segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O custo intangível do fracasso europeu


José Luís Fiori, Valor Econômico

“Se fosse possível hierarquizar sonhos, a criação da União Europeia estaria entre os mais importantes do século 20. Depois de um milênio de guerras contínuas, os estados europeus decidiram abrir mão de suas soberanias nacionais, para criar uma comunidade econômica e política, inclusiva, pacífica, harmoniosa, sem fronteiras, sem discriminações e sem hegemonias. Um verdadeiro milagre, para um continente que se transformou no centro do mundo, graças a sua capacidade de se expandir e dominar os outros povos, de forma quase sempre violenta, e muitas vezes predatória.” [JLF: ‘Os sinos estão dobrando’, Valor, junho de 2008]

Os sinais de desagregação são cada vez maiores e frequentes, e já não cabe dúvida que o processo de “unificação europeia” entrou num beco sem saída. ..
É quase certo o calote da dívida grega, e é cada vez mais provável a ruptura da zona do euro, que teria um efeito em cadeia, de grandes proporções, dentro e fora do Velho Continente. Ao mesmo tempo, a vitória da França e da Inglaterra, na Líbia, aumentou a divisão e aprofundou o cisma alemão dentro da Otan. Por outro lado, os governos conservadores europeus estão em queda livre, e sua alternativa social democrata não tem mais nenhuma identidade ideológica. Os intelectuais batem cabeça e a juventude busca novos caminhos um pouco sem rumo. O próprio ideal da unificação europeia tem cada vez menos força, entre as elites e dentro de sociedades em que se dissemina a violência e a xenofobia. Parece iminente o fracasso europeu.

No final do século 20, enterraram o socialismo, e agora estão jogando na lata do lixo seu cosmopolitismo liberal.

Em tudo isso, chama a atenção que o avanço da catástrofe anunciada venha sendo acompanhado por uma consciência cada vez mais nítida e consensual a respeito das causas últimas, econômicas e políticas, da própria impotência europeia. Do lado econômico, todos reconhecem a falta de um Tesouro europeu com capacidade unificada de tributar e emitir dívidas, junto com um BC capaz de atuar como emprestador de última instância, em todos os mercados, garantindo a liquidez dos atuais títulos soberanos nacionais que deveriam ser extintos e substituídos por um único título público unificado, para toda a zona do euro. E quase todos já reconhecem a impossibilidade de uma moeda soberana e de um BC eficaz, sem um estado que lhes dê credibilidade e poder real de ação, em particular nas situações de crise. Uma posição que só poderia ser cumprida, neste momento, pela Alemanha, que não quer ou não pode fazê-lo, ou por um estado central que ninguém aceita.

Do mesmo forma, pelo lado político, o aumento da fragilidade e da fragmentação da Europa vem sendo atribuído pelos analistas, de forma quase consensual, ao fim da guerra fria e à unificação da Alemanha, junto com o aumento descontrolado da UE e da Otan, que passaram da condição de projetos defensivos, para a condição de instrumentos de conquista territorial e expansão da influência militar e econômica do ocidente, dentro da Europa do Leste, e já agora, também, na Ásia Central e no Norte da África. O alargamento em todas as direções, da UE e da Otan, aumentou suas desigualdades sociais e nacionais e reduziu o grau de homogeneidade, identidade e solidariedade que existia no início do processo de integração, quando ele era tutelado pelos EUA, e tinha um inimigo comum, a URSS.

Agora, quando os analistas da crise europeia se dedicam a traçar cenários futuros, quase todos calculam o tamanho da desgraça em termos estritamente econômicos, em bilhões e trilhões de euros. E pouco se fala dos custos intangíveis do fracasso europeu no campo das ideias, dos valores e dos grandes sonhos e símbolos que movem a humanidade. Um verdadeiro impacto atômico sobre duas pilastras fundamentais do pensamento moderno: a crença na viabilidade contratual de um governo ou governança mundial; e a aposta na possibilidade cosmopolita, de uma federação ou confederação de repúblicas, pacíficas, harmoniosas, e sem fronteiras ou egoísmos nacionais. Duas ideias europeias que foram concebidas num continente extremamente belicoso e competitivo, mas que foi o grande responsável pela criação e universalização do sistema de estados nacionais modernos e do próprio capitalismo. Agora os europeus estão experimentando na pele a impossibilidade real de suas utopias, ao tentar construir um governo cosmopolita e contratual a partir de estados nacionais extremamente desiguais, do ponto de vista do poder e da riqueza.

O problema grave e insanável é que a falência do “contratualismo” e do “cosmopolitismo deixa os europeus sem mais nenhum sonho ou utopia coletiva. Em poucas décadas, no final do século 20, eles enterraram seu socialismo e agora, no início do século 21, estão jogando na lata do lixo seu “cosmopolitismo liberal”. E estão deixando o resto do sistema mundial sem a bússola de seu criador, porque o sistema seguirá em frente, mas seu “software” europeu está perdendo energia e está se apagando.

José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ e autor do livro O poder global, da Editora Boitempo, 2007.

via Limpinho e cheitroso

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