quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A conquista pelo estupro


Moema - Bernardelli
As mitocôndrias são elementos essenciais de grande parte de nossas células. E na grande maioria dos animais, apenas o DNA mitocondrial materno (mtDNA) é passado de geração para geração. Algo que jamais acontece com o DNA mitocondrial paterno.

Isso significa que o mtDNA de toda uma determinada população é derivado de uma única ancestral comum. O equivalente genético para determinar linhagens paternas é o cromossomo Y, exclusivamente masculino.

Essa pequena introdução serve apenas para destacar um trecho do livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de Reinaldo José Lopes. Segundo ele, as mais recentes pesquisas genéticas utilizando o mtDNA descobriram que “entre 20% e 30% dos brasileiros vivos hoje descendem de uma tataravó índia”. Mas:

Sabe quantos brasileiros, de qualquer cor de pele, carregam hoje um cromossomo Y indígena? Quase nenhum — com exceção dos que ainda se identificam como membros de uma tribo ameríndia, obviamente. Esse tipo de assimetria é típico de populações conquistadas em todos os tempos e em qualquer lugar do mundo, infelizmente. Os israelitas da Bíblia, os macedônios de Alexandre, o Grande, os mongóis de Genghis Khan e, óbvio, os portugueses de Martim Afonso de Souza sempre seguiram basicamente o mesmo figurino: numa operação de conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos ou escravizados, e as mulheres viram concubinas. Nenhum outro modelo é capaz de explicar o tamanho da diferença entre o que enxergamos nas duas rotas paralelas, a do mtDNA e a do cromossomo Y.

Ou seja, por séculos, grande parte da invasão europeia das terras brasileiras foi baseada no estupro de mulheres indígenas. E não apenas delas, claro.

Apetites de um consumo sem espírito


De volta ao artigo que Anthony Elliott publicou na Folha em 31/12/2017. Nele, o professor de sociologia da Universidade South Australia e da Universidade Keio, no Japão, discute um novo tipo de individualismo.

Mas um aspecto lateral abordado pelo texto é o que ele chamou de “consumo desigual”. Um exemplo:

...a ONU apontou num estudo da década de 1990 que prover educação básica para todos os cidadãos dos países em desenvolvimento custaria em torno de US$ 6 bilhões adicionais ao ano, enquanto os EUA sozinhos já gastavam espantosos US$ 8 bilhões por ano com cosméticos.

Mais “dados chocantes sobre gastos anuais (segundo o mesmo documento de 1998)”:

- US$ 11 bilhões com sorvete na Europa;

- US$ 17 bilhões com comida para animais de estimação na Europa e nos EUA;

- US$ 50 bilhões com cigarros na Europa;

- US$ 105 bilhões com bebidas alcoólicas na Europa;

- US$ 400 bilhões com narcóticos em todo o mundo.

Os números refletem não só uma obsessão cultural com consumo, prazer e hedonismo mas também apontam para uma ênfase individualista na satisfação dos desejos.

Em “O Capital”, Marx transcreve a seguinte frase de Nicholas Barbon, da obra “A Discourse on coining the new Money lighter”, de 1696:

O desejo implica a necessidade; é o apetite do espírito, que lhe é tão natural quanto a fome para o corpo (...) A maior parte [das coisas] retira seu valor do fato de satisfazerem as necessidades do espírito.

Caberia perguntar que espírito regeria apetites como os descritos por Elliott, não fosse o fato de que provavelmente já não lhes reste espírito algum.