segunda-feira, 10 de maio de 2010

LULA: SANCHO E QUIXOTE NO "EL PAÍS"


Peça imperdível a entrevista de Lula ao jornal espanhol El País, algo que jamais seria feito por um grande jornal brasileiro. Devo esclarecer, antes, para nós que, ao contrário dos espanhóis, não temos tanta intimidade com o clássico D. Quixote, de Miguel de Cervantes. *(não se esqueça: click em "mais informações")

Sancho Pança é colocado como uma brincadeira dos nobres a governar a “Ilha da Barataria”. Com os conselhos de Quixote – “faze gala, Sancho, da humildade de sua linhagem, e não te pejes de  dizer que provéns de lavradores,  pois vendo que não te envergonhas, ninguém se porá a envergonhar-te. (…) – e sua honesta simplicidade,  ele “governa” com rara sabedoria.
Eis a entrevista, traduzida por Eloise De Vylder, do UOL Notícias:
“Prefiro o carnaval à guerra”. Lula coloca sua mão de operário sobre o meu joelho, num gesto de cumplicidade, de camaradagem, de evidente franqueza, porque essa é a sua força e sua convicção, a de se comportar de acordo com aquilo que é, da forma como os brasileiros verdadeiramente o veem. “Sou um deles, uma pessoa como eles”. Lula vem de onde eles vêm, fala como eles falam, “não sou um estranho no ninho”, e até chegar ao poder vestia-se como eles se vestem, “embora tenha trabalhado vinte e sete anos usando um macacão, nunca fiquei à vontade; depois de dois meses usando gravata não tive dificuldade para me acostumar a ela, é uma peça bonita”.
Lembrei-me da reflexão de Sancho Pança antes de se tornar governante da ilha Barataria [no clássico “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes]: “vistam-me como quiserem, pois qualquer que seja a roupa que ponham em mim, serei sempre o mesmo Sancho Pança!”. Porque o hábito não faz o monge, e Lula é Lula não importa o que esteja vestindo. “Disseram que eu teria de ir de fraque ao jantar no palácio com o rei da Espanha, mandei dizer a Juan Carlos que eu não usava isso, e muitos me criticaram aqui no Brasil, ‘que falta de elegância, de capacidade para exercer a presidência!’, até que o rei ligou e disse ‘venha como quiser’, fui de terno e gravata, porque não quero ser visto como um estranho pelo povo. O que acontece é que a liturgia do poder está toda preparada para nos distanciar do povo. Quando você é candidato, vai para todo lugar de camisa, cumprimentando as pessoas, mas uma vez que chega à presidência o colocam num carro blindado e você nunca mais vê o rosto dos cidadãos.”
Pergunto-me com o que as greves se parecem mais, com as guerras ou os carnavais. Luiz Inácio Lula da Silva forjou sua carreira política nas mobilizações populares, na agitação nas ruas e na luta em defesa dos direitos dos trabalhadores. Quase um milhão e meio de operários brasileiros entrarem em greve, liderados por ele, durante o ano de 1979, e a partir desta data, este combativo dirigente sindical empreendeu uma carreira política cheia de altos e baixos que o levaria, 25 anos mais tarde, à presidência da República.
“É notável que nem eu e nem meu vice, um empresário de sucesso, tenhamos diploma universitário”, afirma com um certo orgulho que irrita a oposição por causa da ambiguidade que a mensagem pode representar num país em que a educação é o objetivo fundamental do governo e o empenho necessário para acabar com as desigualdades e a pobreza. Mas o que ele quer dizer é que a democracia funciona no Brasil, que não são os méritos profissionais, acadêmicos, nem de qualquer outro gênero, que são decisivos para chegar ao poder, mas sim a vontade dos eleitores. Um poder que Lula deixará, pelo menos formalmente, no próximo mês de dezembro depois de oito anos de exercício, e do qual sai cercado de tanta popularidade que alguns esperam que ele saia levitando a qualquer momento, como fez o personagem de García Márquez em “Cem Anos de Solidão”, só que por consumir café brasileiro, que ele bebe o tempo todo com avidez, em vez de xícaras de chocolate.
“O momento mais extraordinário do poder é o período entre o dia da vitória e a tomada de posse. Logo dá para perceber que as coisas não são tão fáceis, que se está diante de uma série de obstáculos. Eu teria motivos de sobra para dizer que o poder me deu mais alegrias do que tristezas, porque poucas vezes na história do Brasil aconteceram coisas tão importantes como durante meu governo, mas sairei lamentando o que não pude fazer, a reforma do Estado, por exemplo. Não conseguimos dar mais agilidade ao Estado; desde que uma decisão é tomada e até que ela seja executada nos deparamos com quinhentos obstáculos em nome da democracia. Há o Congresso Nacional, com suas duas câmaras, a administração pública, os sindicatos, a Justiça, as questões ambientais, nas quais as ONGs são muito ativas… Ou seja, passam-se dois anos ou três antes que um projeto se cristalize. Faz falta um consenso que nos permita eliminar tantas dificuldades e atrasos. Não podemos renunciar à fiscalização, mas tampouco é aceitável utilizá-la como uma forma de impedir que se façam as coisas de que o Brasil necessita.”
