quinta-feira, 16 de junho de 2011

O pão e manteiga da média paulista


Sugestão da leitora, Zuca Provout, de Recife

Por Raul Longo (*)
(breve desagravo à justa indignação de Maria Lúcia e Maria Helena Perandim ao preconceito e ignorância da precária análise paulista de dados aferidos pelo IBGE,em primária, obtusa e inconsistente conclusão de financiamento da vagabundagem brasileira pelos estados que aferem maior PIB)
Pungente! Não presenciei, mas no marejado dos olhos da mulher ao relatar o motivo de seu sofrimento naquela manhã, pude sentir a dor da qual ainda hoje não esqueço.
Já eram umas 5 horas da tarde e o maridão, me encontrando na calçada, convidou para entrar, conhecer a casa. Fino acabamento, espaçosa, à margem da praia. Construíram na decisão de mudar para aquela Ubatuba em busca de mais sossego, natureza, menos estresse e violência.  Exaustos da capital do estado, a maior cidade do Brasil, uma das mais populosas do mundo......

Impressionante. Quem diria que pouco mais de século e meio atrás, nas ruas daquela mesma São Paulo de Piratininga ainda se falava o guarani?!!!
Sim senhor! Até meados do século 19 na hoje maior cidade do país era como ainda se mantêm no interior do Paraguai, onde o idioma dos naturais da terra é o corrente. Já nos eitos paulistas predominava o banto dos escravos trabalhando de sol a sol para famílias de senhores feudais, patriarcas cuja cultura se resumia à cotação da arroba do grão cultivado e colhido pelo suor alheio.
Casmurros barões do café de vida cultural reduzida às missas e carolíces, tratavam às gentes como inferiores ou, em versão mais atualizada: “diferenciados”. Por essas limitações e preconceitos o povo que realmente trabalhava, para se entender, comercializar e socializar dava preferência ao guarani. Belíssimo idioma ao qual Darcy Ribeiro apontava como mais bonito do que o francês.
Lembrando agora e na certeza que de indígenas não, me pergunto se aquela lastimosa burguesa paulista e paulistana descenderia dos tacanhos, mesquinhos e intrigueiros quatrocentões. Destros em maledicências e difamações, como a que promoveram contra um verdadeiro Barão, o de Mauá.
Gaúcho do interior, aos nove anos de idade o órfão Irineu Evangelista de Souza começou a trabalhar por sua sobrevivência. Ex caixeiro, em reconhecimento às nobres contribuições ao país foi agraciado por Dom Pedro II com o título de Visconde e depois Barão de Mauá. Empreendedor, construiu e manteve a maior do fortuna no país, até idealizar a escalada da Serra do Mar por ferrovia.
Embasbacados por tamanha ousadia, os paulistas riam à socapa, negando-se ao financiamento de tal loucura que terminou sendo concretizada na obstinação do Barão associado aos mais experientes engenheiros em ferrovias de então, vindos da Inglaterra. Assim nasceu a São Paulo Railway que transportando as sacas de café do oeste para exportação ao mundo pelo porto de Santos, foi o primeiro grande impulso para o estado se tornar o mais rico do Brasil.
Acontece que além de se destacar como o primeiro grande empresário brasileiro e refundador do Banco do Brasil, cujos cofres foram rapados e fechados no retorno de seu primeiro fundador, o Dom João VI, à Portugal; Mauá também financiava a causa abolicionista e isso a escravocrata elite paulista não podia admitir nem perdoar. Através de intrigas e outras vilezas o levaram a vender a participação na ferrovia aos britânicos. A partir daí começaram por lhe cavar a falência e ao final da vida, com mais de 70 anos de idade, teve de trabalhar como corretor de café para os mesmos patriarcas paulistas que ajudou a enriquecer e o empobreceram.
A São Paulo Railway foi estatizada em 1946 dentro da política nacionalista do getulismo contra a qual a elite paulista também muito se opôs, promovendo a cruenta Revolução de 32 e participando da UDN formada por antinacionalistas de todos os estados brasileiros.
Em 1948 a ferrovia passou a ser chamada Santos – Jundiaí e, em 1996, finalmente os paulistas conseguiram novamente privatizá-la depois de extinto o transporte de passageiros pela ferrovia criada por Mauá e desativada na chamada era FHC.
