É inconcebível que em pleno século XXI, presbíteros da Igreja Católica voltem a práticas vergonhosas, que deviam constar apenas de uma história passada e lamentável, quando desempenhavam o papel de cabos eleitorais e lacaios do vil fisiologismo partidário. Algo deve estar errado na formação básica desses presbíteros bem como na sua formação continuada ao longo do exercício de seu ministério pastoral. Esses presbíteros estão servindo de inocentes úteis nas mãos daqueles que se opõem frontalmente às mudanças estruturais que visam abrir novos canais para a ascensão social da maioria da população de menor poder aquisitivo. Essa chantagem deve ser desmascarada publicamente. O artigo é de Raimundo Caramuru Barros.
Servus Mariae (Raimundo Caramuru Barros)
RELAÇÕES ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL: COOPERADORES PARA O DESENVOLVIMENTO E NÃO LACAIOS DO FISIOLOGISMO PARTIDÁRIO
Durante a novena que prepara a festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, parece-nos consentâneo e relevante parar para refletir sobre as verdadeiras e legítimas relações entre Igreja e Estado na tradição deste país.
No período do Brasil Colônia e do Brasil Império (1500 a 1889) o catolicismo era a religião oficial do Estado Brasileiro em decorrência da herança recebida de Portugal que firmara com a Sé da Igreja Católica em Roma a Lei do Padroado. Por esta Lei eram reguladas as relações entre Lisboa e o Pontificado Romano.
Durante a novena que prepara a festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, parece-nos consentâneo e relevante parar para refletir sobre as verdadeiras e legítimas relações entre Igreja e Estado na tradição deste país.
No período do Brasil Colônia e do Brasil Império (1500 a 1889) o catolicismo era a religião oficial do Estado Brasileiro em decorrência da herança recebida de Portugal que firmara com a Sé da Igreja Católica em Roma a Lei do Padroado. Por esta Lei eram reguladas as relações entre Lisboa e o Pontificado Romano.
Na década de 1870, o Conselho do Império brasileiro mandou encarcerar e endossou a condenação dos Bispos Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira (Olinda – Recife) e Dom Antonio de Macedo Costa (Belém do Pará) por uma questão de consciência sustentada por esses prelados sobre os direitos da Igreja em uma questão de natureza nitidamente religiosa. Ficou então patente que a Igreja no Brasil Imperial tornara-se tão somente uma Repartição Pública do Estado Brasileiro. Por isso, a primeira Constituição Republicana de fevereiro de 1891, com pleno assentimento da Igreja Católica, estabeleceu a separação entre Igreja e Estado. Durante toda a primeira República (1891 a 1930) e do primeiro período da era Vargas (1930 a 1945), as relações entre Igreja e Estado foram pautadas pelo respeito mútuo e pela cooperação em assuntos de interesse comum.
Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, na qualidade de arcebispo de Olinda - Recife de 1916 a 1921, de arcebispo do Rio de Janeiro de 1922 a 1930 e de Cardeal de 1930 a 1942 liderou as relações entre Igreja e Estado durante todo esse período. Sua iniciativa em persuadir o Presidente Washington Luís em 1930 a renunciar espontaneamente à Presidência da Republica, salvou o Brasil de uma iminente guerra civil que, além de sanguinolenta, arriscava provocar a fragmentação da unidade nacional. Desta maneira prestou um serviço inestimável a toda a nação.
Dom Leme sempre resistiu com determinação a todas as iniciativas visando à criação de um Partido Católico. Criou, porém, a Liga Eleitoral Católica com a missão exclusiva de traçar critérios para orientar os fiéis na escolha de candidatos. Dizia-se que a Igreja situava-se “fora e acima dos partidos”. Em coerência com sua missão pastoral, este Cardeal conseguiu de Getúlio o compromisso de sempre escutar a Igreja em decisões relativas a assuntos que envolvessem a fé e a moral.
Neste período a Igreja dedicou-se à sólida formação de seus futuros presbíteros (sacerdotes) em instituições denominadas de seminários, muitos dos quais se tornaram verdadeiros centros de cultura humanista.
Nestas instituições os candidatos ao sacerdócio eram amplamente informados sobre a “questão religiosa” que acirrara as relações entre a Igreja e o Estado brasileiro na década de 1870 e a partir desse fato eram vacinados contra qualquer envolvimento com partidos políticos. Ao longo do tempo houve exceções. Mas, considerando o conjunto do clero é possível afirmar que esses casos foram percentualmente raros.
