*Se a religião reflete os desejos humanos de uma sociedade essencialmente justa, realizável apenas ao nível do “céu”, isto é, post mortem – e, neste sentido, toma como inevitável a miserabilidade da vida terrena e a condição humana falível e imperfeita –, a ideologia política sacralizada inverte os pólos e afirma a possibilidade da utopia social no plano terreno, ou seja, a construção do paraíso na terra. Os crentes religiosos perseguem o paraíso como algo impossível de ser atingido no plano da vida material; os utopistas buscam o possível onde afirmam o inexistente..
Para que tenha efeito prático, as utopias necessitam se manifestar enquanto ideologias capazes de influenciar e de serem “encarnadas” pelas massas; precisam ser eficazes na produção de novos crentes. Se a religião pressupõe a fé; a ideologia também não pode prescindir da crença no impossível, no devirlongínquo e na possibilidade de que o vir-a-ser deixe de ser apenas uma promessa para se tornar realidade. A ideologia também se reveste, portanto, de sacralidade e religiosidade; tem os seus profetas, seus seguidores e as instituições onde se manifestam os rituais e realizam os cultos.
Se as religiões têm como função legitimar e manter o mundo social e historicamente construído; e, se esta legitimação consiste em “conceber a ordem institucional como refletindo diretamente ou manifestando a estrutura divina do cosmo”[1]; as ideologias seculares têm dupla função: manter e transformar a sociedade existente. Para que efetivem essas funções, isto é, na medida em que as idéias se apoderam das mentes e se traduzem em manifestações reais e práticas, as ideologias também precisam se revestir de aspectos religiosos. Assim, por exemplo, as ideologias conservadoras se nutrem de valores morais vinculados à tradição, aos costumes e à religião.
As ideologias críticas também não podem desconsiderar estes fatores. Para serem eficazes, precisam convencer e arrebanhar seguidores. Seu caráter, porém, não será definido pela religiosidade e sacralidade, mas pelo apego cientificista. Ela fundamenta a utopia em argumentos pretensamente científicos, sem, no entanto, abrir mão de slogans e mensagens nada científicas, pois exigem, como a religião, a crença. O fanático fundamentalista religioso não difere muito do fanatismo militante vinculado às ideologias seculares. Se o primeiro acredita em Deus, o segundo acredita na inexorabilidade da história e também cultua ídolos.
Os crentes de algumas denominações vêem o mundo com desconfiança e buscam se afastar das coisas mundanas. “É do mundo”, dizem. O afastamento das coisas do mundo é uma das manifestações de resistência à secularização. Eles buscam o sagrado, vinculam-se a este na esperança de que a divindade os socorram e os libertem das iniqüidades humanas. Dilaceram-se diante do dilema de cultuar o sagrado e negar o profano, como se estes expressassem uma relação de pólos excludentes. Ao “fugirem” do mundo, negam a condição humana que lhes é inerente. E, no entanto, têm que se haver cotidianamente com esta condição. Assim, procuram trazer o sagrado para o dia-a-dia. É como se o sagrado rompesse os muros dos templos! Profano e sagrado passam a conviver nos mesmos espaços-tempos. Isto, porém, não significa a perda do específico, isto é, do tempo e espaço consagrados ao culto. Como não é possível negar plenamente a condição humana e a realidade social, tais crentes intensificam os vínculos ao sagrado e, assim, tendem a alimentar o sectarismo, o espírito de seita e o fanatismo. Um dos efeitos deletérios deste procedimento é a intolerância religiosa.
Ao contrário dos crentes religiosos, os crentes em ideologias seculares se apegam freneticamente ao mundo. Para estes o mundo real é a medida de todas as coisas. Tudo o que não pode ser explicado sob este prisma não merece consideração. Para eles, a religião expressa alienação, ópio, distanciamento do real. Escapa-lhes a compreensão sobre os porquês de homens e mulheres buscarem o transcendente. No extremo oposto, negam as necessidades espirituais, a existência da divindade (e ao negarem confirmam-no) e não compreendem a religião como parte da condição humana. A ironia é que fazem isto reafirmando religiosamente as suas “crenças”. Na suprema necessidade de se afirmarem e também ao seu projeto utópico de sociedade, terminam por repetir os mesmos procedimentos dos que criticam. São igualmente intolerantes!
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