Como a mulher que ali chorava tampouco tinha traços asiáticos, não posso cogitá-la da origem daqueles japoneses que vieram fugindo da miséria no arquipélago do outro lado do mundo, para trabalhar com o mato-grossense Cândido Rondon na extensão ferroviária que, partindo de Bauru, atravessava o cerrado e o pantanal até a fronteira com a Bolívia, em Corumbá. Era a Noroeste do Brasil criada no período Vargas e também privatizada em 96 pelo mesmo FHC apoiado pelos paulistas.
Como no caso anterior o transporte de passageiros pelo pantanal mato-grossense, um dos mais turísticos percursos ferroviários do Brasil, também foi desativado.
Mas os japoneses não foram os únicos emigrantes trazidos ao Brasil para substituir a mão de obra escrava abolida por Pedro II, o que lhe custou o Império através de intrigas que estimularam Deodoro à proclamação da República. No entanto, não há meio de recordar de qual daqueles povos expulsos pela miséria em seus países de origem, descendia a mulher que chorava numa tarde de Ubatuba.
Talvez viesse de antepassados bandeirantes, hoje lembrados como heróis. Em verdade foram abomináveis preadores de índios e estupradores de índias. Gente grosseira e mesquinha que só pensava em fazer fortuna encontrando metais e pedras preciosas, capazes de conspirar contra os próprios pais e executar até mesmo os filhos, como aconteceu na nobiliarquia Pais Leme.
Gente cruel e de vis artimanhas como Domingos Jorge Velho que para vencer a centenária e heroica resistência dos negros de Palmares, à gente mais pobre do quilombo distribuiu roupas contaminadas, empesteando a todos.
Vergonhosa e nefanda tática reutilizada no século passado contra os índios xavantes, quando os descendentes daqueles mesmos paulistas se interessaram por terras de Mato Grosso e Goiás.
Mas também pode ser que a mulher descendesse dos árabes, vindos a convite de Dom Pedro II que numa viagem ao Oriente se fascinou pela cultura e cordialidade daquele povo. Com essa cordialidade e cultura muito contribuíram para o desenvolvimento comercial dos interiores do estado de São Paulo.
Fugiam da crueldade do Império Turco Otomano que então dominava a Síria e o Líbano, mas aqui foram designados pelo gentílico de seus dominadores, embora etnicamente nada tivessem a ver com os turcos. Nem mesmo se identificavam pela religião islamita, pois a maioria destes primeiros sírios e libaneses era de católicos maronitas.
Isso da admiração de Pedro II pelos povos lhe era próprio. Deposto por vingança dos escravocratas, sempre foi um humanista admirado pelo mundo intelectual da época. Citado por nomes como Nietzsche, Wagner e Graham Bell que na corte do Rio de Janeiro instalou uma das primeiras linhas de seu invento telefônico, Dom Pedro era apontado como o único monarca antimonarquista de seu tempo.
Talvez se então lhe perguntassem por que ele próprio não instaurava a república, teria revelado receio da gente intriguista de uma província logo abaixo da Corte. Mas não é verdade, pois após abandonado aos cinco anos de idade pelo pai, foi educado por um notável paulista de Santos: José Bonifácio de Andrade e Silva.
Melhor cogitar que por reconhecimento ao seu preceptor, além de apoiar um dos mais arrojados empreendimentos humanos do século 19, a construção da ferrovia Santos-Jundiaí; foi quem ordenou a construção do Porto de Santos determinando assim o enriquecimento daqueles que mais tarde o derrubaram e exilaram do Brasil.
Também por aquele maior porto da América Latina foi onde chegaram as levas de japoneses, poloneses, alemães, portugueses, judeus, espanhóis, etc.
Aumentando ainda mais o equívoco que já humilhara os árabes, ali aportaram os armênios. Embora nem uma coisa ou outra, igualmente foram generalizados como turcos, mas procedem do Cáucaso e da primeira nação católica do mundo. Massacrados por um dos maiores genocídios da história da humanidade, perpetrado pelo Império Turco Otomano, os armênios em maioria se concentram nas cidades de São Paulo e Osasco onde muito contribuíram para o desenvolvimento industrial e comercial brasileiro, sobretudo no setor calçadista.
