Escrever sobre liberdade e democracia interna na dinâmica de uma organização político-partidária é um tema difícil. As dificuldades, a meu ver, assentam-se, em especial, em dois elementos: a) a falta de qualificação das categorias usadas na discussão, como, por exemplo, o que é liberdade e democracia interna; b) a série de lugares-comuns e vulgatas que rondam o tema: como reduzir qualquer forma de disciplina interna a manifestação do “stalinismo” ou da burocratização da organização.
O objetivo desse texto é discutir sem qualquer pretensão de novidade temas como liberdade e democracia interna na organização político-partidária, contudo, teremos um foco de direcionamento na escrita: nosso debate terá como central a quebra da liberdade e da democracia interna através de práticas individualistas/personalistas e competitivas, considerando que essas práticas são bastante comuns, mas recebem menos atenção que o seu reverso-gêmeo: o autoritarismo e a ausência de debates democráticos.
Antes de entrarmos no debate propriamente dito sobre liberdade e democracia interna, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre os modos de sociabilidade e subjetivação no capitalismo, como eles condicionam os militantes e como esses processos se objetivam nas organizações de esquerda.
A tese fundamental do materialismo é que não é a consciência dos seres humanos que determina o seu Ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. “O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral” (Karl Marx). A sociabilidade capitalista é ontologicamente constituída pela concorrência e pelo individualismo; somos subjetivados – como diria os estudantes de psicologia – a nos percebermos como sujeitos autoconstituídas e que atuam livremente de acordo apenas como o imperativo de nossa consciência e interesses; e a desenvolver processos constantes e cada vez mais brutais de competitividade e disputa com o próximo.
Todos os momentos de nossa vida são constituídos pela competitividade e o individualismo: escola, faculdade, emprego, relações amorosas etc. – pensem, por exemplo, no vestibular. Esses processos de socialização moldam nossa subjetividade e criam uma dificuldade enorme de trabalharmos conjuntamente de forma a colocar o interesse coletivo acima do individual e a realizar práticas de cooperação solidária, isto é, processos de interação não pautados na competitividade e na concorrência – foi por compreender isso que Ernesto “Che” Guevara dedicou tanta atenção à transformação das formas de consciência e da cultura no processo de transição socialista em Cuba, no esforço homérico de criar o “homem novo”.
As organizações de esquerda que se reivindicam socialistas ou comunista têm, portanto, uma difícil missão: forjar um novo mundo com as pessoas subjetivadas nas formas de consciência capitalista. Evidentemente que antes do início da construção socialista com a conquista do poder, temos um longo percurso de organização e luta, e as organizações de esquerda revolucionária procuram gerar espaços de socialização que já tentam criar uma nova cultura e práticas de interação social, combatendo os valores e práticas burguesas.
A conclusão que podemos tirar do exposto acima é que as organizações revolucionárias da esquerda têm uma missão permanente dentro da sociedade capitalista: lutar para que sua organização e seus militantes não reproduzam as piores práticas da sociabilidade burguesa, nesse caso em específico, o individualismo/personalismo e a competitividade.
No Brasil, em grandes linhas, temos dois modelos básicos de organização político-partidária: as regidas por centralismo-democrático (PCB, PCR, PSTU, etc.) e as organizadas por tendências (PT, PSOL, etc.). Com base numa leitura um tanto simplista da história do Partido Bolchevique da Rússia, crer-se que esse modelo organizativo impede o debate interno, a livre expressão de divergências, restringe a democracia interna e a liberdade e no limite acaba criando as condições para o surgimento de uma casta burocrática que se apodera do partido e destrói toda discussão política e criatividade.
Outra crítica bem comum é que o modelo do centralismo-democrático acaba facilitando o autoritarismo dos dirigentes e anula a individualidade dos membros da organização. Embora de forma um tanto caricatural, muitas dessas críticas, tem alguma razão de ser. Como tratamos acima, estamos inseridos num modo de subjetivação que reproduz como elementos inerentes a competitividade e o personalismo, e essas práticas sociais, se dominantes numa organização, propiciam que o partido deixe de ser um instrumento político de efetivação de um programa revolucionário coletivamente construído para tornar-se uma máquina burocrática de conceder privilégios (tanto materiais como simbólicos) e garantir o interesse individual ou grupistas dos seus dirigentes.
