12-14/8/2011, Jeff Sparrow, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
“O capitalismo”, Mark Fisher explicou há alguns anos, “é o que sobra, quando todas as crenças já não passam de rituais ou elaboração simbólica, e só restou o consumidor-telespectador, rastejando entre ruínas e relíquias”.
Não há mais descrição mais perfeita dos recentes acontecimentos na Inglaterra.
As agitações em Londres não são prova de “sociedade falida”. São, isso sim, com os pobres e oprimidos retomando a própria cidade, prova de sucesso, não de fracasso: conseguiram mostrar ao mundo inteiro a internalização do neoliberalismo e no que deu...
No século 21, nada há de anômalo em alguém passar a mão no que possa, nem em saquear o próprio bairro, para encher a sacola com bugigangas de consumo. Ao contrário: é exatamente assim que o sistema opera. É o que se deve prever que aconteça. É um dado, não é um vírus.
Atrás, nos anos 1970s, os pioneiros do neoliberalismo sabiam perfeitamente que estavam impondo uma doutrina insurgente, agressiva, para destruir identidades coletivas, fossem associadas à esquerda (o sindicalismo é o exemplo mais óbvio) fossem as mais antigas tradições precapitalistas.
“A economia é o método”, disse Thatcher, há muito tempo, “mas nosso objetivo é mudar a alma”.
As invocações dos Conservadores, que clamam por um “espírito da Blitz”, as baboseiras sobre a Grã-Bretanha do críquete e dos pubs aos domingos e das festas do interior são, portanto, tão hipócritas quanto reacionárias. Esse passado foi sistematicamente demolido pelo compromisso, nos dois partidos, de promoverem as forças do mercado como única forma possível de interação humana. Foi-se para sempre e não voltará.
Em 2011, os cidadãos neoliberais não se definem por classe ou etnia ou localidade ou crença religiosa. Ele ou ela é alguém que compra ou vende commodities: nem mais nem menos.
Assim, quando os vários moralistas de araque clamam para que nos unamos na indignação de 30 segundos contra um menino que a câmera surpreendeu quando assaltava passantes, podemos usar um dito de que Marx gostava muito: “Mude os nomes, e é o seu retrato”. O mais odioso ato dos ‘vândalos’ foi, sem tirar nem pôr, idêntico ao que fazem os que os condenam.
Considerem as imagens, infinitamente repetidas pela televisão, em que se veem alguns jovens que se aproximam de um menino visivelmente machucado e então, a pretexto de socorrê-lo, põem-se a mexer em sua mochila.
Não é o que se viu recentemente? Essas imagens são, sem tirar nem pôr, em microescala, o que fizeram os jornalistas empregados dos jornais de Murdoch.
Lembram-se de como jornalistas e editores de News of the World mostravam imagens de Sara Payne, a desesperada mãe à procura da filha Sarah já assassinada – ao mesmo tempo em que usavam o número de telefone que a mãe lhes dera, para ouvir, clandestinamente, o que a mãe dizia pelo mesmo telefone e apagar antigas mensagens da filha?
Os adolescentes que invadiram as ruas de Londres não estavam imitando Rebekah Brooks. Em vez disso, mostraram que pensam exatamente como ela sobre como funciona o mundo. Em sociedade em que todos procuram maximizar seus lucros individuais, sem qualquer simpatia pelos que sofrem, quem aja de modo diferente é otário, galinha morta.
“[O capital]” – já disse alguém – “Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia pôs a exploração aberta, cínica, direta e brutal”. [1]
O que o escândalo dos jornalistas que grampeiam telefones mostrou é que, para boa parte do establishment britânico, esse parágrafo poderia servir como manual operacional [serviria também perfeitamente como manual operacional para as Organizações Globo, em substituição ao patético “Manual de Conduta”, mentiroso do início ao fim, distribuído semana passada, ninguém sabe por que. Taí! Quem as Organizações Globo estão tentando enganar outra vez?! (NTs)].
Por um lado, Brooks e sua gangue de jornalistas só fazem falar de sobreviventes de atos terroristas, de veteranos mutilados e vítimas de crimes; pelo outro lado, vivem de violar sistematicamente todos os mais mínimos direitos das pessoas – a começar pelo direito civil básico de receber informação confiável – sem nem piedade nem vergonha.
Durante a semana passada, vimos os mercados em queda livre, fazendo sumir bilhões de dólares, com impactos catastróficos na vida real de pessoas reais. Alguém será processado e julgado? A simples sugestão gera editoriais e colunas jornalísticas indignados, como se alguém estivesse querendo processar o oceano pelos tsunamis ou que o planeta se retratasse publicamente por uma irupção vulcânica.
Ante esse autismo moral sistêmico, por que alguém espera que os adolescentes dos guetos apareçam e se confessem culpados? Como disse Paul Foot, nada corrompe tanto quanto o poder e esse corrompe completamente. Ninguém poderia culpar os pobres de Londres se fossem tão depravados quanto os mais ricos. Mas aqui está o xis da questão: os pobres de Londres não são tão depravados quanto os mais ricos.
Ah, sim, aconteceram coisas terríveis durante os tumultos. Mas não se pode esquecer que tudo começou em reação ao assassinato de Mark Duggan pela polícia.
Ao longo da última década, só fazem noticiar e noticiar que gente inocente morre todos os dias, a são mortes que não perturbam ninguém. E a invasão do Iraque, aventura criminosa que resultou em centenas de milhares de mortes? Algum dos responsáveis por aquelas mortes foi acusado e julgado? Nenhum deles. Não foram nem jamais serão acusados, julgados ou condenados.
O mesmo acontece com o governo da gangue de torturadores de Bush Filho. Se Barack Obama, o homem mais poderoso da terra, diz que olha para o futuro, não para o passado, automaticamente perdoando os torturadores, como se perdoar torturadores fosse normal, até recomendável, por que esperar que os pobres de Londres buscassem os tribunais, em vez das ruas, para fazer justiça a um deles, vítima da Polícia?
Nos últimos 30 anos, mais de 300 pessoas foram mortas por policiais na Inglaterra, sem que nenhum dos assassinos tenha sido condenado. Que diferença faria uma vítima a mais? Mas o povo de Tottenham protestou e, graças ao seu protesto, ficamos sabendo que a história oficial sobre a morte de Duggan era falsa.
Em outras palavras, o que distinguiu os agitadores não foi a amoralidade que se manifestou em alguns casos. Não há o que louvar nesses casos. Neles se vê o modelo padrão de conduta do capitalismo.
O que distinguiu o movimento dos jovens pobres nas ruas de Londres foi que, apesar de tudo e contra tudo, eles ainda exigem algum tipo de justiça.
A rebelião que se viu nas ruas de Londres foi confusa e contraditória por todos os ângulos que se a examine. E como poderia ser diferente?
“A crise”, ensinou Gramsci, “consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não conseguiu nascer; nesse intervalo aparece enorme varidade de sintomas mórbidos”.
Agora que caminhamos para outra recessão profunda, vivemos, é óbvio, tempos mórbidos. As ruas de Londres mostraram isso. Mas também mostraram lampejos de movimento muito saudável: a disposição para dar o troco.
Redecastorphoto
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