Outros foram os judeus que, como povo tradicionalmente peregrino, foi dos primeiros a vir ao Brasil depois dos portugueses. Além dos cristãos novos sefarditas (em hebraico: sefardi = natural de Sefarad = Península Ibérica) fugidos do Santo Ofício. Em 1810 os provenientes de Marrocos se estabeleceram na lide do caucho e da borracha na Amazônia, mas no final daquele século chegaram os chamados de asquenazes, provenientes do leste europeu. Estes iniciaram as atividades da promissora indústria têxtil de São Paulo, no bairro do Bom Retiro
Vizinha ao Bom Retiro, a Barra Funda que, como a Mooca, foi compartilhada por espanhóis e italianos. Pejorativamente identificados como sucateiros e carcamanos, introduziram a reciclagem de materiais usados e a politização das classes trabalhadoras brasileiras. Aqui formaram as primeiras comunas anarquistas e grupos socialistas, trazendo a difícil experiência da luta contra a espoliação já sofrida em seus países de origem.
Todos esses emigrantes que fizeram de São Paulo o estado mais rico do país, poderiam fazer coro aos italianos que ao embarcar cantavam:“Aderemo in Mérica/In il bel Brasil/E qui nostri siori/Lavorerá la terá col baldil!” (Iremos para a América. Para aquele belo Brasil. E aqui nossos senhores trabalharão a terra com baldes!).
Mas o que cantariam aqueles que, já estando no Brasil, foram responsáveis pela construção dos grandes edifícios, pontes e viadutos, avenidas, portos, aeroportos e todos os monumentos das maiores capitais brasileiras? Inclusive os da própria capital do país, concretizando os geniais traços do carioca Oscar Niemeyer, também autor do principal cartão postal de São Paulo: o edifício Copan?
Ignorados em suas identidades culturais, generalizados como “baianos” em São Paulo e “paraíbas” no Rio de Janeiro, quantos desses brasileiros morreram pelo engrandecimento dessas cidades? Soterrados nos túneis de metrôs, despencados de imprevidentes andaimes, concretados em fossos de fundações das colunas onde hoje se debruça a pujança e a riqueza do sul e sudeste do país.
Displicentemente assassinados pelo desprezo daqueles que hoje trafegam e se transportam pelas vias que eles construíram. Dos que se abrigam nos luxos e requintes que erigiram para os que ignoram suas existências e direitos como brasileiros e seres humanos.
Mas a pergunta mais exata é, por que esses nordestinos deixaram seus sertões? Por serem vagabundos, como os classificam aqueles para os quais trabalharam e deram suas vidas, além do desespero e dissolução de suas famílias?
Alguns episódios da história brasileira nos dão a resposta:
Aos 15 anos de idade, já morando em Recife, o cearense Delmiro Gouveia começou a trabalhar como cobrador do trem urbano daquela capital (maxambomba) e em 1886 se tornou representante do sueco Herman Lundgren que mais tarde fundaria as Casas Pernambucanas.
Dez anos depois criou a Delmiro Gouveia & Cia. Contratando os melhores profissionais com salários acima dos oferecidos pelo mercado, em 1899 inaugurou um grande comércio com o nome de Derby, considerado como o primeiro Shopping Center do Brasil.
Por operar com preços mais acessíveis ao consumidor, Delmiro Gouveia conquistou muitos inimigos comerciais e políticos que, no feriado de 1º de janeiro de 1900, incendiaram seu grande estabelecimento que precedeu em mais de meio século ao primeiro Shopping Center de São Paulo, o Iguatemi.
Ameaçado de morte, Delmiro refugiou-se no inóspito sertão alagoano adquirindo terras numa região deserta chamada de Pedra. Ali iniciou um curtume. Pedra começou a se tornar a cidade que hoje leva seu nome, quando para lá o empresário construiu mais de 500 kms de estrada.
Em 1912 fez erigir a primeira vila operária em alvenaria, com mais de 200 casas, e em 1913 a primeira hidroelétrica brasileira, na queda do Angiquinho na Cachoeira de Paulo Afonso. Através de Delmiro Gouveia a energia elétrica chegou ao Brasil pelo sertão, quando as capitais do sul ainda eram iluminadas ao querosene e pelo lampião à gás.
No ano seguinte inaugurou a Companhia Agro Fabril Mercantil, lançando as primeiras linhas de costura produzidas na América Latina, com melhor qualidade e menores preços do que as Linhas Correntes da Machine Cotton da Inglaterra e que até então monopolizara todo o mercado do continente.