As críticas ao surgimento do autoritarismo e do burocratismo em partidos com base no centralismo-democrático, reais ou imaginárias, são bem conhecidas e não precisamos nos estender nelas. Queremos chamar atenção para o reverso da moeda: a quebra da democracia interna e da liberdade através do individualismo/personalismo e da competitividade entre os membros do partido. Para isso, contudo, vamos antes escrever poucas linhas sobre o que é um partido e conceituar minimamente o que entendemos por democracia interna e liberdade.
Um partido revolucionário é organização política formada por militantes que expressam um programa político de transformação global de toda sociedade e procura ser o dirigente político-ideológico das classes trabalhadoras e camadas médias. Esse partido se diferencia do movimento social por seu programa de transformação e sua ação política que abarca (ou tenta abarcar) todos os aspectos da vida social. Os militantes desse partido pactuam uma espécie de acordo entre si sobre como funcionará esse partido (estatuto e modelo organizativo) e qual será o programa político e sua estratégia e táticas de aplicação (resoluções congressuais e decisões conjunturais da direção).
A direção e a base não formam dois elementos hierarquicamente dissociados, mas são partes de um todo orgânico com funções diferentes: a direção é responsável por conduzir a operacionalização da política da organização de acordo com as deliberações congressuais e a forma regimental do estatuto; a base por aplicar a política que também emana das resoluções congressuais e dos documentos estatutários. Embora sempre deva existir certa flexibilidade tática entre os documentos do partido e sua aplicação na realidade concreta (notem que falei de flexibilidade tática e não estratégica), essa flexibilidade nunca pode significar uma adaptação sem critérios às conjunturas momentâneas ou a anulação das decisões coletivas – sendo o congresso a expressão máxima da decisão coletiva do partido.
Além de expressar esse acordo coletivo sobre forma organizativa e programa, o partido revolucionário deve manter, no seu cotidiano, formas de funcionamento que permitam uma forte democracia interna e controle das bases sobre as direções dentro das previsões regimentais da lógica de funcionamento. Mas o que é democracia interna? Democracia interna é a construção democrática e participativa dos acordos coletivos e consensuais que constituem o partido e a aplicação desses acordos mediante regras (regras que devem ser democráticas) previsíveis e claras em sua forma de administração como meio de operacionalizar a política coletivamente escolhida em congresso.
Então o que é liberdade dentro da organização político-partidária? A liberdade é a relação dialética da individualidade com coletividade, onde, nos espaços decisórios do partido, a individualidade de cada militante se expressa sem constrangimentos ou assimetrias institucionais e contribui para assumir um posicionamento político que é maior que cada militante tomado isolamento, embora seja uma síntese expressiva das diversas individualidades. Se no partido determinados indivíduos de uma corrente teórica “x” tem mais espaço institucional para propagar suas ideias do que indivíduos da corrente teórica “y”, esse partido tem déficits de liberdade.
Quando, portanto, numa organização política é tolerada qualquer ação individual, não importando o quanto isso fira as decisões coletivas, temos uma ausência de democracia interna e um déficit grave de liberdade. Vamos a um exemplo. Imagine que um deputado de um partido tem muito prestígio na militância e entre vastos segmentos dos movimentos sociais. Esse deputado, sabendo do seu prestígio, desrespeita sistematicamente o estatuto e as resoluções congressuais do partido, mas nada acontece com ele, pois seu prestígio é tão grande e os mecanismos institucionais de democracia interna são tão débeis, que é muito fácil uma personalidade de renome se sobrepor ao coletivo. O deputado cospe em cima de toda construção coletiva ao ponto de o partido ter que posicionar-se publicamente contra a postura do deputado, afirmando que ela não representa o conjunto do partido, contudo, ao mesmo tempo, se nada acontece com o deputado, se o congresso e o estatuto são letra morta, qual é mesmo a posição do partido?
O mais curioso é que nesses casos a postura individualista e personalista é justificada como defesa da liberdade contra o autoritarismo. Só uma consciência completamente dominada pela ideologia burguesa do individualismo para considerar “liberdade” uma ação personalista que fere propositalmente uma construção coletiva consensual.
