Há muito vem sendo repetido que não há mais sentido em identificar diferenças substantivas entre a esquerda e a direita, já que as fronteiras entre os seus projetos e compreensão do mundo se diluíram.
Mesmo que as maneiras de verbalizar esse discurso mudem, a sua origem é sempre a mesma: a própria direita, que não cansa de repetir o seu mais tradicional discurso.
A derrota do ideário neoliberal e a continuada crise nos Estados Unidos e Europa, fez ressurgir com força esse mantra conservador.
O pensamento da direita é necessariamente fragmentado e, portanto, não suporta uma análise mais profunda sobre as razões que impedem que, sob o capitalismo, as sociedades consigam superar as imensas desigualdades sociais e econômicas e mantenham milhões de pessoas na extrema pobreza. Além disso, submete toda a humanidade à incerteza quanto ao futuro, trazida pela crise ambiental, gerada pela rapinagem dos recursos naturais cujo objetivo é atender a ânsia de consumo produzida para sustentar e reproduzir o próprio sistema de mercado.
O objetivo desta construção discursiva, repetida de diversas maneiras, é o de justificar as diferentes formas de dominação que o exercício de poder econômico, político e cultural construíram ao longo de séculos e, assim, tentar evitar que sejam identificadas nas suas políticas a responsabilidade para as chocantes mazelas que são produzidas e reproduzidas em escala cada vez maior.
A mais recente demonstração disto são as respostas apresentadas pelos detentores do poder na Europa, que atacam duramente os direitos e conquistas dos trabalhadores, diminuindo o seu poder de compra e aumentando o desemprego, entre tantos outros castigos dirigidos aos setores mais vulneráveis.
Essa fúria contra os trabalhadores e setores populares, contrasta com os vultuosos recursos (bilhões de dólares) injetados para salvar os banqueiros, grandes industriais e financistas, mantendo seus interesses e fechando os olhos às inúmeras ilicitudes e manipulações de informações produzidas para esconder a real situação das empresas e da economia e, assim, aumentar ainda mais os seus lucros. Isso tudo está, mais uma vez, sendo feito à custa de imensos retrocessos no bem-estar da sociedade.
Mesmo que, em cada época, as formas de dominação ganhem diferentes contornos, significados e graus de legitimação, dado que sempre são condicionadas pela correlação de forças entre as classes, o “núcleo duro” da ideologia conservadora é preservado: justificar a dominação dos mais fortes e mais aptos. No linguajar ultraliberal, os termos “fortes” e “aptos” são usados para encobrir os verdadeiros sujeitos que os seus ideólogos têm em mente: os proprietários e os financistas.
A produção e expansão do domínio britânico, por exemplo, o império no qual “o sol nunca caía”, definiu em grande medida as formas dominantes de compreensão daquilo que era civilizado, correto e justo na sua época. As inúmeras formas de resistência sempre foram sufocadas, se preciso pela mais brutal repressão, até se deparar com a tenaz e persistente luta personificada pela figura de Ghandi. A partir daí, a até então “justa dominação imperial” foi perdendo legitimidade até não mais ter condição de se manter daquela forma, fazendo ruir o colonialismo.
O império americano, por sua vez, prescindiu da dominação territorial direta e exerceu a sua influência de outras formas, predominantemente pela financista, tendo atuado para o esfacelamento do império britânico, como demonstra a aliança entre Rooselvelt e Stálin para a reorganização dos campos de influência do pós-guerra, contra as tentativas de Churchill em manter ao máximo o domínio britânico, tal como persistiu até a II Grande Guerra.
A direita jamais deixou de utilizar todo e qualquer meio para manter a sua dominação, mesmo que para isso tenha que instalar governos totalitários, como foram as inumeráveis e sangrentas ditaduras na América Latina, entre as quais no Brasil, para não falar no nazifascismo na Europa. O que evidencia que o seu compromisso com a democracia é real enquanto os setores sociais populares forem mantidos “no seu lugar”, ou seja, sob seu mando e interesses.
A direita não suporta que os setores populares sejam bem sucedidos na construção de projetos e organizações suficientemente fortes ao ponto de disputarem opinião e arrebatarem a simpatia da maioria da sociedade. Não há outra razão para a incansável luta para desmoralizar tudo o que sai do seu controle. Quando não consegue cooptar os dissidentes, combate-os sem trégua e regras.
Ao contrário do que diz a direita e seus funcionários, a disputa de projetos e rumos é real e pode ser exemplificada nas lutas em curso no Brasil. É só ver quem luta contra as cotas raciais e acusou os seus defensores como estando estimulando o ódio racial; é só ver quem resistiu e procurou impedir as políticas de transferência de renda destinadas a enfrentar a extrema pobreza, acusando os seus defensores de estimularem a malandragem; é só ver quem critica a política de recuperação acelerada do poder de compra do salário mínimo e acusa seus defensores de prejudicarem a competitividade das empresas nacionais; é só ver quem impediu por mais de 10 anos a votação do Projeto de Emenda Constitucional que criminaliza o trabalho escravo e permite a desapropriação das terras para reforma agrária e quem, quando a Emenda finalmente foi à votação, votou contra ela; é só ver quem patrocinou o maior retrocesso na política de proteção ambiental brasileira, propondo e votando uma completa licenciosidade e estímulo à degradação ambiental. A reação contra a instalação da Comissão da Verdade e as opiniões sobre se os que praticaram tortura devem ser julgados, ou não, é outro tema que divide a margem esquerda, da margem da direita.
Ao identificar como os partidos, as organizações sociais, os comentaristas, os representantes setoriais etc, se posicionaram nesses e em tantos outros assuntos que tratam de fazer avançar direitos, obter conquistas e evitar retrocessos, conseguimos perceber claramente como os campos políticos são constituídos no cotidiano das disputas sociais. Essas lutas separam de forma muito bem definida a esquerda da direita. Portanto, quando é afirmado que não há mais sentido identificar distinções entre a esquerda e a direita, ou que programas e ideologias não devem ser considerados nas disputas sociais e eleitorais, estamos novamente ouvindo o mais tradicional discurso da direita, seja quem for que o esteja repetindo. Por Gerson Almeida
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