O sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho, um dos tipos inesquecíveis de minha juventude na então pacata Jundiaí dos anos 70, foi protagonista de várias crônicas que escrevi para este espaço.
A primeira foi publicada no dia 5 de novembro de 2008 - uma tentativa de retratá-lo e, ao mesmo tempo, matar a saudade de seu convívio. Ela se chama "O Coelho e o Fim das Coisas".
Outra, saiu em 4 de setembro de 2013. Nela traçava um paralelismo entre o sofisticado anticomunismo do Coelho e a indigência dos argumentos da direita de hoje. "Pensar dá Trabalho, Xingar é mais Fácil" é o seu título.
Reproduzo as duas crônicas porque acho que elas mostram, ainda que de uma forma imperfeita, como era bom viver num mundo em que as pessoas debatiam ideias e argumentavam logicamente, embora discordassem profundamente sobre muitas coisas.
E terminavam a tertúlia rindo, alegres, felizes pelo fato de sentir que, acima de tudo, o que valia naqueles momentos era a celebração da amizade e o prazer de conviver com a civilidade.
Sem mais, aí vão as duas crônicas:
Pensar dá Trabalho, Xingar é mais Fácil
O maior anticomunista que conheci nestas seis décadas de vida não foi um daqueles militares raivosos que tomaram conta do Brasil por 21 anos, nem algum político defensor do "livre mercado" ou fã de carteirinha do "american way of life".
O maior anticomunista que conheci chamava-se Antonio Geraldo de Campos Coelho, era sociólogo, escrevia artigos quase indecifráveis para os jornais de Jundiaí, onde nasceu, viveu e morreu.
Também era um tipo esquisitão, noctívago, cheio de manias, que tentou ser professor, mas devido ao seu temperamento um tanto quanto explosivo, acabou cuidando de uma biblioteca de uma escola da cidade.
O Coelho, como o chamavam todos os que o conheciam, adorava discutir política, mas não essa paroquial, do dia a dia, do toma-lá-da-cá, e sim as grandes linhas de pensamento filosófico, as mais intrincadas teorias, as diversas correntes sociológicas, todo esse tesouro que compõe a civilização humana.
Procurava combater o marxismo que repudiava com paixão com argumentos que supunha sólidos, irrebatíveis.
Dizia, naqueles idos tempos da ditadura militar, que era difícil encontrar alguém de direita que conseguisse sustentar um debate com algum comunista de carteirinha.
Para ele, o Brasil sofria desse problema: a direita era burra e truculenta.
O Coelho morreu há cerca de uma década.
Acho que, se estivesse vivo, certamente reforçaria essa sua convicção de quanto tosca e primária é a direita brasileira - o noticiário e os artigos dos jornais e da internet seriam uma extraordinária fonte para fortalecer seu pensamento.
Pessoas como o Coelho, que pretendem convencer os outros com a conversa, usando o raciocínio, e não com mentiras absurdas, xingamentos, expressões de ódio de classe e puro preconceito - e até mesmo o mais rasteiro racismo - são extremamente difíceis de encontrar hoje em dia.
Nestes tempos em que a velocidade predomina, em que tudo tem de ser feito às pressas, o que se vê é cada vez mais a intolerância, o berro e a violência, substituírem a razão e o debate civilizado de ideias.
O Coelho podia, quando expunha seus pontos de vista, ser obscuro, quase ininteligível, até mesmo intransigente.
Mas ele deixava, na maioria das vezes, seu oponente numa situação complicada. Impressionava a plateia.
E, convenhamos, isso é uma maneira bem mais eficiente para convencer os outros que a sua posição é a mais correta do que chamar o adversário de "petralha" e outras imbecilidades desse tipo.
É, dá trabalho pensar...
O Coelho e o Fim das Coisas
A revista Reader's Digest traz até hoje uma seção chamada Meu Tipo Inesquecível. O título é auto-explicativo: as pessoas lembram de outras que as marcaram pelo resto da vida.
Não sei se todos tiveram o privilégio de encontrar um tipo inesquecível. Afortunado, posso dizer que lá pelos anos 70, na então pacata Jundiaí, topei com uma dessas pessoas que não se esquecem facilmente, pela simples razão de que são, de alguma maneira, diferentes das outras.
Quem conheceu o sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho certamente sabe que ele era uma desses tipos. Maluco, diziam alguns; apenas excêntrico, diziam outros. Certo é que ninguém que conversasse com ele, por poucos minutos que fosse, sairia indiferente da prosa.
O Coelho tinha uma erudição total para temas que o fascinavam, como a sociologia política, e era absolutamente analfabeto para outros, mais triviais, como o futebol - ou o ludopédio, como se referia ao esporte preferido dos brasileiros.
Era cheio de manias. Não admitia, por exemplo, que o chamassem de professor - embora, em certa época da vida tivesse dado aulas. Para ele, o "epíteto" soava degradante, pois o igualava ao instrutor de capoeira, que, para o senso comum, também era professor.
