Está fincado uma rotina embaroçosa: aceito falar sobre o assunto para, logo que me assento para pôr as ideias no papel, descobrir que nada sei sobre ele. Já aconteceu uma vez, e agora aconteceu de novo. Aceitei falar sobre a sexualidade masculina. Mas quando me pus a pensar cheguei à insólita conclusão de que sexualidade masculina nem mesmo existe. Assim, fui obrigado a falar sobre o que não existe. O que não deixou de ser um fascinante desafio, semelhante ao dos teólogos que, igualmente, falam sobre objetos inexistentes...
Comecei longe das coisas da cama, falando sobre as coisas da mesa. Mesa e cama, na aparência tão diferentes, têm uma coisa em comum: são lugares onde se come. O verbo " comer" se usa indiferentemente para indicar prazeres da boca e os prazeres do sexo. A Tita, do filme Como Água para chocolate, imagino inspirada pelos textos sagrados, desenvolveu um jeito de fazer amor através da culinária. Pois são os Evangelhos que dizem que comer é ato sacramental: quem come a comida come o corpo de quem dá: " Tomai, comei, isso é o meu corpo." E foi assim que tentei entrar nos mistérios da sexualidade pelos mistérios da comida.
Fui a um livro de medicina, procurando as luzes da ciência universal do comer. Lá encontrei a descrição do aparelho e das funções digestivas. Um corte transversal do corpo humano me mostrava a boca, o estômago, os intestinos, o ânus. Nisto todos os seres humanos são iguais: a comida entra por uma extremidade e sai pela outra. Vale para os pigmeus hotentotes, os esquimós, a Bruna Lombardi, o Papa, a rainha da inglaterra. Sobre o aparelho e as funções digestivas existe, de fato, uma ciência universal.
Procurei informação sobre comidas - pois seria de se esperar que onde se fala de digestão se falasse também do que se come. Inutilmente. Tive de ir a uma livraria. E ali me deleitei com livros modernos e maravilhosos de culinária: a chinesa, a japonesa, a italiana, a francesa, a árabe, a grega, a russa, a espanhola, a mineira, a baiana : todas diferentes; são infinitas as maneiras de comer, são infinitas as maneiras de gozar pela boca; os mais variados tipos de temperos, os mais variados tipos de ingredientes, os cheiros, as cores, as maneiras, as etiquetas, num lugar é uma educação dar ruidosos arrotos e comer de boca aberta fazendo barulho, em outros isso é coisa proibida; come-se à mesa, come-se no chão, com garfo, colher e faca, com pauzinhos, com a mão. Não tem jeito certo. Tudo depende do lugar. Por isso não pode haver ciência universal sobre o ato de comer. O que existe é arte, que se varia.
Voltei ai livro de medicina e procurei informação sobre orgãos do sexo e, do mesmo jeito como os orgãos da digestão, lá encontrei de novo as novas figuras - tudo igual para todo mundo: os hotentotes, os esquimós, a Bruna Lombardi, o Papa, a rainha da Inglaterra. Tudo funciona de jeito igual. Sobre o aparelho e as funções reprodutivas se faz uma ciência universal.
Procurei informações sobre os jeitos de comer na cama - pois seria de se esperar que onde se fala sobre orgãos do sexo se falasse também sobre sexualidade. Inultilmente. Aí foi a literatura, a experiência e a imaginação que vieram ao meu socorro. E elas me disseram que comer na mesa e comer na cama são coisas iguais. Não existe ciência sobre isso. Não existe UMA sexualidade feminina, como não existe UMA sexualidade feminina: com a clarineta se toca desde de um adágio triste até um chorinho... Tudo depende do gosto e da habilidade do tocador. Como são infinitas as maneiras de tocar a clarineta, são infinitas as formas de comer na cama.
E me veio à cabeça, sem que eu tivesse de fazer qualquer pesquisa científica para tanto ( os cientistas precisam sempre de pesquisas para concluir: eles pensam vagarosamente...), que aquilo a que se dá o nome de sexualidade masculina é um enorme leque de variações: o menu da cama, o Kama-sutra, é variadíssimo, incluindo comidas e jeitos de comer para todos os gostos: os mais variados temperos. Tudo depende do gosto e da habilidade de quem vai comer...
Num extremo do leque da sexualidade masculina está a sexualidade inspirada nos jeitos suínos de comer: sabugos, inhames, restos de feijão e tortas de morango são todas devoradas de uma bocada só, o gosto não faz a diferença, tudo é a mesma coisa, sem fazer discrição, a única coisa que importa é o " finalmente".
No outro extremo está a sexualidade inspirada na culinária de Babette, tudo delicado, sutil e embriagante, até mesmo as toalhas e a posição das velas. Tudo é pensado como uma obra de arte. Mas, como se sabe, isso é coisa de dias especiais, dias de festa...
Bem no meio do leque está a sexualidade do cotidiano, o trivial do dia-a-dia: arroz, feijão, carne, couve, alface com tomate, comidinha caseira que se pode servir requentada num mexidão com pimenta. O que me faz lembrar uma estória de amor. A esposa- ela amava tanto o marido!- Fazia-lhe diariamente mingau de fubá, alimento forte para manter as forças. Assim foi por toda a vida, numa fidelidade comovente, sem falhar um dia sequer: toda manhã lá estava diante do marido o prato de mingau de fubá que ele comia até o fim. Até que o inesperado aconteceu. Já bem velha, ficou doente, não conseguia se levantar da cama. O que seria do seu pobre marido sem o mingau de fubá? O rosto dele se abriu num vasto sorriso. " Não se preocupe, não, meu bem. Pra dizer a verdade, eu nem gosto mesmo de mingau de fubá..."
Crônica de Rubem Alves Extraído do livro Sobre o Tempo e a EternaIdade
by: Um pouco de tudo. De tudo um pouco
Nenhum comentário:
Postar um comentário