Através de prepostos paulistas a Machine Cotton pressionou Delmiro à venda de sua indústria. Acuado por intrigas que chegaram a levá-lo à prisão, o empresário considera a possibilidade desde que contratualmente os ingleses aceitem a manutenção da participação acionária de seus funcionários, uma inovação na relação patronal empregatícia idealizada por Delmiro e décadas mais tarde empregada em alguns países socialistas da Europa.
Os ingleses não aceitam a exigência e Delmiro é assassinado no ano de 1917 em condições nunca esclarecidas. A Machine Cotton obriga a viúva de Delmiro a transferir a empresa e destrói todas as máquinas e edificações que, junto com os escombros da hidroelétrica, são atiradas no Rio São Francisco. Todos os familiares de Delmiro foram perseguidos e expulsos do nordeste, sobrevivendo apenas os que então se dispersaram por estados de outras regiões do país.
Até hoje as Linhas Correntes, com o número estimado de 10 funcionários (segundo página eletrônica da empresa) se estabelece no bairro do Ipiranga, em São Paulo.
Ainda assim a influência do empreendedorismo de Delmiro Gouveia se irradiou por todo o sertão nordestino e Campina Grande, na Paraíba, tornou-se a segunda maior exportadora mundial de algodão, atrás somente de Liverpool. Com a crise do café em 1930, os paulistas voltam-se para o cultivo algodoeiro e a Machine Cotton retribui o serviço sujo do caso Delmiro, dando exclusividade de fornecimento à produção de São Paulo, apesar da baixa qualidade e resistência no produto final. Enquanto isso a Companhia Docas de Santos interfere junto ao Porto de Recife contra a exportação do algodão nordestino e impede a criação de um porto em João Pessoa.
Dessa forma se foi assegurando o fornecimento de mão de obra barata para os grandes empreendimentos dos estados do sul do país e dessas mãos de tantos nordestinos emigrados pela falta de trabalho e condições de sobrevivência na região onde nasceram, se construiu o PIB dos mais ricos estados brasileiros.
Também dessa forma as grandes cidades do sul e sudeste foram se tornando violentas, com desordenada ocupação de morros e periferias, exorbitante densidade populacional. Estressantes e exaustivas, levaram a chorosa paulistana para a litorânea Ubatuba.
Não vou lembrar à qual nacionalidade de antecedentes indicava seu nome de família, mas recordo que seu pai a antecedera em algumas décadas quando Laudo Natel no governo do estado como preposto de Amador Aguiar, um dos financistas do golpe de 64, construiu a Rio – Santos.
Logo depois, pagando uma dívida do filho de Costa e Silva no Hipódromo da Gávea, Maluf comprou o governo de São Paulo, mas já então os barões do café, indolentes e incompetentes, haviam falido e transferido seus bens para os descendentes daqueles emigrantes que antes exploraram.
Dos paulistas quatrocentões os filhos dos humildes e miseráveis árabes, asiáticos e europeus, que hoje constituem a classe média do estado, herdaram a prepotência e o desprezo pela gente brasileira.
Foi desse meio que veio o pai daquela mulher, como advogado chefiar em Ubatuba uma das quadrilhas de especuladores apoiados por políticos como Natel e Maluf. Ou Orestes Quércia, talvez. Forjando documentos e iludindo os ingênuos caiçaras, caboclos mestiços de índios com português ou franceses dos tempos de Cunhambebe e Anchieta, arrebataram-lhes as valorizadas terras próximas às belas praias do litoral norte de São Paulo.
Hoje a bucôlica e saudosa Ubatuba tornou-se feia, suja, decadente. Violenta e abandonada pelo poder público do município e do estado, assemelha-se a uma cidade estuprada.
E já naquela época a burguesa da classe média paulistana ia às lágrimas por não conseguir, ali, um pão para o café da manhã tão a seu gosto quanto o da padaria na esquina de sua casa da capital.
O pão com manteiga da média paulista é assim mesmo: se o arrota como quem tenha comido croissant com foie gras. Parece frívolo e ridículo, mas é triste e lamentável.
*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis (SC).
via, quem tem medo de democracia

Nenhum comentário:

Postar um comentário