terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

RELEMBRANDO A PRIMEIRA PREFEITURA QUE O PT CONQUISTOU NUMA CAPITAL E SEU SIGNIFICADO PARA OS REVOLUCIONÁRIOS


"Pedras no caminho? Eu guardo todas.
Um dia vou construir um castelo."
(Fernando Pessoa)

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Era 16 de novembro de 1985 e a apuração se aproximava do fim. Vinha decrescendo o candidato contrário mais destacado (deputado Paes de Andrade, sogro de Eunício Oliveira, atual presidente do Senado) e faltava a apuração dos votos da 1ª Zona eleitoral, situada na Aldeota, bairro rico de Fortaleza.

No ginásio Paulo Sarasate, onde se apuravam manualmente os votos, nós estávamos ansiosos, acreditando na vitória, quando um vereador de Fortaleza, com muita experiência em processos eleitorais, me tranquilizou: "Vocês ganharam a eleição, a Aldeota votou em vocês".         

Fiquei surpreso, porque, do alto da minha inexperiência eleitoral, sempre achei que eram apenas os deserdados da sorte os nossos eleitores. Eu não sabia que a chamada classe média estava insatisfeita e querendo mudanças.

Até que veio uma explosão de alegria incontida da multidão: Maria Luíza Fontenele, candidata do Partido dos Trabalhadores (o PT de Fortaleza daqueles tempos) era a primeira mulher a ser eleita para a prefeitura de uma capital brasileira, a quinta cidade do país.

A candidata eleita tinha um perfil histórico de lutas populares e era reconhecida como adepta do marxismo. A dose era muito forte para todo o sistema. 

Lembro-me de estar no teto de uma kombi, multidão em volta, tendo ao lado um figurão do PT de São Paulo que chegou de última hora e estava eufórico com a perspectiva do poder. 

Eu, que havia ajudado na coordenação de campanha comandada por Jorge Paiva, estava feliz, mas preocupado. O companheiro petista de São Paulo me perguntou por que e eu lhe respondi:
"A multidão está feliz porque imagina que vamos promover a sua redenção, mas teremos de administrar uma máquina estatal com ferrenha oposição sistêmica".
Isto em razão:
  • da total dependência financeira, já que a nova constituição em elaboração somente proporcionaria aos municípios alguma autonomia financeira depois que entrasse em vigor (as prefeituras equivaliam a meras secretarias de estado, segundo as leis ditatoriais do governo militar);
  • da impotência no que tange ao atendimento das demandas sociais populares (algo que também só melhorou – um pouco! – com a Constituição de 1988);
  • e das circunstâncias em  que o novo governo assumiria, sem nenhum vereador e nenhum deputado.
Tudo nos era adverso; até mesmo o PT, que desde cedo se mostrou contrariado com nossa postura intransigente face àquilo que recriminávamos (principalmente com o presidente Sarney, que mais tarde se tornaria grande aliado petista). O desenlace deste processo de recriminações mútuas e constantes atritos acabaria sendo a nossa possa expulsão do partido.

Não tínhamos à época muita clareza do equívoco que representava a contradição de se ser contrário ao sistema capitalista e querer administrar uma máquina estatal formatada ao serviço do capital.

Talvez a minha relativa tristeza derivasse da intuição disso tudo. O tempo se encarregou de nos mostrar a ingenuidade de nosso atrevimento eleitoral histórico: desbancar o capital do menor dos seus tronos – uma prefeitura municipal , e sem com ele conciliar.

Aprendemos, a duras penas e ao longo do tempo, que é necessário desconstituir todos os construtos em volta da sociedade mercantil, mas, principalmente, o seu móvel principal – a forma-valor – para podermos nos emancipar.

Apesar de tudo, aquele foi um dia para a História, pois, afinal, o aprendizado pode ser adquirido a partir de um caminhar libertador, por mais sofrido que seja, em consonância com uma correta teoria. E de modo que a luta se transforme numa práxis verdadeiramente emancipatória. 

O caminho do PT daí pra frente foi a proximidade com o poder burguês; o nosso, o do desapego e da denúncia deste mesmo poder. 