Seu pragmatismo, seu jeito bonachão, seu bom senso, tudo nele faz lembrar o governador da ilha Barataria. Quase oito anos depois de ocupar a Presidência da República, suas maneiras pessoais, seu método de trabalho, seu ar decidido e brincalhão são os mesmos do jovem Lula que, fugindo da burocracia sindical, reunia-se durante as tardes no bar da Tia Rosa em São Bernardo do Campo, cidade onde ele ainda mantém a casa de sua família. Lá, com seus companheiros de luta, muito mais um grupo de amigos do que um comitê organizado, preparavam entre um copo e outro as mobilizações em defesa de um salário maior para os operários. Nenhuma ideologia alimentava suas ações, que em seguida receberam apoio, entretanto, dos movimentos de base católicos.
“O PT não teria existido sem a ajuda de milhares de padres e comunidades cristãs do Brasil, ele deve muito ao trabalho da Igreja, à teologia da libertação, aos padres progressistas. Tudo isso contribuiu para minha formação política, a construção do PT e minha chegada ao poder. Minha relação pessoal com a Igreja Católica foi e continua sendo muito forte, mas somos um país laico, tratamos todas as religiões com respeito”.
Seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, interrompe por um momento. “Este aqui era seminarista, ia ser padre, e abandonou tudo para entrar no PT, para trabalhar comigo”. Lula despacha alguns assuntos à sombra de um crucifixo gigantesco que se destaca sobre sua mesa de trabalho, enquanto eu fico imaginando que, para alguns petistas da época, a agitação política era também uma espécie de sacerdócio. A influência religiosa (“esta é a Igreja mais progressista da América Latina, provavelmente do mundo”) é evidente também no tratamento das leis de aborto no Brasil, ainda que o presidente busque a equanimidade. O Vaticano “tem uma atitude muito conservadora sobre esse ponto. No Brasil, o aborto é proibido, exceto em caso de violação da mãe. Eu, como cidadão, sou contra o aborto, e não acredito que nenhuma mulher seja favorável porque ele gera um grande sofrimento para quem o pratica. Mas como chefe de Estado, penso que se trata de uma questão de saúde pública. Devemos proteger as meninas que tentam abortar por conta própria colocando agulhas no útero e coisas assim. O Estado tem a obrigação de atender essas pessoas.”
Para os progressistas europeus, que adoram Lula, uma declaração desse gênero pode ser decepcionante, tanto quanto à declaração que ele mesmo deu, muitas vezes, afirmando que não se considera de esquerda. “Minha trajetória, meu perfil político, minha vida no sindicato, a criação do PT, caracterizam-me, sem dúvida, como um esquerdista. Mas o próprio PT é uma novidade na esquerda mundial. Nasceu contra todos os dogmas dos partidos marxistas-leninistas, que obedeciam fielmente à Rússia ou à China. No começo era algo parecido com uma torcida de futebol; um grupo de trabalhadores que, junto com o movimento social, a Igreja Católica e alguns intelectuais que haviam acreditado na luta armada e participado dela, decidiram criar um partido político. Não tínhamos na época um programa definido e nunca gostei que me rotulassem, menos ainda ao assumir a presidência. Um chefe de Estado não é uma pessoa, é uma instituição, não tem vontade própria todo o santo dia, mas tem que levar a cabo os acordos que sejam possíveis. Aprendi isso no poder e creio que foi bom para o Brasil. Não posso gostar de um presidente porque ele é de esquerda e não gostar de outro porque é de direita. Eu me dei bem com Aznar e com Zapatero, e tenho que me relacionar com Piñera no Chile da mesma forma que fiz com Bachelet. No exercício do poder, sou um cidadão, como diria…? Multinacional, multi-ideológico, não?”
Com seus olhos brilhantes e inquietos, quer minha aprovação para esse pragmatismo, e de repente se transforma num líder de torcida, a torcida brasileira; levanta-se, senta-se, volta a levantar-se, sorri primeiro, logo estremece, vira, ergue as sobrancelhas, busca a proximidade, o carinho, sou apenas mais um brasileiro, apenas mais um cidadão deste país que é capaz de contagiar a alegria, deste país com trezentos dias de sol por ano, deste país imenso, autossuficiente, pacífico, “do qual estamos tentando eliminar 50 ou 60 anos de atraso, de desconfiança, anos em que ninguém queria investir aqui. E por isso estamos construindo um capitalismo moderno, um Estado de bem-estar social. Quando entrei no governo, o Brasil não tinha crédito, não tinha capital de trabalho, nem financiamento, nem distribuição de renda. Que raio de capitalismo era esse? Um capitalismo sem capital. Resolvi então que era preciso primeiro construir o capitalismo para depois fazer o socialismo; é preciso ter o que distribuir para poder distribuir. Se o país não tem nada, não há nada para distribuir, e os empresários precisam saber que tem de pagar salários um pouco maiores para que as pessoas possam comprar os produtos que fabricam. Isso Henry Ford já dizia em 1912”.
by: tijolaço

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