sábado, 30 de outubro de 2010

Para ditadura, Serra também era "terrorista" e pregava a revolução; tucano foi condenado a três anos de prisão

Durante o período eleitoral, o passado de militância política da candidata Dilma Rousseff (PT) foi relembrado em reportagens de jornais, revistas e TV. Dilma recordou em sua propaganda eleitoral o período em que esteve presa e foi torturada, enquanto e-mails e panfletos apócrifos a acusaram de “terrorista”.

Não houve muita gente interessada em levantar como os serviços de segurança e informação do país avaliavam o papel de José Serra (PSDB), que até 31 de março de 1964 presidiu a UNE (União Nacional dos Estudantes). O que dizem os arquivos do regime militar sobre o candidato da oposição?
Consultados por Última Instância, as fichas, prontuários e dossiês compilados pelo Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social ) nos anos 1960 e 1970 – hoje no Arquivo Público do Estado de São Paulo – revelam que, para os órgãos de segurança, Serra também esteve “envolvido em atos de terrorismo” e fazia discursos “extremistas”, conclamando estudantes e trabalhadores para a “revolução”.
Dossiê sobre José Serra no DOPS, contendo resumos de todos os relatórios feitos sobre ele pelos agentes de segurança. (Arquivo Público do Estado de São Paulo)
Serra também foi julgado, à revelia, pela Justiça Militar, e condenado a três anos de prisão por “fazer publicamente propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política ou social”.
Os arquivos do Deops indicam que Serra era acompanhado pelos serviços de segurança antes de mesmo do golpe de 1964.
Eleito presidente da UNE em julho de 1963, o tucano participou ativamente do movimento de apoio ao ex-presidente João Goulart e resistência ao golpe militar. Seu dossiê no Deops – um grande resumo dos principais relatórios feitos pelo departamento sobre a sua atuação – mostra como os agentes da inteligência seguiam suas atividades, consideradas “subversivas”.
Os relatórios registraram a participação do líder estudantil em eventos de solidariedade a Cuba: Serra assinou uma carta de apoio à revolução de Fidel e Raúl Castro, dirigida “ao povo paulista” de 23 de outubro de 1962. Também participou, segundo a polícia política, do encontro continental de solidariedade a Cuba em fevereiro do ano seguinte.
Nesta época, os agentes acompanhavam qualquer evento que pudesse sugerir, mesmo que remotamente, apoio ao comunismo internacional. Foi assim no encontro com cosmonautas soviéticos, celebridades mundiais por conta da conquista espacial, no auditório da Biblioteca Municipal em 26 de março de 1963.
O relatório minucioso nota que os cosmonautas chegaram acompanhados pelo embaixador da Rússia, por dirigentes da União Cultural Brasil-União Soviética, e por Serra, então presidente da UEE: “Este dando início à reunião leu um documento que registrava a passagem dos ‘gêmeos’ do espaço por esta cidade (...). José Serra, durante a leitura do referido documento, foi acometido de forte crise nervosa, chegando a chorar convulsivamente.”
Meses antes do golpe, os relatórios sobre Serra sobem de tom. Em 23 de agosto de 1963, recém-empossado na UNE, Serra participou de um comício em homenagem a Getúlio Vargas no Rio, a convite de João Goulart. Seu discurso foi considerado “extremista” pelos agentes de segurança.
“Na oportunidade o marginado orou, atacando o general Amaury Kruel e afirmou que os estudantes, unidos ao comando geral dos trabalhadores, vão percorrer todo o país numa campanha contra o Ibad (Instituto Brasileiro Ação Democrática)”, diz o dossiê do Deops. “Aduz ainda o relatório que José Serra foi um dos elementos que efetuou maiores ataques extremistas, sendo mais aplaudido que o próprio João Goulart”.
Fotos feitas no mesmo dia, que acompanham a ficha - frente e perfil
Outro relatório citado no dossiê, datado de 10 de dezembro 1963, refere-se a uma assembleia realizada no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo: “Esteve presente também o presidente da UNE, José Serra, o qual disse: o momento é para a revolução dos trabalhadores, sargentos e estudantes, que todos unidos não terão a menor dúvida que serão vitoriosos”.
