrática. Assume Nereu Ramos, também do PSD e da presidência da Câmara, que finaliza o mandato e o transfere a JK, eleito pela maioria dos brasileiros.
Dentre as Forças Armadas, a Aeronáutica era a mais ligada à UDN e logo após a pose de JK um major e um capitão decolam do Campo dos Afonsos no Rio de Janeiro para pousar em Jacareacanga no sul do Pará. Dominam algumas cidades da região e mais uma vez ameaçam a democracia.
Novamente os militares legalistas desmantelam o levante golpista prendendo um dos líderes. Os demais fogem para a Bolívia, mas Juscelino magnanimamente anistia a todos os envolvidos.
Se como ditador Getúlio deu início à democratização social e implantou a indústria de base com a criação da siderurgia nacional e a nacionalização da exploração mineral, criando a Companhia Vale do Rio Doce com a estatização de tudo o que na Velha República os coronelistas haviam entregado ao empresário e especulador internacional estadunidense, Percival Farquhar; JK deu prosseguimento aos empreendimentos que possibilitaram a industrialização do Brasil, promoveu a indústria naval, construiu grandes hidroelétricas, implantou a indústria automobilística e transferiu a capital do Rio de Janeiro para o interior do país, expandindo as fronteiras administrativas e produtivas para o oeste.
Brasília se torna modelo internacional de modernidade e urbanismo e o país alcança um crescimento de mais de 7% ao ano, ainda que os altos investimentos do governo de JK tenha dado início à dívida externa, através de empréstimos ao FMI.
O desenvolvimento alcançado pelo país em breve cobriria a dívida contraída e não foi por essa razão que em 1960, pela primeira vez, o eleitor brasileiro escolheu por vias democráticas a um candidato apoiado pela UDN. Jânio Quadros atraiu diversos apoios partidários apesar de seu estilo essencialmente personalista e sem qualquer identificação com as linhas dos partidos que o apoiavam.
Exibicionista, dramático e demagógico, Jânio obteve uma ascensão meteórica conquistando o eleitorado paulista através de discursos pelo combate à corrupção. Seu símbolo era o de uma vassoura com a qual dizia que varreria a sujeira do país.
Um jornalista perguntara a Getúlio Vargas, o político que por mais tempo presidiu o país, qual teria sido a tarefa mais difícil que enfrentara no governo. A resposta foi imediata: “- O combate à corrupção.”
Tampouco Jânio combateu corrupção alguma e na verdade pouco governou. Sete meses depois de eleito renunciou justificando-se pressionado por “forças terríveis”.
Realmente Jânio Quadros conquistara no Congresso ferrenha oposição daqueles que o apoiaram, inclusive da própria UDN que embora aplaudisse medidas moralistas como proibição do uso do biquíni nas praias, do maiô nos concursos de miss e do lança-perfume em bailes de carnaval; não aceitava a política externa independente às determinações dos Estados Unidos. E de forma alguma pôde admitir a outorga da maior condecoração nacional, a Grão Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, a Ernesto Che Guevara.
Se cogitou que a verdadeira razão da renúncia fora um mal fadado intento golpista e, de fato, muitos anos depois um sobrinho de Jânio revela publicamente que o tio lhe confidenciara haver acreditado que o povo o reconduziria ao governo como ditador.
Jânio se iludira com a reação do povo ao suicídio de Getúlio e imaginou que simulando um suicídio político os brasileiros o ajudariam a eliminar seus opositores do Congresso, assim como expulsaram Lacerda do país em 1954. Mas o povo brasileiro não amou Getúlio por ser ditador e, sim, por ter sido o primeiro a dar início a democratização social.
O personalismo megalômano de Jânio Quadros o impediu de perceber o apreço do eleitor brasileiro pela democracia evidenciado pela eleição de seu vice. Ainda que iludido pelo discurso vazio de combate à corrupção, preventivamente o eleitor novamente confiou a vice-presidência a Jango Goulart do PTB.
Mais uma vez o golpismo inerente aos políticos da UDN se opôs à Constituição e, sempre escondidos atrás das fardas entreguistas, tentaram impedir a pose do vice-presidente eleito democraticamente.
Em 1955 Jango já fora eleito ao mesmo cargo com mais votos do que os obtidos por JK à presidência, confirmando o PTB como maior representação popular da política brasileira e, naquele ano de 1961, o povo atendeu à mobilização de Leonel Brizola através da Campanha da Legalidade, garantindo a pose de Jango, também com respaldo de militares legalistas.
