Por óbvias razões, não vou citar a fonte, mas um amigo colocou a seguinte observação em um grupo do WhatsApp: “Deixa eu entender, estás pregando a democracia mas és de esquerda, você acha que os regimes socialistas são democráticos?”.
Apesar de no título ter utilizado a expressão “breve confusão”, esse amigo faz, na verdade, uma grande confusão, das maiores que andam por aí.
A primeira e a pior delas é pensar que ser de esquerda é ser antidemocrático. Nada mais absurdo do que isso. E muito me admira que pessoa com a inteligência e o conhecimento que ele tem ainda hoje pense dessa forma. Há mais de cem anos que abandonamos Descartes como ferramenta de compreensão da vida social (aliás, a racionalidade cartesiana não tem serventia para quase nada neste mundo do século XXI…).
E por que cito Descartes? Porque esse raciocínio raso, do tipo “ser de esquerda é ser socialista/comunista/antidemocrático” não passa de uma conveniente indução: de uma parte deduzo o todo. De exemplos fracassados de comunismo, passo para o socialismo e, a partir daí, chego a conclusão de que ser de esquerda é ser antidemocrático.
A segunda pressupõe um total desconhecimento do que seja o socialismo, convenientemente associado ao comunismo. E não me admira que o amigo assim pense, pois teve formação que o ensinou que socialismo, comunismo, ou  ser de esquerda são “tudo farinha do mesmo saco”.
A bem da verdade, diga-se passagem que qualquer coisa que não seja o “mercado” é “farinha do mesmo saco”. Qualquer coisa que não seja meritocracia (quase sempre herdada) é farinha…
Comecemos, pois.
Esquerda é anterior ao socialismo, assim como este é anterior ao comunismo. Dito de outra forma, e por analogia, a religiosidade é anterior às religiões. Ou seja, a percepção da existência antecede ao uso que se dê para a essa existência.
As religiões criaram os deuses, não a religiosidade. Homens criaram o comunismo como forma de apropriação do socialismo. E o próprio socialismo foi uma apropriação indevida de uma forma de ver a existência do ser humano.
Socialismo é tão somente uma forma – ainda que precária – de aplicação de um conceito anterior, o de que somos, ou deveríamos ser, uma comunidade de compaixão, de solidariedade ou, no dizer de um grande ser de esquerda, “não faças aos outros aquilo que não queres que façam a ti”.
Há outra forma de ver as relações sociais, a forma que parte do pressuposto da propriedade como direito fundamental. É a forma da exclusão. É a forma que se contrapõe a ver o mundo como solidariedade. Se opõe a ver o mundo com um mundo onde todos possam ser proprietários.
A natureza do “mercado” não permite que isso aconteça. Para o mercado – e para os seus defensores – existem os donos e os que servem aos donos. Os donos têm a seu favor a meritocracia e creem, piamente, que todos os humanos da Terra merecem, basta que se esforcem.
A forma “esquerda” de ver o mundo aceita a realidade, uma realidade que é substancialmente diferente para os que tiveram, por exemplo, alimentos na infância e com isso desenvolveram seus cérebros e os que já nasceram na miséria e que jamais conseguirão algo na vida a não ser que a solidariedade os acompanhe.
E agora entra o papel do Estado, que os defensores da meritocracia jamais compreenderão: o ponto de partida. Meu amigo faz parte do um por cento que estudou nas melhores escolas, teve a melhor alimentação e acesso ao que de bem e melhor poderia ter.
Mérito? Não, herança histórica. Tivesse nascido negro em uma favela, com certeza não estaria fazendo as perguntas que faz.
Essa é a explicação, meu caro. Ser de esquerda é ter uma compreensão da humanidade que vai além do mercado e da meritocracia. E muito além de pensar que ser de esquerda é ser somente socialista ou comunista.
Ou, como queres, ser antidemocrático….