Eu tenho visto repetidas vezes cristãos fazerem um paralelo entre a dificuldade que a maioria das pessoas tem em explicar o amor, com a impossibilidade da comprovação da existência de Deus.
Muitos cristãos quando se encontram diante de argumentos racionais que apontam para as incoerências factuais e intelectuais que questionam a existência de Deus tendem a papagaiar esse argumento chave, que lhes é passado qual um antídoto ao veneno da razão, durante os cultos religiosos.....
Eles então perguntam: Como você explica o amor? E esperam então “ouvir o silêncio” de seus oponentes. Após o silêncio, eles apregoam que Deus é tanto ou mais difícil de explicar quanto o amor. Ainda assim, dizem eles, não é por não sabermos explicar o que é o amor que devemos acreditar que ele não exista. Assim sendo, não é por não podermos explicar Deus que vamos agora afirmar que ele não existe.
Essa questão serve ao crente por duas razões. A razão direta, como acabo de descrever acima, é a de fazer surgir um abismo os protegendo das respostas dadas por pessoas que tentam definir algo abstrato. Já a razão indireta, subliminar, é associar Deus diretamente ao Amor. Seria interessante ouvir de um fervoroso cristão o seguinte argumento, que tem o mesmo valor: Como você explica o pavor? E quando o silêncio viesse, ouvir eles falarem: Pois bem, você não pode explicar o pavor, mas ambos sabemos que ele existe. Deus é exatamente como o pavor.
O raciocínio é o mesmo, porém a conotação da resposta é subliminarmente negativa. Em minha opinião, tanto o amor quanto Deus, o pavor ou a angustia são apenas sentimentos. Portanto, eu poderia argumentar sobre a contraprodutividade do argumento, aludindo para o fato de que Deus, tal qual o amor, foi criado pela mente humana em algum lugar do passado e encontra-se localizado numa região específica do cérebro de alguns.
Aparelhos modernos são capazes de produzir imagens do cérebro relacionadas a respostas a estímulos específicos. Pode-se detectar quando uma pessoa utiliza determinadas regiões do cérebro em resposta a um estímulo específico, como responder determinadas questões[1].
Explicar o amor é sem dúvida uma tarefa muito difícil e a dificuldade aumenta na proporção direta à cultura geral do indivíduo que a confronta. Na verdade, explicar qualquer coisa fica difícil quando não se tem, e nem se busca ter, o conhecimento necessário para tanto. Esse é inegavelmente um problema sério, que ocorre à maioria dos crentes[2].
A fé forma uma barreira que impede a maioria dos crentes de ler sobre os contra-argumentos do ceticismo à hipótese de deus. A curiosidade em se aprender como funciona o mundo ao nosso redor tem sido suplantada em muita gente por uma preguiça intelectual que faz com que muitas pessoas optem por respostas prontas, que elas absorvem sem contestar.
Do ponto de vista cognitivo, o amor nada mais é que uma emoção, um sentimento, que pode ser analisado através de diferentes prismas como, por exemplo, a psicologia, a poesia, a espiritualidade, a sociologia, a química, a biologia, etc. Esse artigo foi escrito de maneira a dar uma introdução sobre como o amor pode ter surgido como estratégia evolutiva para a sobrevivência dos mamíferos. Nele eu tento simplificar o conceito de evolução, para que este seja compreendido por aquelas pessoas que não têm afinidade ou que equivocadamente pensam compreender a teoria da evolução das espécies (TE)[3], através do processo de seleção natural (SN), elaborada por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace. Ele não pretende ser científico e eu vou tentar simplificá-lo ao máximo para que ele possa ser assimilado por pessoas dos mais diversos níveis educacionais.
Introdução à Teoria da Evolução através do processo de Seleção Natural.
A TE reúne fatos e evidências, debatidos, analisados e atestados por vários ramos da ciência. Eles nos mostram como todas as espécies atuais de seres vivos (bactérias, algas, fungos, protozoários, merozoários, plantas ou animais) evoluíram a partir de ancestrais comuns unicelulares. O processo de evolução começou a partir do surgimento das primeiras formas de vida, há cerca de 3,5 bilhões de anos, e deu origem a todos os seres vivos atuais. A principal ideia da TE diz, grosso modo, que o material genético dos organismos vivos sofre pequenas alterações aleatórias ao longo do tempo (as mutações gênicas), que são transmitidas às gerações futuras através da reprodução. Essas modificações genéticas podem, em alguns casos, alterar as características físicas, fisiológicas e comportamentais dos indivíduos. Entretanto a maior parte das mutações é inerte, não apresentando nem vantagens nem desvantagens aos seus portadores.