Ainda em nosso exemplo, usando um pouco mais de imaginação, esse deputado é membro de uma tendência que disputa o poder dentro do partido. Essa tendência usa o prestigio dos seus nomes famosos para manipular o regimento ao seu bel prazer e cria mecanismos institucionais que excluem os dissidentes ou minorias de aparecerem, por exemplo, no site, jornal, programa de TV etc. do partido. Esse partido mantém os déficits de liberdade em nome da liberdade: as tendências têm a “liberdade” de se organizar como quiserem, mas quem controla a máquina do partido cria uma arquitetura de funcionamento de maneira a reproduzir sempre o seu poder e a “liberdade” de organizar tendências tornar-se uma liberdade de ser a eterna minoria – pense, por exemplo, na história das tendências de esquerda do PT.
A disputa entre as tendências dentro do partido, além de ser a negação total da democracia interna e da liberdade partidária, expressa uma variante da competitividade burguesa. As tendências não colaboram entre si, não são expressões diversas de interesses particulares de um mesmo projeto universal, mas sim antagonistas numa concorrência pelo poder onde a destruição de uma significa a vitória da outra. Esse mecanismo de competitividade cria uma tendência curiosa: as tendências majoritárias manipulam a estrutura do partido no seu interesse e as tendências minoritárias defendem a aplicação das normas estatutárias e resoluções congressuais sistematicamente violadas, contudo, a majoritária não tem interesse nessa aplicação e a minoritária não tem poder para aplicar; o resultado é que o Congresso ao invés de expressar um consenso coletivo sobre o programa é uma concha de retalhos moldada através do poder diferencial de cada tendência e/ou personalidade e sua aplicação é sempre postergada ou parcialmente realizada.
Toda essa dinâmica expressa um brutal domínio do individualismo, personalismo e competitividade típicos da sociedade burguesa. Em grandes linhas essa é a dinâmica que rege a vida interna da organização que foi a maior força de esquerda por mais de duas décadas, o PT, e o seu principal candidato a sucessor, o PSOL. Contudo, diferentemente das críticas ao centralismo-democrático, esses problemas não ganham tanto destaque e raramente são considerados manifestações do autoritarismo. Por quê? Vamos arriscar uma tese.
A sociedade burguesa criou um conceito de liberdade ideológico que considera ausência de liberdade apenas as manifestações de opressão e controle do Estado sobre o indivíduo, e mesmo assim, não todas. O binômio “Estado-individuo” é o limite máximo da reflexão tradicional da ideologia burguesa sobre liberdade; portanto, qualquer condicionante estrutural que não for de ordem político-militar não é considerado atentado à liberdade. Um exemplo. Para um liberal o sujeito procura trabalho, assina um contrato e começa a ser explorado o faz por livre e espontânea vontade. O “pequeno fato” de que o trabalhador está destituído dos meios de produção e a dinâmica societária do capitalismo o obrigar a procurar um trabalho ou caso contrário ele morrerá de fome é um detalhe sem importância.
Logo, as pessoas influenciadas em níveis variadas por essa ideologia burguesa, têm uma dificuldade estrutural de compreender como autoritarismo o uso do prestígio pessoal para quebrar o acordo coletivo ou para manobrar o estatuto do partido, pois a ausência da figura do burocrata que dá ordens e mandar fazer (uma representação simbólica do Estado) dificulta a percepção do autoritarismo. O sujeito que “faz o que quer” pouco se importando para a construção coletiva é o reverso da moeda do que “manda de forma autoritária”: duas faces diferenciadas do mesmo problema.
Podemos concluir nosso texto afirmando que a frase fácil de ser ouvida nos meios de militância de que o partido de tendências mesmo com todos os problemas é “sempre melhor que o centralismo-democrático” porque garante “a liberdade de crítica e de iniciativa” esconde, na realidade, uma outra forma de autoritarismo e o cancelamento da democracia interna e da liberdade partidária; contudo esses problemas da organização “descentrada” ganham menos visibilidade política devido à ação da ideologia dominante.
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