Os resultados bem demonstram o acerto da nossa escolha, apesar do alto preço que pagamos por não conciliarmos com o capital. E é isto o que nos habilita, hoje, a uma crítica consistente.
(por Dalton Rosado, que foi o secretário de 
Finanças da administração popular de Fortaleza)

Esta bela canção caiu como uma luva na campanha eleitoral de Maria Luíza

no: https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2017/02/relembrando-primeira-prefeitura-que-o.html


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

É HORA DE TERMOS NOVAMENTE O CÉU COMO BANDEIRA E DE VOLTARMOS A TOMAR A HISTÓRIA NA MÃO!


No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a repressão da ditadura atacou com bestialidade extrema um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas  setembradas  de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas... para ficarem! Com  a certeza na frente, tentando tomar  a História na mão [1], marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal, característica da fase da industrialização, para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para omercado.
Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, doutores disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da etapa das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se antiautoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total. O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de  derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças, louças, livros, sim! [2].
E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu  corpo cheio de estrelas e tendo  el cielo como bandera [3].

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.
A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de  boom  econômico e terrorismo de estado.

O movimento estudantil de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com o de hoje (como muitos fazem, para depreciá-lo), quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto.
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COMPETIÇÃO OBSESSIVA
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A própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado.

Então, é tempo de os estudantes começam a se indagar sobre a validade de continuarem nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho, com enorme possibilidade de, adiante, baterem com o nariz na porta, à medida em que a crise do capitalismo for aprofundando-se e o descompasso entre a oferta de empregos para profissionais com formação superior e o contingente de candidatos dela dotados a buscarem empregos se tornar  cada vez maior, condenando a grande maioria à frustração e ao exercício de funções sem nada a ver com aquelas para as quais se capacitaram.

Desde a onda de ocupações iniciada em 2007 pela tomada da reitoria da USP em 2017, o movimento estudantil brasileiro vem tentando renascer. Mas, uma década depois, ainda está longe de atingir a amplitude e a consistência do de 1968, talvez por não haver tido como fermento a truculência e o obscurantismo de uma ditadura, contra a qual, necessariamente, os melhores seres humanos tomavam partido.
Mas, Zuenir Ventura está certo: 1968 foi um ano que não terminou. A revolução ainda voltará a identificar-se com as flores e as primaveras, depois deste inverno da desesperança que nos foi imposto.

Ainda veremos outras primaveras como as de Paris e de Praga, pois há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não aguenta viver indefinidamente sem solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se habitar sob o neoliberalismo, ainda mais na versão selvagem que Donald Trump agora nos tenta enfiar goela abaixo. Algo tem de mudar – e esta mudança precisa começar o quanto antes, para deter a marcha da insensatez enquanto ainda existe algo para salvarmos.
E, depois dos terríveis fracassos a que a esquerda domesticada, populista e reformista nos tem conduzido ao longo deste século, a esperança de volta por cima é encarnada pelas novas gerações, pela juventude que ainda é capaz de sonhar com uma sociedade igualitária e justa, e de lutar com todas as suas forças para concretizar este sonho. 

Temos de aprender a lição que a História, ultimamente, não cansa de nos ensinar: os que se contentam com um mínimo, acabam ficando sem nada. É hora de voltarmos a mirar o prêmio máximo, aquele pelo qual vale realmente a pena lutar: o fim do capitalismo. E é a juventude que pode e deve encabeçar esta luta.
Lembrando a grande música do Sérgio Ricardo:  se você não vem, eu mesmo vou brigar [4]

Lembrando o Edu Lobo dos melhores momentos:  vou ver o tempo mudado e um novo lugar pra cantar [5].

Lembrando o Raulzito, profeta da sociedade alternativa que nos serve de inspiração para transformarmos a sociedade como um todo a gente ainda nem começou [6].
[1] Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores"
[2] Caetano Veloso, "É Proibido Proibir"
[3] Gil, Capinam e Torquato, "Soy Loco Por Ti, América"
[4] Sérgio Ricardo, "Esse mundo é meu"
[5] Edu Lobo, "Ponteio"
[6] Raul Seixas, "Cachorro Urubu"