As alterações genéticas que modificam, de maneira positiva, o modo de vida do indivíduo mutante face aos seus competidores e aos desafios do meio ambiente tendem a ser mantidas pela SN[4], pelo simples fato de que, por se tornarem mais adaptados ao seu ambiente, esses indivíduos têm mais chance de sobreviverem e se reproduzirem que o resto dos indivíduos daquela população. Já as mutações que dificultam a vida do indivíduo tendem a desaparecer com o tempo, justamente por tornarem seus portadores menos capazes de sobreviverem e, por conseguinte, menos capazes de transmitirem suas características às gerações futuras.
Com o passar do tempo (dezenas, centenas ou milhares de gerações) as várias alterações sofridas pelo genoma dos indivíduos, membros de uma determinada população isolada de uma dada espécie, acumulam-se e modificam de tal maneira o material genético dentro da população que esta se diferencia geneticamente do restante de indivíduos que compõe a espécie de origem[5]. Assim vemos essa população transformar-se gradualmente em uma nova espécie que continuará a evoluir . Mas onde é que entra o amor nessa história evolutiva?
Ao olharmos a história evolutiva dos seres vivos e analisarmos os taxons ou taxa[6] considerados mais antigos, vemos que o amor, assim como os outros sentimentos, é uma aquisição relativamente recente e inerente aos mamíferos. Bactérias, algas, plantas, fungos, protozoários, merozoários, animais invertebrados, e também vertebrados como os peixes, anfíbios e répteis, não sentem amor. Eu diria que o amor é um subproduto da evolução do cérebro dos mamíferos e é bem possível que nem todos os mamíferos consigam amar. Na evolução das espécies animais, vemos um aumento da complexidade do sistema nervoso, que varia desde o aparecimento das primeiras células nervosas, passando por um conjunto arcaico de umas poucas células nervosas em seqüência até chegarmos à existência de um sistema nervoso central que contém um córtex composto por centenas de bilhões de neurônios interligados por alguns trilhões de conexões nervosas, as sinapses.
Introdução à evolução do cérebro humano.
O cérebro dos humanos triplicou de volume nos últimos dez milhões de anos de evolução da família Hominidae. Ao estudá-lo vemos desfilar, diante de nós, do interior para o exterior, a história evolutiva dos vertebrados. O texto abaixo em itálico foi retirado do artigo “Evolução e pecado original”, escrito por Alex Altofer[7], ele resume bem a história evolutiva do nosso cérebro.
“…A fisiologia do cérebro humano é claramente resultante da evolução. Nossa estrutura cerebral mais antiga é o cérebro reptiliano, chamada assim por ser herança do tempo em que nossos ancestrais ainda eram répteis. O cérebro reptiliano situa-se na base da nuca, e é constituído pelo tronco cerebral e o cerebelo. Nós compartilhamos esta estrutura primitiva com todos os répteis e mamíferos. Aqui originam nossos instintos primordiais de autodefesa, sustentação alimentar e reprodução sexual. Aqui se encontram os impulsos mais primitivos de defesa territorial e agressão…O sistema límbico é composto pela amígdala, o tálamo, o hipotálamo, o giro cingulado, a fórnix e o septo. Nós compartilhamos o sistema límbico com todos os mamíferos existentes, mas os répteis nunca adquiriram esta estrutura cerebral. Aqui originam as fortes emoções, como a paixão reprodutiva e o afeto pela prole. Vínculos familiares e a cooperação recíproca com outros da mesma espécie são possíveis graças ao cérebro paleo-mamífero.Envolvendo o cérebro paleo-mamífero encontramos a parte maior e mais recentemente evoluída do cérebro humano, o cérebro neo-mamífero ou neocórtex. No neocórtex se encontram as funções executivas do cérebro, incluindo nossas faculdades racionais. Com o neocórtex somos capazes de utilizar linguagem simbólica, fazer cálculos matemáticos, antecipar eventos futuros, tomar decisões morais entre instintos conflitantes, e buscar o propósito de nossas vidas. É no neocórtex que se desenrola o ainda misterioso fenômeno da consciência.O neocórtex contém cem bilhões de células nervosas, e é dividido em lobos frontal, parietal, temporal, e occipital. Aqui se destaca o lobo frontal, região mais evoluída nos grandes primatas, em especial no Homo sapiens. No lobo frontal encontramos o córtex pré-frontal, onde se encontra a circunvolução de Broca, área do cérebro humano que permite a linguagem falada.
