Concentremo-nos nos crus e nos podres. São duas áreas da gastronomia que oferecem uma variedade surpreendente. Dos crus podemos escolher entre ostras frescas e outros mariscos, o carpaccio e as demais carnes cruas e fatiadas, a carne crua picada que os franceses chamam de "tartare" e os alemães de um nome provavelmente muito maior, os peixes crus dos japoneses e todos os vegetais e legumes que podem ser comidos "in natura", depois de um bom banho para tirar os tóxicos.
Sobre o "tartare". Aquele proverbial turista americano que pedia o seu "tartare" bem passado não pode mais ser ridicularizado. Os próprios franceses aderiram ao que eles chamam de "aller-retour", ida e volta, que consiste num "tartare" que vai ao fogo até ficar perigosamente perto de se transformar em hambúrguer.
Mas são os podres que fascinam. A podridão (tese) é a maneira que a comida tem de escapar do arbítrio do cozinheiro e determinar seu próprio ponto de consumo. É quando a comida se come! O charque e a carne de sol não são apenas carnes apodrecidas. São a carne como ela mesma se pretendia antes de ter seu processo de maturação rudemente interrompido por algum assador afoito. O peixe à escabeche é o peixe que saiu da água, passou incólume pela civilização e voltou à natureza. Já que a podridão é o caminho natural de todas as coisas...
Tudo que é orgânico procura a podridão, se realiza na podridão.
É este momento mágico de autoindulgência que se quer saborear nos alimentos. Devemos ser cúmplices do alimento no momento em que ele se torna repugnante ao paladar comum, portanto só acessível aos poucos que o compreendem. E, para não humilhar ninguém com excesso de argumentação, não vou nem citar todos os gloriosos resultados do leite estragado, como o queijo.
Ou um certo, legendário, iogurte turco que, segundo a tradição, só pode ser comido cem anos depois da morte da cabra que deu o leite ou quando o armário em que está guardado explodir, o que vier primeiro.
Luís Fernando Veríssimo, via Com texto livre
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