Marcos Dantas
“Se Hitler invadisse o inferno, eu me aliaria ao demônio” – assim falou Churchill, o grande líder britânico da Segunda Guerra Mundial, quando lhe questionaram a aliança firmada com Stálin, o grande líder soviético na mesma Guerra, aliança esta decisiva para a derrota da barbárie nazista.
Bem que Hitler desejava muito aliar-se aos britânicos. Lamentou explicitamente até o fim da Guerra e da própria vida que os seus “primos” raciais não o tivessem “compreendido”. Não que Hitler e Stálin não tenham, em um dado momento, firmado um pacto de aliança. Mas ambos sabiam que era um pacto de ocasião, a ser rompido na primeira oportunidade, quando um lado, ou outro se julgassem preparados para fazê-lo. Foi rompido por Hitler mas, por efeito, entre tantos outros fatores, também desse pacto, a Guerra acabou vencida por Stálin e seus aliados capitalistas democráticos, Churchill e Roosevelt.
Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos eram potências capitalistas. A União Soviética, potência comunista emergente. Capitalismo e comunismo eram inimigos viscerais. Mas o comunismo e o capitalismo democrático souberam se unir contra a besta nazista. O historiador Eric Hobsbawm, em seu A Era dos Extremos: o Breve Século XX, nos dá a explicação:
“as linhas divisórias cruciais nesta guerra civil não foram traçadas entre o capitalismo como tal e a revolução social comunista, mas entre famílias ideológicas: de um lado, os descendentes do Iluminismo do século XVIII e das grandes revoluções, incluindo, claro, a russa; do outro, seus adversários [...] A Alemanha de Hitler era ao mesmo tempo mais implacável e comprometida com a destruição dos valores e instituições da ‘civilização ocidental’ da Era das Revoluções, e mais capaz de levar a efeito o seu bárbaro projeto [...] o antifascismo, por mais heterogêneo e transitório que fosse sua mobilização, conseguiu unir uma extraordinária gama de forças. E o que é mais, essa unidade não foi negativa, mas positiva, e em certos aspectos duradoura. Ideologicamente, baseava-se nos valores e aspirações partilhados do Iluminismo e da Era das Revoluções: progresso pela aplicação da razão e da ciência; educação e governo popular; nenhuma desigualdade baseada em nascimento ou origem; sociedades voltadas mais para o futuro que para o passado” (Companhia das Letras, 2ª Ed., pgs. 146,147, 174).
Em suma, por mais antagônicos que fossem – e eram –, o liberalismo ocidental e o comunismo soviético tinham origem numa mesma matriz ideológica, política, ontológica, eram ramos divergentes de um mesmo frondoso tronco: o Esclarecimento racional, laico, republicano, universalista, igualitarista e progressista que veio transformando o mundo desde os tempos de Cromwell, Jefferson e Robespierre. O nazismo era a negação das grandes promessas do projeto Iluminista, a negação da igualdade entre os povos e entre as classes, a recusa do Estado de Direito, o escárnio dos direitos individuais e sociais dos homens e das mulheres.
Não se trata neste artigo, de discutir se aquelas promessas se cumpriam ou não. Liberais e comunistas se acusavam mutuamente de traí-las. Mas nisto, também, reafirmavam seus compromissos com um programa de liberação ou desalienação da humanidade. O nazismo representava o retorno, ainda que num estágio superior, ao obscurantismo e à barbárie. A interrupção das Luzes. Uma nova escuridão. Contra isso, apesar de suas profundas diferenças e mútuas desconfianças, uniram-se Churchill, Roosevelt e Stálin.
E venceram.
Nas últimas décadas, sob novas formas e por um amplo conjunto de motivos que não vem ao caso discutir aqui, o obscurantismo renasceu das trevas. Atende agora pelo nome “fundamentalismo religioso”. Ele pode ser muçulmano, pode ser católico, pode ser cristão sob outras denominações – em hipótese alguma significando dizer que já conquistou ou venha a conquistar a maior parte dos seguidores dessas religiões. De fato, recruta o grosso dos seus adeptos, como o nazismo recrutava, na grande massa popular pobre, posta nas fímbrias do progresso, por isto ressentida, sobretudo ignorante. No caso dos muçulmanos, tem sido capaz de levar centenas de jovens à auto-imolação espetacular, fornecendo bons pretextos para reforçar os aparatos de guerra, segurança, espionagem e repressão das potências capitalistas, sobretudo dos Estados Unidos. No caso dos cristãos, ainda não chegou a tanto, mas já se mostra capaz de agir ordenada e fortemente na recuperação de parte do terreno perdido para dois séculos de avanços seculares, no mundo e também no Brasil.
