quarta-feira, 18 de maio de 2011

“Gay tudo bem, agora viado não!”


“Você me acha muito feminino?” foi a pergunta que ele me fez. De surpresa, de sopetão assim. Ele estava conversando com alguém pelo computador  e eu sentada na sua frente, lendo.  Fiquei uns segundos sem saber o que dizer, e acabei respondendo: “bem, eu te acho na média”. “Na média?” ele repetiu,  fez sinal de “ok, perfeito” e voltou com renovada disposição ao computado. Acho que ele deve ter mandado a minha resposta a outra pessoa. Antes disso a gente tinha tomado um café, conversado sobre não saber exatamente o que fazer com essa coisa que as pessoas chamam de “vida”. Agora ele dizia:
 “Vamos comigo até o centro esportivo? Vamos, vai?”. Eu ja não estava querendo continuar a leitura, mas mesmo assim resisti burocratimente ao convite. Só então fomos. Não sei em qual altura da caminhada, eu resolvi puxar o assunto da união homoafetiva finalmente regulamentada. Ele deveria estar feliz, não é? “Sim, sim, claro” ele respondeu, sem qualquer animo. “Sabe o que me deixa nervoso?” me perguntou, dando a entender que estava se referindo a outra coisa. “As pessoas que me acham ‘feminino demais’. E nem se trata de um hetero, é um gay mesmo. Um cara gay que acha que eu deveria ser mais másculo. E não é questão de gosto pessoal dele porque ele falou que ninguém curte de verdade caras mais femininos. Quero dizer,ele não entende que é assim que eu me sinto confortável porque é assim que eu sou. Fico tão decepcionado quando vejo preconceito internalizado.”
Senti que ele queria desabafar e apenas concordei, não falei nada. “Por exemplo, quando a gente vê uma dessas reportagens sobre o casamento gay: sempre aparece dois homens vestidos de terno. Nunca aparece um homem ou uma travesti, ou um cara de terno e outro com vestido. Acho que as pessoas costumam ter  repulsa pelos gays em geral, mas pelos femininos em particular, entende?”. Claro que entendia, e disse isso a ele. E acrescentei uma idéia que vinha passeando pela minha mente desde o dia do reconhecimento juridico da união estavel. “Róger*,isso que você esta falando é o problema daquela famosa frase: gay tudo bem, agora viado não!” Ele deu risada, me pareceu mais relaxado. “Com certeza, com certeza. É um preconceito travestido de compreensão e tolerancia. Outro exemplo: se você é um homem hetero, você não pode usar qualquer peça de roupa da cor rosa. Na verdade, você não pode usar nada que tenha um detalhe nos tons de rosa, ou até mesmo vermelho. Alguns famosos, tipo atores e cantores, ousam usar roupas nessas cores e, ficando bem ou não, ja são logo taxados de gays.” Concordei, e acrescentei: “Se você é um cara gay, você não pode gostar de futebol, pois muita gente acha absurdo isso. Ou mesmo de rock pesado.”
Ele balançou a cabeça, e demos risada. As vezes uma idéia sem fundamento esta na nossa cabeça o tempo todo e nunca pensamos seriamente nela. Mas basta um pouco mais de raciocínio e logo vemos que ela não faz qualquer sentido, que é baseada em preconceitos ou medos. Ele continuou: “Nesse debate todo que teve sobre a união homoafetiva, pouco se falou das lésbicas.Parece que não é tão grave duas mulheres se relacionarem sexualmente. Sim, elas também são chamadas de pecadoras ou anormais e essas coisas, mas não como os homens. O problema maior é um cara ter um comportamento que se considera exclusivamente feminino, como se isso fosse ruim” e arrematou: “Muitas pessoas devem achar que ser mulher é uma coisa indigna. Logo, acham os caras ‘femininos’ ainda mais indígnos porque ‘escolheram’ ser assim, meio inferiores”. Continuamos a caminhar, num silencio meio deprimente. Resolvi acrescentar mais um absurdo na nossa lista de noções estúpidas: “Ja ouvi gente falando que heteros não podem ter amizade com gays pois acabariam ficando promíscuos ’como’ eles“. “Ah, sim, essa ja é bem conhecida” ele disse. Apesar de muito feliz e satisfeita com a decisão do Supremo, eu não fiquei assim tão nas nuvens. A mentalidade de uma sociedade muda muito lentamente, e com grande esforço. Mas tomo cuidado para não cair, por outro lado, naquele velho desanimo “leis não mudam nada, a discriminação vai continuar existindo”. Prefiro pensar que a mudanças significativas ja aconteceram, tanto que a legislação agora contempla a todos nós, gays e heteros. Essa alteração, por sua vez, encoraja e estimula mais mudanças, menos preconceitos. Chegamos por fim ao centro esportivo, onde ele ia treinar e eu ia tomar o caminho da biblioteca, perto dali. Numa tarde comum, nós dois nos abraçamos e nos despedimos, mas com um otimismo pequeno, porem firme, num futuro cada vez mais próximo: “Acho melhor você, Rayssa, ja ir pensando na roupa que vai usar quando eu firmar meu relacionamento” Eu disse: ” Vou ter que usar vestido na cerimônia?” Ele não hesitou: “Só se você quiser.”
*Mudei o nome verdadeiro do meu amigo pois não sei se ele gostaria de ter o nome revelado. As imagens que ilustram o texto são do curta metragem “Eu não quero voltar sozinho” de Daniel Ribeiro. Está disponível no Youtube, eu recomendo. Aproveito para deixar o link para um texto que me inspirou bastante: “O Armário número 24”  de Vitor Angelo do Blogay, onde ele ressalta que a recente decisão do Supremo é uma conquista também dos heterossexuais.
bule voador

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