Não é fácil a vida do governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso. As grandes derrotas que sofreu no último mandato, quando teoricamente tinha maioria parlamentar proporcionada por uma aliança com o PMDB, tiveram um custo pesado.
A última foi o fim do fator previdenciário, invenção do governo Fernando Henrique Cardoso para reduzir o déficit da Previdência sem ter que aprovar uma emenda constitucional. Não será fácil também a vida de Dilma Rousseff (PT), ou de José Serra – qualquer que se eleja sucessor de Lula – no Legislativo, independente do grau de experiência do vitorioso nas lides políticas e partidárias.
Os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foram os únicos no período da democratização que se beneficiaram de um alto grau de consenso, que veio de fora para dentro e tomou a casa de forma avassaladora, envolvendo setores conservadores e de centro no mesmo projeto ideológico. O projeto FHC para o país – havia um, de traçado neoliberal – foi produto de uma coesão entre os setores econômicos hegemônicos e a representação política de centro-direita.
Os governos Lula ocorreram sob o signo da dispersão no Legislativo e divisão no bloco dominante, mesmo no segundo mandato, quando dispunha de uma aliança formal com o PMDB. A estabilidade política desse período foi garantida também de fora para dentro do parlamento, mas dessa vez por obra de um forte apoio popular ao presidente e ao governo, e da neutralização de uma eventual oposição de setores do bloco hegemônico com políticas monetárias de perfil conservador e com políticas de crescimento que beneficiaram determinados setores produtivos. No Congresso, todavia, isso não se traduziu numa maioria reunida em torno de um projeto político único, mas exclusivamente num bloco de ocasião.
Lula, por ter um perfil menos conservador que os governos anteriores e por uma política bem-sucedida de distribuição de renda, produziu um paradoxo no cenário político-eleitoral. A incorporação de massas à sociedade de consumo vem desabrigando políticos de suas bases tradicionais. Uma parte dessas forças políticas mais conservadoras optaram por apoiar o governo para não sumir do mapa político. Na prática, no entanto, concorrem com o PT e os partidos mais à esquerda da base parlamentar pelo usufruto da popularidade do governo. Disputam eleitoralmente com políticos com afinidade ideológica, mas que são adversários do governo, e com políticos que são adversários ideológicos, mas aliados ao governo. Quando vai à votação um projeto de votação de apelo popular, como o de aposentadoria, a disputa pelo voto na base social torna qualquer coesão impossível na base parlamentar.
Não há um projeto político comum, mas uma realidade em que forças que emergiram, no passado, de uma realidade local dominada por chefes políticos, estão sendo colocadas em xeque. Há uma concorrência pelo voto de um eleitor antes fidelizado por práticas políticas tradicionais.
Vem ocorrendo, de forma simultânea, um início de autonomização das bases que emergiram à sociedade de consumo e estão formando lideranças próprias. Não apenas o partido de um presidente popular disputa esse voto com o político tradicional. Ao cenário político começam a ascender lideranças originárias da base social que antes sufragava políticos tradicionais. A emergência à sociedade de consumo confere cidadania à população antes marginalizada, entendida não apenas como possibilidade de comprar, mas também como consciência de plenitude de direitos políticos – eleger e ser eleito, representar e ser representado.
Os setores tradicionais da política vem perdendo gradativamente espaço nas bases que lhes garantiram, até agora, serem eleitos e se tornarem elites políticas – e esse é um processo político que dificilmente se extinguirá com o final do governo Lula. A estratégia do PT, de abrir mão de candidaturas aos governos de Estado para reforçar a sua base parlamentar, de alguma forma reconhece que o descompasso entre o que ocorre nas bases e a manutenção de uma elite parlamentar de origem tradicional torna muito difícil a governabilidade, pela dificuldade de coesão em torno de um projeto comum. Na verdade, é quase impossível um partido com alguma veleidades à esquerda conseguir um projeto comum com esses setores tradicionais.
Os setores tradicionais alinhados à oposição disputam o mesmo espaço e podem até prosperar, na disputa pelo poder político, se voltarem a ser governo. A divisão na sua base, todavia, terá se acentuado após a disputa eleitoral de outubro. Outros atores estão ingressando e interferindo nos redutos da política tradicional – e isso afeta não apenas a base do PMDB, que é teoricamente governista, mas do DEM e até de setores do PSDB alinhados a práticas políticas tradicionais. Independentemente do partido, é um tipo de relação com o eleitorado que está sob questão. Os políticos tradicionais que conseguirem se eleger em outubro terão um peso menor do que têm nesse Congresso. Isso não significa exclusão de um grupo ideológico, mas condições para emergência de um setor conservador mais moderno.
by: Maria Ines Nassif
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