A ocorrência desse tipo de engajamento político - partidário limitou-se em grande parte a sacerdotes que se candidataram a cargos eletivos e/ou militaram em partidos políticos com as melhores das intenções, tais como evitar o triunfo do partido comunista em território brasileiro. Alguns deles apoiaram ostensivamente partidos políticos que se apresentavam como instrumentos eficazes para combater o comunismo ateu. Os bispos os afastaram de suas funções pastorais e buscaram paternalmente dissuadi-los desse tipo de engajamento mais próprio para ser exercido por fiéis leigos. Ao mesmo tempo os bispos criaram condições para que esses presbíteros retornassem às suas funções pastorais. Em todo caso esses sacerdotes foram sistematicamente barrados de acesso ao episcopado até que ao longo de muitos anos comprovassem estarem curados deste desvio de função.
Do ponto de vista do episcopado desenvolveu-se e consolidou-se ao longo de todo esse período até a intervenção militar de 1964 uma relação de cooperação para o desenvolvimento entre a Igreja hierárquica e o Estado Brasileiro. Esta relação se traduziu primeiramente nos programas de desenvolvimento regional, tais como Bacia São Francisco, Semi – árido Nordestino, Vales Úmidos, Bacia do Rio Doce, Vale do Paraíba, Amazônia, etc. Este tipo de relação foi assumido igualmente no tocante a programas setoriais específicos, tais como: na criação e operacionalização do Movimento de Educação de Base – MEB, e no esforço concentrado de sindicalização rural na primeira metade da década de 1960 com a criação pela Igreja das diversas Frentes Agrárias Regionais engajadas nesta sindicalização.
A partir da década de 1960 o panorama modificou-se radicalmente em decorrência de dois acontecimentos que conduziram as relações entre a Igreja e o Estado brasileiro a situar-se em um novo contexto: o Concílio Vaticano II e a intervenção militar de 1964. O Concílio Vaticano II de 1962 a 1965 desencadeou um processo de profunda renovação da Igreja Católica, coroando um movimento iniciado em meados do século XIX que visava a uma retomada e aprofundamento das fontes bíblicas e da tradição dos Padres da Igreja que nos primeiros séculos da era cristã receberam a revelação divina mais diretamente do Colégio dos Apóstolos.
Entre outras dimensões este Concílio destacou o Desígnio Divino de Salvação; o mistério da Igreja como um mistério de comunhão com a Trindade e entre seus membros; a natureza peregrina da Igreja como sinal sensível e eficaz do Reino de Deus presente na caminhada da humanidade através da história; as relações de serviço recíproco entre a Igreja e a Sociedade humana, em que a Igreja em coerência com sua missão divina procura promover a dignidade da pessoa humana, da comunidade humana e da atividade humana; e ao mesmo tempo esta mesma Igreja reconhece que os progressos da comunidade humana no plano da família, da cultura, da atividade econômica e social, bem como da política nacional e internacional contribuem de maneira relevante para que ela possa desenvolver em maior amplitude a sua missão de acordo com o Desígnio divino. As encíclicas “Mater et Magistra” e “Pacenm in Terris” do Papa João XXIII; “Populorom Progressio” de Paulo VI, bem como a Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi” desse último Pontífice, detalham, ilustram e fazem avançar as diretrizes fundamentais emanadas do Vaticano II.
A Igreja no Brasil notabilizou-se como a Igreja que melhor absorveu o esforço renovador deste Concílio, bem como aquela que mais rápida e profundamente implantou suas diretrizes em todo o território nacional.
Dentro da amplitude desta renovação, no tocante às relações entre Igreja e Sociedade, duas dimensões merecem destaque: a promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana e a solidariedade indispensável e prioritária para com as camadas menos favorecidas da sociedade brasileira, marcada ao longo dos últimos cinco séculos de sua história por gritantes desigualdades sociais.
Com respeito à intervenção militar de 1964 dois fatores merecem realce. O primeiro foi extremamente benéfico para a Igreja, na medida em que os vinte anos de Governos militares (1964 a 1985) erradicaram o fisiologismo partidário que enxovalhava setores específicos de presbíteros que na sua atuação recorriam a essas práticas inaceitáveis.