Também apelidava amigos e inimigos. Entre nós havia o Chocolate, o Estilingue, o Peixe-Galo, o Menino Lobo, o Homem de Palha. Não sei porque, fiquei fora da lista.
Mas o que distinguia mesmo o Coelho dos outros mortais era o fato de que ele se dedicava, com uma paixão cega, a combater o marxismo. E, como em várias outras coisas, fazia isso de um modo peculiar: procurava vencer o inimigo por meio de argumentos, numa época em que as armas usadas em tal batalha eram outras, mais dolorosas e letais.
O Coelho escrevia, sempre contra o marxismo, para os jornais da cidade. Seus artigos eram longos, tediosos e incompreensíveis para as pessoas comuns, ou seja, quase todos os leitores. Fenomenologia era a palavra mais simples que usava.
Na verdade, não eram bem artigos: eram esboços de teses, dissertações abastecidas de notas de rodapés e citações de filósofos e pensadores de antanho, com argumentos que julgava sólidos para demolir a notável arquitetura do pensamento marxista. Como ninguém o contestava, é impossível saber se ele estava ou não com a razão.
O tempo passou, o muro de Berlim caiu, o socialismo real da União Soviética se desmanchou, e o Coelho e seu antimarxismo radical passaram apenas a fazer parte de minhas lembranças quase esquecidas dessa época de sonhos.
As poucas notícias que tive desse tempo era que ele havia abandonado seus artigos político-sociológicos e passado a falar sobre o amor platônico. Achei a opção natural. Ele apenas trocava o alvo de suas preocupações. Se não havia mais o perigo de o comunismo triunfar, que o amor fosse então vitorioso.
Há poucos anos, fiquei sabendo que o Coelho havia morrido. Antes disso, porém, talvez vendo que já estava perto da viagem final, combinou com os poderes constituídos trocar a sua biblioteca por um túmulo no cemitério que mais apreciava, por ter sido feito num morro e ser bastante amplo.
E lá ele descansa. E estaria ainda num lado de minha memória não fossem essas últimas notícias, vindas de todas as partes, dando conta de que também o capitalismo - ou pelo menos seu lado mais radical - não deu certo e a nação mais poderosa do mundo, ícone supremo da livre iniciativa, elegeu seu primeiro presidente negro para consertar a lambança feita pelo antecessor branco, de extrema-direita, cristão fundamentalista, um verdadeiro horror.
Gostaria que o Coelho estivesse por aqui para me explicar algumas coisas que eu não consigo entender muito bem.
A primeira foi publicada no dia 5 de novembro de 2008 - uma tentativa de retratá-lo e, ao mesmo tempo, matar a saudade de seu convívio. Ela se chama "O Coelho e o Fim das Coisas".
Outra, saiu em 4 de setembro de 2013. Nela traçava um paralelismo entre o sofisticado anticomunismo do Coelho e a indigência dos argumentos da direita de hoje. "Pensar dá Trabalho, Xingar é mais Fácil" é o seu título.
Reproduzo as duas crônicas porque acho que elas mostram, ainda que de uma forma imperfeita, como era bom viver num mundo em que as pessoas debatiam ideias e argumentavam logicamente, embora discordassem profundamente sobre muitas coisas.
E terminavam a tertúlia rindo, alegres, felizes pelo fato de sentir que, acima de tudo, o que valia naqueles momentos era a celebração da amizade e o prazer de conviver com a civilidade.
Sem mais, aí vão as duas crônicas:
Pensar dá Trabalho, Xingar é mais Fácil
O maior anticomunista que conheci nestas seis décadas de vida não foi um daqueles militares raivosos que tomaram conta do Brasil por 21 anos, nem algum político defensor do "livre mercado" ou fã de carteirinha do "american way of life".
O maior anticomunista que conheci chamava-se Antonio Geraldo de Campos Coelho, era sociólogo, escrevia artigos quase indecifráveis para os jornais de Jundiaí, onde nasceu, viveu e morreu.
Também era um tipo esquisitão, noctívago, cheio de manias, que tentou ser professor, mas devido ao seu temperamento um tanto quanto explosivo, acabou cuidando de uma biblioteca de uma escola da cidade.
O Coelho, como o chamavam todos os que o conheciam, adorava discutir política, mas não essa paroquial, do dia a dia, do toma-lá-da-cá, e sim as grandes linhas de pensamento filosófico, as mais intrincadas teorias, as diversas correntes sociológicas, todo esse tesouro que compõe a civilização humana.
Procurava combater o marxismo que repudiava com paixão com argumentos que supunha sólidos, irrebatíveis.
Dizia, naqueles idos tempos da ditadura militar, que era difícil encontrar alguém de direita que conseguisse sustentar um debate com algum comunista de carteirinha.
Para ele, o Brasil sofria desse problema: a direita era burra e truculenta.
O Coelho morreu há cerca de uma década.