Através da expansão do lobo frontal conseguimos aprimorar nossos instintos de empatia, altruísmo e cooperação grupal de forma extraordinária. Descobrimos que fortes vínculos familiares são muito vantajosos. Isto nos ajudou a sobreviver em bandos de caçadores-coletores cada vez maiores, que gradualmente se tornaram tribos.Instintos sociais negativos, tais como o egoísmo e a agressividade, também favoreceram a sobrevivência de indivíduos e grupos. Tais comportamentos negativos foram inicialmente vantajosos na defesa contra predadores de outras espécies, e posteriormente contra humanos de outros grupos competitivos. A necessidade de defesa contra ataques físicos, assim como a escassez de recursos alimentares, resultaram na seleção de fortes características competitivas. Desenvolvemos fortes comportamentos territoriais…”
Para que os mamíferos fossem capazes de desenvolver esse cérebro tão mais complexo que o das outras classes de animais, uma estratégia reprodutiva que fez desenvolver laços afetivos de família entre pais e filhos, e muitas vezes entre parentes próximos ou mesmo membros de uma determinada população ou espécie, foi provavelmente uma vantagem a mais na luta pela sobrevivência. Para que o cérebro complexo dos mamíferos seja formado uma gestação interna relativamente longa fez-se necessária. A gestação dos cães e gatos dura cerca de dois meses, mas os filhotes nascem ainda “cegos” e sem conseguir andar de imediato. Isso requer um cuidado especial por parte, sobretudo, da mãe e algumas vezes do pai e das tias e tios, como nos lobos e leões. Esse tipo de comportamento é mais comumente encontrado entre as espécies predadoras que não estão tão ameaçadas de morte como suas presas. Os herbívoros (presas) têm uma gestação geralmente mais longa, entre cerca de sete meses para os cervídeos, dez meses para os bovídeos e um ano para os eqüídeos. É claro que há uma miríade de sub-estratégias reprodutivas dentre os mamíferos. Os roedores como o coelho, os porquinhos da índia e os ratos, por exemplo, têm gestações muito curtas. Cerca de dois meses depois da fecundação, os filhotes já estão praticamente independentes, pois a estratégia é gerar crias numerosas em curto espaço de tempo, para que cerca de dez por cento destas consigam chegar à idade adulta e reproduzam-se. Já os elefantes, têm gestação de dois anos e geram um filhote a cada três ou quatro anos. Tais características se estabeleceram nas populações ancestrais de mamíferos e se mantém até hoje porque conferiram um maior sucesso reprodutivo aos indivíduos que as manifestavam e que, assim, passavam-nas aos seus descendentes. Assim, aos poucos, essas características espalharam-se ao longo das gerações, tornando-se o padrão nesses grupos animais.
Os mamíferos formam uma classe recente na árvore evolutiva. Se retrocedermos até as classes mais antigas, vemos largamente o tipo de estratégia onde o abandono da cria à própria sorte é, grosso modo, a regra geral. Corais, moluscos, equinodermos, anelídeos, crustáceos, insetos, e outros invertebrados, assim como os peixes, anfíbios e répteis, no caso dos vertebrados, “preferem” produzir vários ovos, escondê-los em lugar seguro e seguirem seu caminho. Os pais, geralmente, nunca conhecem os filhos. Apenas certos peixes, uns poucos répteis, como os crocodilianos e, sobretudo, as aves é que dedicam um pouco mais de cuidado aos ovos e às crias. Ainda assim essa dedicação é mínima, se comparada à dedicação que dão os mamíferos à sua progênie. Portanto, no caso desses poucos grupos cuja estratégia reprodutiva consiste em dedicar energia e arriscar a própria vida para proteger seus descendentes, não seria estranho imaginar uma vantagem dos indivíduos mais capazes para executar uma tarefa tão complexa e arriscada. Indivíduos que melhor protegiam seus descendentes tinham mais chance de vê-los crescer e gerarem filhos que carregariam em seus genes a informação que codifica esse comportamento. Ao longo de milhões de anos de evolução, o cérebro dos mamíferos evoluiu ao ponto de acentuar qualidades comportamentais (e os sentimentos e emoções a elas associadas) específicas e apropriadas a situações particulares. O medo, o prazer, a agressividade, a coragem, etc. As emoções e os sentimentos de afinidade e vínculo afetivo funcionam como elementos motivadores e indutores de comportamentos adaptativos, por isso se estabeleceram.
