Ia escrever um post descascando a Veja, mas perdi o interesse no meio. Saiu coisa bem melhor esse fim de semana para ler, e o aborto é uma questão séria demais para eu ficar fazendo piada de polvo. Mas como a capa da revista de hoje é um panfleto que vai circular amplamente, e terá um efeito político, não dá para deixar passar.
Todo mundo lembra da capa da Veja da semana passada. Uma página em branco em protesto contra a ausência de debates sobre questões substantivas. Ótima capa, inclusive por ser uma capa da Veja sobre capas da Veja: todo mundo esperando qual seria o escândalo da última eleição, e vem um apelo à civilidade. Entre as propostas defendidas pela revista, várias razoáveis.
Por incrível que pareça, o editorial dessa semana é sobre a capa da semana passada. Diz que foi ótimo ter segundo turno, porque agora o país vai poder discutir aquelas coisas todas sobre carga tributária, sobre reforma da previdência, sobre educação, sobre saneamento. E aí, então, a capa dessa semana foi sobre carga tributária? Foi sobre saneamento? Afinal, que questão a Veja acha que faltou ao debate para qualificá-lo?
Ou seja, depois da bela capa sobre debates qualificados, a Veja publica spam impresso. Vamos lá, o que vocês acham que essa capa está dizendo? Que a Dilma tem temperamento vacilante? Que o PT precisa deixar de ser uma zona e organizar melhor seu programa? Que foi besteira propor o PNDH?
Ou que ela vai matar criancinhas, como disse a grande intelectual, sem dúvida nenhuma um exemplo de virtude, Monica Serra?
Mas aí vale dizer, o PT realmente já escreveu em seu programa o seguinte:
Pelo fato de a clandestinidade pôr em risco a vida de milhões de mulheres, o aborto se torna um problema de saúde pública. A cada ano, pelo menos 1 milhão de brasileiras fazem um aborto ilegal. A imensa maioria acontece em clínicas de fundo de quintal, sem nenhuma higiene ou segurança. Nessas condições, as complicações decorrentes de um aborto malfeito configuram a quarta causa de morte materna no país, com média anual de 300 óbitos. Só os casos de hemorragia, hipertensão e diabetes matam mais. É o que os médicos classificam de “aborto inseguro”. Mas a legalização pura e simples do aborto não é uma questão simples. Para além dos aspectos religiosos, morais e científicos, o sistema público de saúde brasileiro não tem a menor condição de realizar a contento as cirurgias de curetagem na quantidade que seria exigida caso elas fossem legalizadas sem nenhuma precondição. Faltam infraestrutura adequada e dinheiro. O custo de uma curetagem é de 180 reais. Multiplique-se isso por, no mínimo, 1 milhão de cirurgias, e se tem um rombo ainda maior nas contas estatais. Sai mais barato fazer campanhas educativas em favor da contracepção.
Falem a verdade, vocês só notaram que não foi o PT que escreveu isso por causa da preocupação com o custo fiscal, não foi?
Pois é, menti pra vocês. QUEM ESCREVEU ISSO FOI A VEJA. Ela defendeu isso ESSA SEMANA. É A MATÉRIA SEGUINTE à que justifica a capa com a Dilma, que, aparentemente, anda conservadora demais para os colunistas da Veja. É, aliás, uma matéria boa.
Isso mostra o quão hipócrita é a utilização eleitoral de um tema tão complexo quanto o aborto. Ninguém duvida, por um segundo, que Fernando Henrique Cardoso, no mínimo por consideração à sua falecida esposa, Dona Ruth, ou José Serra, ou, a propósito, Dilma Rousseff, entendam a dramaticidade do problema. Mas esse é o ponto do debate em que estamos.
Porque a Veja não deixou a capa ali, mas resolveu também publicar a matéria? Porque a direita brasileira mainstream não quer aceitar a turma que criou os spams como seus amigos de festa, porque a direita brasileira gosta do verniz que lhe aplicou o PSDB da USP e da Casa das Garças.
Cá entre nós, se esse verniz se perder, será ruim pra todo mundo: ele fez toda a diferença do mundo garantindo que o governo FHC fosse o governo FHC, não o governo Figueiredo rebombinado. A direita brasileira quer usar os spammers para vencer, mas ela não quer ser Texas Connection, ela quer ser Manhattan Connection: ela quer fazer campanha como Sarah Palin, mas manter o cool factor de Bill Clinton.
Não sei se dá, não. Mas é óbvio que nenhuma questão importante deveria ser decidida por seu efeito nocool factor de quem quer que seja.
O espetacular, realmente, é que a mesma revista que fez essa capa e escreveu essa matéria na mesma edição diz que, no fundo, quer é que o PT esclareça sua posição.
Por fim:
O PT errou em propor medidas de regulamentação do aborto no escopo do PNDH, e se for verdade que isso já estava lá no PNDH do PSDB isso não faz nada menos errado: o PSDB também errou. O aborto é uma questão muito complexa, e devemos construir o consenso a respeito dele de baixo para cima, culminando no parlamento, que foi feito para esse tipo de coisa. Lembremos que o aborto na Inglaterra, por exemplo, é um tema bem menos controverso do que nos EUA, porque no Reino Unido ele foi implementado por maioria parlamentar, enquanto que nos EUA o foi por decisão da suprema corte.
Por esse motivo, acho inteiramente razoável que Dilma Rousseff, que pretende ser presidente da república, modere sua posição sobre isso, que já era, aliás, muito mais moderada do que se admite. E, mesmo se não tivesse mudado, você pode ter essa opinião e não achar que cabe a um presidente da república defendê-la, uma vez que sua função nào é abrir discussões, é fechar com uma decisão as que já chegaram a um certo grau de consenso.
Bem disse o Alon no Twitter (não achei o link, se alguém achar, agradeço), esse episódio todo revelou o Brasil profundo que muitas vezes passa ao largo das discussões entre as elites políticas. Vamos ter que começar esse diálogo de novo, dessa vez com o Brasil profundo como participante. Meu conselho é que não o subestimemos intelectualmente.
O que seria realmente triste seria essa questão decidir uma eleição que deveria marcar o início de um ciclo virtuoso de nossa história. Começar a ser primeiro mundo pelo Bush, sem nunca ter tido o Jefferson ou o Lincoln, vai ser foda.
By: Na Prática a Teoria é Outra, via comtextolivre
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