No entanto os poderes de manipulação política do setores econômicos e dos interesses do capital estrangeiro pressionam e o Congresso condicionou a pose de Jango à mudança do sistema de governo do presidencialismo para o parlamentarismo e se empossou Jango como presidente e Tancredo Neves, do PSD e ex-ministro do governo Vargas, como Primeiro Ministro. No ano seguinte, 1962, Neves renuncia para concorrer ao governo do estado de Minas Gerais e sucedem-se dois outros no cargo de Primeiro Ministro até que em1963, através de plebiscito democrático, mais uma vez o povo brasileiro reverenda Jango Goulart com plenos poderes para representá-lo, rejeitando o parlamentarismo.
A opção pelo presidente que elegera duas vezes se fez ainda mais inequívoca pelas dificuldades econômicas decorrentes da forte oposição parlamentar ao Plano Trienal, elaborado por Celso Furtado e Santiago Dantas. Impedindo a aprovação do plano econômico através da política do “quanto pior, melhor” a UDN obriga o Brasil a mais uma vez recorrer ao FMI, provocando aumento da inflação. Através de seus aliados de setores de produção e distribuição desabastecem o mercado de produtos básicos, mas o povo resiste aceitando substitutivos como a carne de baleia e enfrentando longas filas para aquisição de alimentos essenciais: açúcar, pão, farinha, café, etc.
Novamente capitaneados por Carlos Lacerda que retornara ao Brasil e concedia entrevistas à imprensa estrangeira denegrindo a Petrobras, o governo e o exército brasileiro; os golpistas aumentam a tensão sobre a população e os militares solicitam ao presidente a implantação de estado de sítio. Jango expõe a proposta dos militares ao Congresso que a rejeita e a Jango apenas resta a apresentação de seu plano de reformas de base em comícios para multidões que se concentravam em amplos espaços públicos em otimista apoio ao futuro social do país:
Reforma Agrária – desapropriação de grandes áreas improdutivas ou utilizadas para produções inapropriadas.
Reforma Educacional – valorização do magistério, investimento no ensino público, combate ao analfabetismo através do método de Paulo Freire.
Reforma Fiscal – limitação de remessas ao exterior, sobretudo pelas multinacionais.
Reforma Urbana – implantação de projetos do IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil, para solucionar problemas de concentração populacional nas cidades e oferecimento de habitação condigna à população desabrigada.
Reforma Bancária – ampliação de crédito a médios e pequenos produtores.
A inequívoca manifestação democrática nas urnas que por duas vezes elegeram Jango à vice-presidência, a completa indiferença popular à renúncia de Jânio Quadros, as manifestações de rua em defesa da pose, a fragorosa vitória democrática do presidencialismo e o amplo apoio popular às reformas de base não foram suficientes para conter a insurgência golpista que reuniu em passeatas chamadas de Marcha de Deus com a Família as senhoras da alta classe média paulista. Empresários e banqueiros de São Paulo e Minas Gerais investem numa organização de manifestações católicas medievalistas, mas de cunho evidentemente fascista, a TFP – Tradição, Família e Propriedade.
Por fim, conforme revelado pela abertura de arquivos do Pentágono neste século, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, com malas de dólares compra os generais de pouca projeção dentro das instituições militares. Os arquivos do órgão de defesa daquele país também revelaram que Gordon obteve do então presidente dos Estados Unidos o envio da frota da marinha de guerra, a mais poderosa do mundo, para as costas brasileiras.
Assim, em 1º de abril de 1964, se assassinou a democracia brasileira com apenas 19 anos de idade. Apenas 19 anos desde quando pela primeira vez em nossa história o povo brasileiro elegeu livremente ao general Eurico Gaspar Dutra. Um erro, conforme se confirmou ao longo de seu mandato, mas um erro democrático.
Embora efêmera, essa história se torna extensa pelos tantos sobressaltos golpistas de que foi vítima. Tão extensa que para se contar de sua ressurreição, da sua segunda existência, igualmente ameaçada pelas mesmas forças que outrora se concentraram na UDN, posteriormente chamada de ARENA, em seguida PFL, e, além de PSDB e DEM, disseminadas por siglas que outrora requereram a redemocratização como o antigo MDB e atualmente golpista PMDB, além de outras tradicionais abreviaturas partidárias que se identificavam pela defesa da democracia, mas hoje compõem a ampla coligação contrária à manifestação eleitoral da soberania popular, como o PTB e o PSB do saudoso Miguel Arraes.
Infelizmente, à triste realidade do povo brasileiro a cada vez que lhe foi imposto um presidente ilegítimo e sem respaldo democrático, não se faz possível imprimir o tom humorístico de Jorge Amado, mas se poderia parodiar o título de uma de suas obras prometendo a segunda parte desta história da Morte e a Morte da Democracia Brasileira.
https://blogdotarso.com/2016/06/27/mortes-e-ressurreicoes-da-democracia-brasileira/
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