Vamos pensar na realidade dos hominídeos que viviam nas savanas africanas, há dois milhões de anos atrás. Durante os nove meses de gestação a fêmea põe a própria vida em perigo. O bebê lhe “rouba” uma energia preciosa e difícil de ser conseguida e que ela, em situação ainda mais complicada, tem que conseguir quase que em dobro. Ela fica muito exposta e vulnerável aos ataques dos predadores e mesmo o simples parto pode matá-la. Depois do parto ela ainda terá que alimentar o bebê com seu leite, tem que carregá-lo por dois ou três anos e dar-lhe parte da sua alimentação. Por isso, antes de se investir em tamanha empreitada, ela vai buscar se associar a um macho forte, inteligente, hábil e sadio, e assim misturar seus genes aos genes de um vencedor. Na história evolutiva através da SN, as fêmeas mais propensas a escolherem os “melhores” machos passaram seus genes adiante. Uma vez conquistado o “melhor” macho há ainda a necessidade de fazer um esforço sedutor adicional para mantê-lo sempre por perto, para que dessa forma este a proteja e lhe traga comida.
Com o passar das gerações a habilidade em escolher os “melhores” machos disseminou-se nas populações humanas através das gerações. As fêmeas também teriam aumentadas as chances de sua progênie sobreviver se fossem ajudadas, pelo macho, a criarem seus filhos. Notem que, do ponto de vista do macho, a coisa funciona de maneira um tanto quanto diferente. A estratégia mais eficiente para um macho propagar seus genes através das gerações é espalhá-los pela maior quantidade possível de fêmeas. Não importa se elas pareçam saudáveis ou inteligentes. Se eles fecundam quinze fêmeas eles aumentam a possibilidade de que um de seus filhos chegue à idade de reprodução. Por isso não é interessante para um macho guardar fidelidade a uma única fêmea. Entretanto, a colaboração social se tornou, por meio da SN, uma estratégia de sobrevivência comum a boa parte dos mamíferos e sobre tudo aos primatas. Ao longo de milhares de anos foram selecionados os indivíduos mais capazes de seduzir, manter laços de amizade, protegerem suas crias, seus parceiros, sua família e seus amigos.
Richard Dawkins[8], em seu livro O Gene Egoísta, nos chama a atenção para o fato de que nós tendemos a ser bairristas e em caso de conflito tomarmos partido de acordo com a seguinte lógica: Defendemos nossa família direta face à nossa família indireta. Nossa família indireta face aos nossos vizinhos. Nossos vizinhos face às outras pessoas do nosso bairro. As outras pessoas do nosso bairro, face às pessoas de outro bairro. Nossa cidade face à população do nosso estado. Nosso estado face ao país. Nosso país face ao continente, etc. Por que isso? Por afinidade genética. Essa afinidade genética consiste na maior probabilidade de encontramos genes semelhantes aos nossos distribuídos entre os membros da nossa família, vizinhança, cidade, estado, país, etc. No passado as populações eram mais coesas e a probabilidade de achar um parente próximo nas cercanias era maior de que achá-lo em outro povoado.
Certas, mutações, patologias ou lesões cerebrais podem impedir o indivíduo de amar ou diminuir substancialmente essa capacidade. Do ponto de vista evolutivo, o amor pode ser explicado mais ou menos assim: a evolução de cérebros, através de um processo de SN que durou milhões de anos, que carregam em sua complexidade, em meio a outras emoções, um sentimento que denota uma afinidade genética que impele o individuo a proteger seus filhos, irmãos, família, etc, tentando assim aumentar a possibilidade de que a maior quantidade possível dos seus genes, ou genes o mais semelhantes possível aos seus, venham a ser propagados às gerações futuras. A SN também potencializou a capacidade, evoluída ao longo de milhares de anos, de seduzir, conquistar, agradar e manter unidos os indivíduos com os quais queremos misturar o nosso patrimônio genético.[9]
[2] Nunca é demais lembrar que o termo crente quer dizer, aquele que crê em divindades e não apenas o cristão protestante, como se costuma dizer no Brasil.
[4] As mutações genéticas ocorrem de forma aleatória e são causadas por vários fatores, como por exemplo a radiação ou a infecção viral. Elas podem também ocorrer devido a erros de transcrição, entre outros fatores. Já o processo de SN não é nada aleatório. Ele é simplesmente a resultante probabilística da competição pela sobrevivência comum aos seres vivos, potencializada pelas características específicas que sejam mais apropriadas a um determinado fim.
[5] O processo é bem mais complexo, pois não é apenas a população isolada do restante dos membros da espécie, em uma ilha, por exemplo, que sofre as mutações. O restante dos indivíduos do grupo, no continente, por exemplo, também continua sofrendo mutações gênicas, que também fazem com que eles se distanciem, geneticamente, do grupo isolado.
[6] Taxa são divisões da filogenia : espécie, gênero, família, ordem, classe, filo, reino e todas as suas sub-divisões.
[9] Claro que tais aspectos evolutivos e biológicos não excluem a participação de outras facetas da vida do Homo sapiens, como por exemplo, a cultura.
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