“Não seja tão grosseiro”, ele recomendou que eu evitasse trocadilhos, comentários depreciativos, tentativas de fazer piadas com a fé alheia nos meus textos literários. “Se você não crê em Deus (ele disse assim) é problema seu. Esmere-se nos textos tristes. Gosto muito dos seus textos tristes”, emendou, percebendo o meu abatimento subitâneo após a “crítica construtiva”.
As críticas construtivas acabam por me destruir um pouco mais. Eu me abato facilmente. Fazer o quê? A vida é assim mesmo, uma infindável desconstrução, “uma coleção de perdas”, como diria o escritor Edival Lourenço.
Para encerrar o papo, meu quase algoz amigo Léo Galinha comentou, com todo o desdém peculiar a um homem de convicções políticas extremistas, que o discurso da Presidente Dilma na ONU fora uma “porcaria”. “Você viu?”. Não, eu não vi.
Pela primeira vez na história, uma mulher fora incumbida de abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas. “Do jeito que as coisas estão caminhando, já-já vão colocar um presidente viadinho pra discursar na ONU, porque um analfabeto já fez isto, você sabe...”, completou o meu carrancudo interlocutor desprovido de qualquer compaixão crstica. Não, eu não sabia. ....
Mas o assunto de hoje não é o marco histórico cravado pela Presidente do Brasil — uma mulher brasileira convalescente de câncer linfático e que abdicou da autocomiseração para se manter no complexo e muitas vezes mal cheiroso xadrez político — no plenário mais importante do planeta, muito menos, as admoestações de Leontino Damaceno Beltrão e Silva, mais conhecido no bairro como Léo Galinha, por conta da sua avidez pela mulherada acima de quarenta quilos, embora seja “casado há séculos” (este chiste é de autoria do próprio).Dia 22 de setembro. Alguém, nalgum recanto não menos caótico do globo, estipulou que é o Dia Mundial Sem Carro. Uma espécie de manifesto, como tantos outros manifestos (o Homem jamais se contenta com o que tem...), a fim de alertar os cidadãos a respeito dos transtornos que o uso massivo de automóveis e motos provocam às cidades: desrespeito ao código de trânsito, colisões, mortes, aleijões, atmosfera poluída, congestionamento, caos, ira e atitudes insanas, como rolar pelo asfalto quente a esbofetear um estranho só porque ele amassou, involuntariamente, a lataria do seu carro.
Atendendo à convocação anônima, deixei o meu possante na garagem e encarei o transporte coletivo. Caminhei até o ponto onde cerca de trinta pessoas aguardavam o próximo busú, esticando os seus pescoços na tentativa de enxergar algum deles dobrando a esquina. Lá vinha um. Lotado. Gente dependurada na porta traseira. Até parecia um desenho animado.
Com um sorriso estampado no rosto, o irônico motorista piscou o farol três vezes e fez um sinal assim com a mão, juntando bem os cinco dedos, valendo-se da mímica para justificar que o ônibus estava repleto, não cabia mais ninguém. Aguardem o próximo, cambada.
Quem tinha relógio no pulso conferiu o tempo, constatou o atraso. Alguns sapatearam na calçada (as mulheres e os homens efeminados), outros esmurraram a estrutura metálica que cobria o ponto de ônibus (machões destemperados), e muitos esbravejaram. Aproveitei a oportunidade para xingar (um dos meus divertimentos prediletos), palavrão não-ginecológico, não-proctológico, mas, pejorativamente genealógico.
Após quinze minutos, eis que encosta um ônibus, dez metros além do ponto esperado, é claro. Por que, simplesmente, motoristas de ônibus não estacionam nos locais demarcados, eu não saberia precisar. Demandas trabalhistas contra as empresas que detêm o monopólio do transporte, ou mais um simples ato de birra, provocação urbana?
A multidão afunilou em direção à porta traseira, todos querendo entrar ao mesmo tempo e ocupar o mesmo lugar no espaço, um fenômeno impossível de acordo com as leis da Física. Nos tempos de banco escolar, nunca gostei desta matéria, então me juntei aos companheiros de suplício e fui praticamente abduzido pela massa humana para dentro daquele velho coletivo.
No miolo do microondas humano, sentindo-me um nelore enjeitado rumo ao frigorífico, tive a carteira surrupiada e presenciei o orgasmo de um sujeito nas coxas de uma gestante. É claro que ninguém se levantou para que a mulher viajasse sentada, evitando sêmen, freadas e solavancos. Nem precisava perguntar: o ato não foi bom pra ela também, seu pulha. O viajante safado só não foi linchado pelo povão por falta de espaço para pescoções.
Quando cheguei ao escritório, uma hora mais tarde que o necessário, estava com a roupa amarrotada e cheirando esperma. Procurei vestígios no tecido para conferir se algum inadvertido jato atingira a casimira. Graças a Deus (viu só, Léo Galinha?!) e ao paredão daquelas edemaciadas coxas gravídicas, eu estava ileso.
Então sentei em frente ao computador e comecei a redigir esta destemperada crônica. Até onde a raiva permitiu, fiquei lucubrando como registrar no papel, sem o mister de mais palavras chulas, aquela experiência de cidadão sem carro, um passageiro da agonia. Tíquete caro, ônibus em condições precárias, povo deseducado, cheiro ruim, trombadinhas assíduos, maníacos da lotação, mulheres levando nas coxas (literalmente)... Senti uma saudade profunda do meu veículo e pouca disposição para continuar salvando o planeta.
Com o advento da internet e a avidez dos meios de comunicação, a onda de manifestações cosmopolitas tem crescido: Dia Mundial Sem Tabaco, Dia Mundial Sem Drogas, Dia Mundial Sem Carro, Dia Mundial Sem Impostos, Dia Mundial Sem Preconceito Racial, Dia Mundial Sem Homofobia, Dia Mundial Sem Pedofilia, Dia Mundial Sem Carne, Dia Mundial Sem Gordura Trans, Dia Mundial Sem Agrotóxicos, Dia Mundial Sem Fome, Dia Mundial Sem Violência e outros tributos que mal cabem no calendário.
Entregando-me à irritação que hora expele a minha bile, seguindo os meus mais inconfessáveis instintos, que tal se alguém instituísse um Dia Mundial Sem Hipocrisia ou mesmo um Dia Mundial Sem a Humanidade? Na boa: não sentiríamos a menor falta de nós mesmos...
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