Falar em revolução, na época, era visto como altamente perigoso. Por isso, os militares não gostaram do discurso de Serra no comício que serviu de justificativa para o golpe de 31 de março de 1964, o da Central do Brasil, ocorrido em 13 de março. Segundo o dossiê do Deops, Serra defendeu o governo, elogiou a ampliação das liberdades democráticas e a encampação das refinarias de petróleo. E teria concluído: “Hoje nós já estamos no tempo das marchas em busca da revolução brasileira”.
Condenação
Serra jamais foi acusado formalmente de terrorismo, mesmo porque sua condenação na Justiça Militar ocorreu em 1966, antes do endurecimento da lei para combater os opositores do regime.
Na época, a lei de segurança nacional em vigor era de 1953 e ainda não usava o termo “terrorismo”, como fizeram as posteriores (o decreto-lei nº 314, de 1967 e o decreto-lei nº 898, de 1969).
Mesmo assim, os militares viam as ações do líder estudantil como violentas, subversivas e, pelos menos em uma ocasião, como ações de terrorismo.
No inquérito conduzido pelo delegado-adjunto de ordem política Benedicto Sidney Alcântara em 28 de setembro de 1965, Serra era apontado como “cabeça” do “movimento revolucionário que grassava na classe estudantil” antes do golpe.
Pouco depois do golpe, o estudante exilou-se em Paris, e depois no Chile. Nesse período, foi julgado à revelia e condenado pela Justiça Militar na 2ª Auditoria da 2ª Região Militar, com base na letra “a” do artigo 11 da Lei de Segurança Nacional de 1953, sob acusação de “fazer publicamente propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política ou social”.
Três anos depois, em 16 de outubro de 1969, atendendo a uma solicitação do Diretor da Divisão de Identificação Civil e Criminal, a Delegacia Especializada de Ordem Política e Social incluiu José Serra em uma extensa relação de “envolvidos em atos de terrorismo com prisão preventiva decretada”.
O regime já havia endurecido e opositores eram chamados de “terroristas”. O ex-presidente da UNE, então exilado no Chile, não escapou disso.
Monitorado no exílio
Durante o exílio no Chile, Serra uniu-se ao grupo de brasileiros que denunciavam a repressão da ditadura no exterior. Por isso, entre 1969 e 1973, continuou sendo monitorado, mas pelo Ciex (Centro de Informações do Exterior), ligado ao Itamaraty.
Na ficha remissiva do Deops, Serra é chamado de “elemento subversivo” pela atuação a época. Os agentes de inteligência também o acusavam de buscar a “infiltração nos setor estudantil do Brasil”, ao fazer em 1970 “inúmeras viagens entre Santiago e Montevidéu com despesas pagas pelo esquema Miguel Arraes/Almino Affonso” (os dois políticos, exilados, continuavam a articular as forças de oposição).
Em 1972, Serra teve seu mandado de prisão revogado por prescrição da pena, decisão tomada pela 2ª Auditoria do 2º Conselho de Justiça Militar. Por isso, pôde voltar ao Brasil antes da anistia que beneficiou os outros oposicionistas cassados pelo regime.
Mas, quando voltou ao país em 1977, suas atividades continuaram sendo monitoradas pelo governo. Em junho daquele ano, foi chamado a depor sobre sua atuação no Chile. Pela primeira vez, junto à sua ficha aparece a característica foto de frente e de perfil.
No seu dossiê no Deops, há também relatos sobre eventos, debates e reuniões aos quais ele compareceu até o ano de 1980.
Filiado ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), Serra tentou se candidatar à Câmara dos Deputados em 1978, mas sua candidatura foi impugnada pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral). Os juízes entenderam que ele não tinha sido reabilitado criminalmente, já que não cumpriu a pena por estar fora do país.
Serra só voltaria a ter o direito de se candidatar depois da anistia de 1979. Foi eleito deputado federal, senador, prefeito e governador do Estado de São Paulo. Hoje, concorre pela segunda vez à presidência da República. A ex-guerrilheira Dilma Roussef briga para ser a primeira mulher na presidência. Prova de que o país mudou muito desde quando se chamavam os que lutaram contra o regime de "terroristas".
Natalia Viana

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