Estamos assistindo no Brasil, neste momento, a um debate inimaginável neste século XXI – em que pese este século estar sendo capaz de se revelar cada vez mais surpreendentemente inimaginável. O nosso Estado Democrático de Direito está correndo o risco de proporcionar-nos uma eleição decidida pelo obscurantismo e irracionalidade. Sabemos que a ainda então minoria nazista chegou ao poder, na Alemanha, também através dos mecanismos democráticos. Por isso, não está sendo possível entender que democratas, republicanos, lídimos herdeiros e formuladores do melhor das Luzes, queiram agora, no Brasil, chegar ao poder com a ajuda das Trevas.
Está acontecendo nas grandes periferias urbanas e rurais brasileiras, uma insidiosa, granular, sussurrante campanha fundamentalista contra a candidata do PT, Dilma Rousseff. Multiplicam-se relatos assustadores de conversas de “pastores” com seus crédulos, dizendo coisas como “a Dilma vai fechar a Igreja”. Isso dito a alguém, por exemplo, que, nos últimos oito anos, graças a programas do Governo Lula, comprou e mobiliou casa, tem emprego, melhorou de vida material. Mas não melhorou cultural e educacionalmente (e isso também é culpa do governo Lula!). Acredita piamente no “pastor”. E vai votar numa mentira porque o debate eleitoral reduziu-se à agenda obscurantista, quando teríamos muito o que debater sobre educação, infra-estrutura, política externa etc.
Em resposta, circulam na internet panfletos acusando Serra de já ter fechado templos evangélicos em São Paulo. Isto porque a cidade de São Paulo faz cumprir suas leis que protegem o cidadão da agressão sonora desses templos que teimam em desrespeitar o espaço público e o direito dos outros à paz e tranqüilidade no resguardo do lar. Se Serra, por ventura, tem algo a ver com isso, merece elogios, não críticas.
Que evangélicos, carismáticos e quejandos façam o que estão fazendo, é de lamentar mas não admira. O que admira e muito preocupa é o oportunismo eleitoral de uma parte da política laica e republicana que parece não se lembrar da lição de Churchill. O Brasil civilizado tem muito ainda a construir, inclusive para deter esse avanço de volta à barbárie, o que só logrará se incorporar à modernidade educacional e cultural, além da material, aquela massa popular que permanece vulnerável às prédicas medievais. Uma eleição é sempre o momento de a sociedade discutir os melhores caminhos para seguir avançando, avaliar e criticar o que já foi feito, debater suas alternativas. É natural, numa sociedade de classes, a diferença programática. Mas essa diferença se manifesta num mesmo campo histórico. Os fundamentalistas não podem ser aceitos nesse debate, porque, por definição e por suas práticas, agem pela ignorância, para a ignorância, com a ignorância.
Ora, Serra e Dilma, por formação, histórias de vida, lutas políticas, não têm posições assim tão distintas em relação a temas como “aborto”, “homossexualidade” e similares. Ninguém pode ser “a favor” do aborto, salvo talvez, algumas feministas radicais e egoístas; ninguém apóia a discriminação por opção sexual, salvo energúmenos. O que se pede – e, com certeza, ambos os candidatos não discordam, exceto talvez em detalhes – são políticas públicas e regras jurídicas que acolham a realidade já vivida em nossa sociedade. Estes são debates seculares e racionais, e nestes termos precisam e podem ser tratados por ambos os candidatos.
Faz-se necessário, neste momento, que cabeças sensatas de ambos os lados abram canal de comunicação visando recolocar o debate eleitoral nos trilhos da razão. Seria bom que ambos os candidatos manifestassem mútua solidariedade diante de ataques falsos e estúpidos, demarcando com clareza a agenda de discussão que interessa, de fato, ao Brasil moderno.
Eles têm muito o que divergir aí, na política educacional, na política de saúde, no papel do Estado, nas relações internacionais, nas prioridades de infra-estrutura, no tratamento ao meio-ambiente, nas reformas política e tributária etc. E devem dizer à sociedade que são as definições sobre esses pontos que conduzirão o Brasil para o futuro, cabendo à maioria político-eleitoral decidir o caminho que prefere, para os próximos quatro anos, sempre rumo ao esclarecimento e ao progresso.
Se o debate prosseguir agendado pelo atraso, ganhe quem ganhar, estará chocando o ovo da serpente.
Marcos Dantas é professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.
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