Acho que, se estivesse vivo, certamente reforçaria essa sua convicção de quanto tosca e primária é a direita brasileira - o noticiário e os artigos dos jornais e da internet seriam uma extraordinária fonte para fortalecer seu pensamento.
Pessoas como o Coelho, que pretendem convencer os outros com a conversa, usando o raciocínio, e não com mentiras absurdas, xingamentos, expressões de ódio de classe e puro preconceito - e até mesmo o mais rasteiro racismo - são extremamente difíceis de encontrar hoje em dia.
Nestes tempos em que a velocidade predomina, em que tudo tem de ser feito às pressas, o que se vê é cada vez mais a intolerância, o berro e a violência, substituírem a razão e o debate civilizado de ideias.
O Coelho podia, quando expunha seus pontos de vista, ser obscuro, quase ininteligível, até mesmo intransigente.
Mas ele deixava, na maioria das vezes, seu oponente numa situação complicada. Impressionava a plateia.
E, convenhamos, isso é uma maneira bem mais eficiente para convencer os outros que a sua posição é a mais correta do que chamar o adversário de "petralha" e outras imbecilidades desse tipo.
É, dá trabalho pensar...
O Coelho e o Fim das Coisas
A revista Reader's Digest traz até hoje uma seção chamada Meu Tipo Inesquecível. O título é auto-explicativo: as pessoas lembram de outras que as marcaram pelo resto da vida.
Não sei se todos tiveram o privilégio de encontrar um tipo inesquecível. Afortunado, posso dizer que lá pelos anos 70, na então pacata Jundiaí, topei com uma dessas pessoas que não se esquecem facilmente, pela simples razão de que são, de alguma maneira, diferentes das outras.
Quem conheceu o sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho certamente sabe que ele era uma desses tipos. Maluco, diziam alguns; apenas excêntrico, diziam outros. Certo é que ninguém que conversasse com ele, por poucos minutos que fosse, sairia indiferente da prosa.
O Coelho tinha uma erudição total para temas que o fascinavam, como a sociologia política, e era absolutamente analfabeto para outros, mais triviais, como o futebol - ou o ludopédio, como se referia ao esporte preferido dos brasileiros.
Era cheio de manias. Não admitia, por exemplo, que o chamassem de professor - embora, em certa época da vida tivesse dado aulas. Para ele, o "epíteto" soava degradante, pois o igualava ao instrutor de capoeira, que, para o senso comum, também era professor.
Também apelidava amigos e inimigos. Entre nós havia o Chocolate, o Estilingue, o Peixe-Galo, o Menino Lobo, o Homem de Palha. Não sei porque, fiquei fora da lista.
Mas o que distinguia mesmo o Coelho dos outros mortais era o fato de que ele se dedicava, com uma paixão cega, a combater o marxismo. E, como em várias outras coisas, fazia isso de um modo peculiar: procurava vencer o inimigo por meio de argumentos, numa época em que as armas usadas em tal batalha eram outras, mais dolorosas e letais.
O Coelho escrevia, sempre contra o marxismo, para os jornais da cidade. Seus artigos eram longos, tediosos e incompreensíveis para as pessoas comuns, ou seja, quase todos os leitores. Fenomenologia era a palavra mais simples que usava.
Na verdade, não eram bem artigos: eram esboços de teses, dissertações abastecidas de notas de rodapés e citações de filósofos e pensadores de antanho, com argumentos que julgava sólidos para demolir a notável arquitetura do pensamento marxista. Como ninguém o contestava, é impossível saber se ele estava ou não com a razão.
O tempo passou, o muro de Berlim caiu, o socialismo real da União Soviética se desmanchou, e o Coelho e seu antimarxismo radical passaram apenas a fazer parte de minhas lembranças quase esquecidas dessa época de sonhos.
As poucas notícias que tive desse tempo era que ele havia abandonado seus artigos político-sociológicos e passado a falar sobre o amor platônico. Achei a opção natural. Ele apenas trocava o alvo de suas preocupações. Se não havia mais o perigo de o comunismo triunfar, que o amor fosse então vitorioso.
Há poucos anos, fiquei sabendo que o Coelho havia morrido. Antes disso, porém, talvez vendo que já estava perto da viagem final, combinou com os poderes constituídos trocar a sua biblioteca por um túmulo no cemitério que mais apreciava, por ter sido feito num morro e ser bastante amplo.
E lá ele descansa. E estaria ainda num lado de minha memória não fossem essas últimas notícias, vindas de todas as partes, dando conta de que também o capitalismo - ou pelo menos seu lado mais radical - não deu certo e a nação mais poderosa do mundo, ícone supremo da livre iniciativa, elegeu seu primeiro presidente negro para consertar a lambança feita pelo antecessor branco, de extrema-direita, cristão fundamentalista, um verdadeiro horror.
Gostaria que o Coelho estivesse por aqui para me explicar algumas coisas que eu não consigo entender muito bem.
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