O segundo destaque diz respeito à atuação da Igreja renovada pelo Concílio Vaticanos II , quando a partir de julho de 1968, a linha dura dentro das Forças Armadas conseguiu assumir uma influência dominante e ao longo do Governo do Presidente Médici institucionalizou a prática da tortura de maneira arbitrária e indiscriminada. Neste mesmo período a política econômica sob a liderança de Delfim Neto promoveu um modelo de acentuada concentração de renda, deixando as camadas de menor poder aquisitivo totalmente desprotegida na Rua da Amargura. À luz do Vaticano II, a Igreja no Brasil liderada por insignes prelados e com o suporte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil enfrentou o Estado Brasileiro nas duas frentes: Defesa e promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana em face da arbitrariedade do sistema de torturas; Promoção da causa da população de menor poder aquisitivo, ameaçada pelo modelo avassalador de concentração de renda. Nesta oportunidade, a Igreja era a única Voz que assumia posição em nome daqueles e daquelas que tinham sido cassados do seu direito de expressão. Com o fim do período de intervenção militar e da inauguração da volta do país a um regime de democracia civil, a Igreja continua dentro de um novo contexto com a missão que lhe foi confiada pelo Concílio Vaticano II e pelos documentos Pontifícios que retomaram, desenvolveram e ampliaram as diretrizes deste Concílio.
Em primeiro lugar é inconcebível que em pleno século XXI, presbíteros da Igreja Católica que congrega mais de três quartos da população brasileira voltem a práticas vergonhosas, que deviam constar apenas de uma história passada e lamentável, quando desempenhavam o papel de cabos eleitorais e lacaios do vil fisiologismo partidário. Algo deve estar errado na formação básica desses presbíteros bem como na sua formação continuada ao longo do exercício de seu ministério pastoral. Mais recentemente esses presbíteros na sua ingenuidade política estão servindo de inocentes úteis nas mãos daqueles que se opõem frontalmente às mudanças estruturais que visam abrir novos canais para a ascensão social da maioria da população de menor poder aquisitivo. Esses presbíteros não perceberam a chantagem armada pelos paladinos do “status quo”, que se camuflaram em defensores da vida, e em seguida num golpe falacioso acusaram caluniosamente de inimigos da promoção da vida todos aqueles dedicados à elevação social das classes menos favorecidas. Desta maneira foi subtraída do debate a prioridade a ser outorgada aos pobres.
É de capital importância que essa chantagem seja publicamente desmascarada e que as boas intenções desses presbíteros sejam orientadas não para sustentar as forças que desejam a manutenção atual das estruturas injustas e discriminatórias, mas em benefício da maioria da população de menor poder aquisitivo. Cura-se assim uma chaga multissecular que corrói a estrutura social da nação. Promove-se ao mesmo tempo o exercício universal da cidadania e confere-se maior consistência ao tecido da verdadeira e legítima democracia no País.
À luz do Magistério da Igreja, as relações entre Igreja e Estado Brasileiro devem ser antes de tudo a de cooperadores para o desenvolvimento como sobejamente apontado pelos Documentos conciliares e Pontifícios, e mais particularmente explicitado pela Exortação Apostólica de Paulo VI “Evangelii Nuntiandi” de 8 de dezembro de 1976. O tema da Campanha da Fraternidade de 2011 sobre “Fraternidade e a Vida no Planeta Terra” é uma oportunidade ímpar para definir de maneira mais atualizada esta cooperação em função das novas exigências de um desenvolvimento denominado como sustentável, na medida em que confere prioridade à vida e não à matéria inorgânica que deve ficar sujeita à preciosidade inestimável do fenômeno sublime da vida e da solidariedade que deve existir entre todos os seres vivos que povoam o Planeta, dos mais ínfimos organismos até a dignidade ímpar do ser humano, chamado a participar como filho da comunhão de vida das três Pessoas divinas.
É preciso levar em conta que o conceito de vida à luz da Revelação divina é um conceito de natureza analógica, como soe acontecer com tantos outros conceitos da verdade revelada. Por isso, ele engloba um vasto leque de diversos níveis de vida em toda a obra da criação, bem como na obra da Redenção, ambas protagonizadas pela segunda Pessoa da Trindade, a Palavra que se fez carne e habitou entre nós (Evangelho de João, capítulo primeiro).
Esta Palavra encarnada tornou-se o Primogênito de todos os seres criados, pois aprouve a Deus fazer Nele habitar toda a plenitude da divindade e reconciliar por Ele e para Ele todos os seres tanto terrestres como celestes, estabelecendo a paz pelo sangue de sua cruz (Carta aos cristãos de Colossos, capítulos 1 e 2).
(*) Raimundo Caramuru Barros é mestre em economia pelo Boston College, EUA. Foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009). Publicou livros e artigos sobre a Igreja no Brasil, entre eles, Dom Helder: Artesão da Paz, uma publicação do Senado Federal, volume 120.
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